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Vol. 31. Núm. 7 - 8.
Páginas 509-512 (julho - agosto 2012)
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Vol. 31. Núm. 7 - 8.
Páginas 509-512 (julho - agosto 2012)
Caso Clínico
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Origem anómala da coronária direita e enfarte agudo do miocárdio: causa ou coincidência?
Anomalous origin of the right coronary artery and acute myocardial infarction: Cause or coincidence?
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Nuno Antunes
Autor para correspondência
, Ana Meireles, Catarina Gomes, Miguel Vieira, Diana Anjo, Mario Santos, Pinheiro Vieira, Isabel Sá, Henrique Carvalho, Severo Torres
Serviço de Cardiologia, Centro Hospitalar do Porto, Porto, Portugal
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Resumo

As anomalias coronárias congénitas são uma das causas de isquemia miocárdica e morte súbita em jovens, principalmente durante a prática desportiva. A origem da artéria coronária direita na descendente anterior é muito rara, com uma prevalência de 0,015% e correspondendo a 1,2% das anomalias coronárias congénitas. Os autores apresentam o caso clínico de um homem de 22 anos, consumidor de cocaína, internado por enfarte agudo do miocárdio sem supradesnivelamento de ST. O cateterismo mostrou a presença desta anomalia coronária rara e a ausência de lesões ateroscleróticas luminais, pelo que se assumiu tratar-se de um enfarte agudo do miocárdio tipo II secundário a vasospasmo do vaso anómalo induzido pela cocaína.

Palavras-chave:
Coronárias
Congénito
Enfarte
Cocaína
Abstract

Congenital coronary artery anomalies are one of the causes of myocardial ischemia and sudden death in the young, mainly during sports. Origin of the right coronary artery from the left anterior descending artery is very rare, with a prevalence of 0.015%, corresponding to 1.2% of all coronary artery anomalies. The authors present the case of a 22-year-old man, with a history of cocaine use, admitted to hospital with a non-ST elevation acute myocardial infarction. Coronary angiography revealed the presence of this rare coronary anomaly and the absence of atherosclerotic luminal stenosis, and so it was assumed to be a type II infarction caused by cocaine-induced vasospasm of the anomalous vessel.

Keywords:
Coronary
Congenital
Infarction
Cocaine
Texto Completo
Introdução

As anomalias coronárias congénitas (ACC) são um grupo heterogéneo de entidades anatómicas. O seu espectro de relevância clínica é vasto, estendendo-se de um achado ocasional em angiografia coronária, à apresentação aguda na forma de enfarte agudo do miocárdio (EAM) ou morte súbita, tipicamente em adultos jovens e em contexto de atividade física intensa ou exposição a outros fatores de stress fisiológico. A presença de uma artéria coronária única é uma forma rara de anomalia coronária associada a risco potencial de eventos cardíacos adversos. Os autores apresentam o caso de um subtipo anatómico raro de artéria coronária única que se manifestou como síndrome coronária aguda num doente jovem.

Caso clínico

Doente do sexo masculino de 22 anos de idade, raça caucasiana, fumador, consumidor esporádico de cocaína inalada e com história familiar de doença cardíaca isquémica. Foi admitido no serviço de urgência (SU) por clínica de dor precordial opressiva com 3 horas de evolução e que se tinha iniciado em repouso, cerca de 24 horas após o último consumo de cocaína. No SU ficou inicialmente assintomático após administração de nitrato sublingual. Encontrava-se hemodinamicamente estável (TA 123/67 mmhg; FC 92 bpm), sem sinais de hipervolemia, saturação de O2 de 97% por oximetria de pulso e apirético. O eletrocardiograma (ECG) da admissão não apresentava alterações de relevo. As análises mostraram elevação dos marcadores de necrose miocárdica com troponina i de 7 ng/ml, sem outras alterações. O ecocardiograma no SU mostrou hipocinesia das paredes posterior e inferior, com boa função global sistólica biventricular. No SU, apresentou recorrência de dor, tendo sido repetido eletrocardiograma que mostrou supradesnivelamento transitório de ST com 1mm nas derivações inferiores, tendo ficado assintomático e retornado ao padrão eletrocardiográfico inicial após nova administração de nitrato sublingual (Figuras 1 e 2).

Figura 1.

Angiografia coronária, incidência de perfil: origem anómala da artéria Coronária Direita no segmento médio da artéria descendente anterior (seta). Ausência de lesões angiograficamente significativas.

(0.13MB).
Figura 2.

Imagens de TC cardíaca-64 cortes. As imagens A (imagem reconstruida tipo MIP) e B (imagem reconstruída tipo «volume rendering») evidenciam a origem da CD anómala no segmento médio da DA; Note-se, nas imagem C (imagem reconstruída tipo «volume rendering»), o trajeto da CD anterior aos grandes vasos e na imagem D (imagem reconstruída tipo «volume rendering»), a escassez de suprimento arterial epicárdico posterior e inferior por ausência de artérias póstero-lateral e descendente posterior.

(0.36MB).

Foi internado na unidade de cuidados intensivos coronários com diagnóstico de síndrome coronária aguda sem elevação do segmento ST e foi submetido a cateterismo urgente. A coronariografia excluiu doença aterosclerótica luminal, mas mostrou a presença de uma ACC. O doente apresentava um ostium coronário único em posição do Seio de Valsalva esquerdo, que originava o tronco comum. Este vaso apresentava um trajeto normal bifurcando-se numa artéria descendente anterior (DA) e numa artéria circunflexa com as distribuições anatómicas habituais. Por sua vez, a artéria coronária direita (CD) originava-se de forma anómala no segmento médio da DA e dirigia-se depois para a direita para vascularizar o seu território habitual. Para melhor definir as correlações anatómicas da coronária direita, realizou-se um AngioTC, que excluiu trajetos malignos deste vaso entre a aorta e a artéria pulmonar e documentou uma aparente escassez de suprimento arterial epicárdico nas paredes posterior e inferior, por ausência das artérias descendente posterior e póstero-lateral. O score de cálcio era 0.

Manteve-se assintomático e hemodinamicamente estável, tendo tido alta ao 6.° dia de internamento. O valor pico de Troponina T foi de 1,40 ng/ml. Foi realizado screening de patologia pró-trombótica que foi negativo. O ECG evoluiu sem onda Q e repetiu ecocardiograma antes da alta que mostrou normalização das alterações da contractilidade segmentar.

Para excluir isquemia miocárdica residual foi submetido em ambulatório a uma SPECT com prova de esforço, sendo o estudo de perfusão negativo para isquemia. Face a isto, assumiu-se manutenção de uma estratégia de tratamento médico com ácido acetilsalicílico 100mg e diltiazem 120mg por dia. Recomendou-se também evitar atividade física intensa e o consumo de cocaína e tabaco.

Após um follow up de 23 meses mantém-se assintomático e abstinente de drogas.

Discussão

Os critérios para uma variante anatómica ser considerada uma anomalia aida são alvo de debate, mas uma prevalência inferior a 1% é um dos requisitos encontrados na literatura1. A prevalência das ACC nas diversas séries publicadas varia entre os 0,3 e os 5,6%1–4. Na maior série publicada até à data (126 000 doentes), Yamanaka et al. documentaram uma prevalência de 1,3%2. Por sua vez, numa série de 3660 doentes de um único centro português, publicada por Correia et al., esta foi de 0,68%3.

As ACC foram identificadas como uma causa relativamente comum de morte súbita associada à prática desportiva em jovens, tendo sido documentadas na necropsia em 12% desses doentes5.

A presença de uma artéria coronária única é uma anomalia rara (0,049% de prevalência e 3,31% das ACC) com potencial para causar eventos cardíacos adversos, incluindo isquemia miocárdica e morte súbita. O subtipo que resulta da origem anómala da CD a partir da DA (Tipo R-II da classificação de Lipton) é muito rara (prevalência de 0,015 e 1,2% das ACC)2. A CD percorre um trajecto entre os grandes vasos em cerca de 38% dos casos6, estando esta variante associada a risco elevado de isquemia miocárdica e morte, pela susceptibilidade a compressão extrínseca. Esta anomalia congénita associa-se também frequentemente a doença coronária aterosclerótica, que foi documentada em 54% dos casos publicados7.

A cardiotoxicidade da cocaína é uma complicação séria do seu uso, podendo manifestar-se de forma crónica ou aguda. São vários os mecanismos pelos quais a cocaína pode induzir isquemia miocárdica, incluindo vasospasmo coronário, efeitos aterogénico e trombogénico, bem como aumento do consumo de oxigénio8,9. O risco de enfarte é maior na primeira hora após o consumo e ocorre nas três primeiras horas em dois terços dos doentes. Contudo, há casos descritos em que este período de latência se prolongou até cerca de 4 dias9. Os dados disponíveis sugerem que estes eventos mais tardios após a exposição podem resultar do compromisso dos mecanismos de vasodilatação arterial mediados pelo endotélio, uma vez que se comprovou a presença nos consumidores de cocaína de disfunção endotelial com diminuição da produção de óxido nítrico10 e aumento da produção de endotelinas11.

No que diz respeito à fisiopatologia da necrose miocárdica, neste caso, a ausência de evidência angiográfica de doença coronária aterosclerótica luminal, torna pouco provável tratar-se de um evento agudo de placa (enfarte tipo I). Existem aparentemente apenas dois fatores identificáveis que podem ter contribuído para o enfarte neste doente: 1) a ACC, com anatomia de vaso único resultante da origem da CD na DA; 2) a história de consumo recente de cocaína. A presença de uma artéria coronária única é, como já referido, potencialmente associada a eventos cardíacos adversos2. Neste doente, a CD tinha um trajeto localizado anteriormente em relação à raiz da aorta, pelo que a compressão extrínseca pelos grandes vasos não foi o mecanismo fisiopatológico responsável. Outros mecanismos descritos como causa de isquemia miocárdica, nos doentes com ACC e sem doença aterosclerótica, incluem redução da reserva coronária funcional, padrões anormais de fluxo e disfunção autonómica e endotelial predispondo ao vasospasmo ou trombose1. A localização das alterações eletrocardiográficas e ecocardiográficas da admissão (supradesnivelamento transitório de ST na parede inferior e hipocinesia posterior e inferior), sugerem que a isquemia e necrose miocárdicas ocorreram no território suprido pela coronária direita, o que indica que esta terá sido parte implicada e não apenas uma expectadora neste processo, com a escassez de suprimento arterial epicárdico nesse território a poder também ter desempenhado um papel importante na fisiopatologia da isquemia. A apresentação tardia, bem como a recorrência de dor sem reexposição presentes neste caso, podem ser interpretadas no contexto de vasoespasmo, induzido não apenas pela ação vasoconstritora direta da cocaína, mas dependente também a disfunção endotelial mais persistente induzida por esta droga10,11.

Assim, os autores consideram tratar-se de um caso de EAM tipo ii, em que uma anomalia coronária rara forneceu um substrato de suscetibilidade aumentada aos efeitos cardiotóxicos da cocaína. A ausência de doença coronária aterosclerótica, trombo ou trajetos anatómicos associados a risco de compressão extrínseca, sugerem que o vasospasmo do vaso anómalo foi o mecanismo fisiopatológico principal.

Conclusão

Este caso é ilustrativo de uma forma rara de ACC com potencial para causar eventos clínicos adversos incluindo EAM e morte súbita. Sendo que as anomalias coronárias são uma das causas de morte súbita em doentes jovens durante a atividade desportiva, estas devem ser consideradas no diagnóstico diferencial dos doentes que se apresentam nesse contexto com síncope, dor torácica ou paragem cardiorrespiratória.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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