Neste número da RPC é publicado o Registo Nacional de Eletrofisiologia Cardíaca dos anos de 2013‐20141. São incluídos os dados dos exames eletrofisiológicos, intervenções terapêuticas e de implantação de cardioversores‐desfibrilhadores, realizados nos diversos centros portugueses. Os autores, mas também as sucessivas direções da Associação Portuguesa de Arritmologia, Pacing e Eletrofisiologia (APAPE) e do Instituto Português do Ritmo Cardíaco (IPRC) devem ser felicitados pela perseverança e dedicação da atualização deste registo, de forma ininterrupta, ao longo dos últimos 14 anos. Estes dados espelham, não só a realidade nacional, nomeadamente em termos de diferenciação e de distribuição geográfica dos centros nacionais de eletrofisiologia, mas permitem também perspetivar as possibilidades formativas do país, quer do internato complementar de cardiologia, como da formação específica da subespecialidade de eletrofisiologia cardíaca. Por outro lado, o conhecimento destes dados permite a integração (e comparação) com os dados europeus publicados anualmente pela Associação Europeia do Ritmo Cardíaco (EHRA) da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC). Finalmente, este conhecimento permite prever e planear as necessidades assistenciais do país na área da arritmologia «invasiva», e deverá estar na base de algumas decisões organizacionais, nomeadamente as referentes à rede de referenciação nacional em cardiologia.
Avaliando a estatística de 2014, ressalta em primeiro lugar o crescimento do número de centros de eletrofisiologia: 25 centros (aumento de oito centros em relação ao ano transato), dos quais 11 privados e 14 públicos, com 2325 ablações, mantendo‐se o progressivo aumento anual. Verificou‐se, no entanto, marcada assimetria na produção destes centros, pois embora a média de exames por centro seja de 93, a mediana é de 33, apenas em sete foram efetuadas mais de 100 ablações e, em nove, foram efetuadas menos de dez ablações. A ablação de fibrilhação auricular representa percentagem significativa das intervenções (cerca de 30% em 2014), embora 80% destas intervenções sejam efetuadas em apenas quatro centros (um dos quais privado). No que respeita à implantação de cardioversores‐desfibrilhadores, estas intervenções foram efetuadas em 30 centros (aumento de quatro centros em relação ao ano anterior, embora todos eles com taxas de implantação inferiores a dez unidades) com um total de 1256 primeiras implantações (dos quais 38,6% com capacidade de ressincronização ventricular), o que representou um aumento de 15% comparativamente ao ano anterior. À semelhança da intervenção eletrofisiológica, apenas quatro destes centros implantaram mais de 100 unidades por ano e, em nove centros, implantaram‐se menos de dez unidades nesse ano.
Esta tão grande assimetria de volume de intervenções significa que apenas existe capacidade de formação pós‐graduada ou de efetuar intervenção diferenciada, quer em ablação por cateter, como na implantação de dispositivos, em cerca de 1/4 dos centros portugueses de eletrofisiologia cardíaca. Efetivamente, a atual regulamentação do internato médico2 recomenda, durante os quatro meses de estágio em eletrofisiologia e pacing, a participação em 50 exames eletrofisiológicos, 50 pacemakers permanentes e 20 implantação de cardioversor‐desfibrilhador implantável (CDI) e sistemas de ressincronização. Ainda segundo o regulamento (já bastante antigo e, provavelmente, a precisar de atualização) da subespecialidade de eletrofisiologia cardíaca3, durante o treino de dois anos, deverá ser adquirida autonomia na intervenção, com a execução de pelo menos 300 estudos diagnósticos e 150 ablações. Assim, a formação pós‐graduada em arritmologia invasiva está limitada aos centros com movimento mais significativo, nomeadamente, três em Lisboa (Hospital de Santa Cruz, de Santa Maria e de Santa Marta), um em Coimbra (Hospital da Universidade, embora com casuística limitada na eletrofisiologia) e outro no Porto (Hospital de Gaia).
Comparativamente com os números publicados pela EHRA4, verifica‐se que a evolução da eletrofisiologia cardíaca em Portugal tem sido muito positiva e que tem havido uma aproximação às taxas de intervenção em eletrofisiologia ou de implantação de cardioversores‐desfibrilhadores desejáveis. No entanto, comparativamente, podemos constatar que, enquanto na taxa de implantação de pacemakers nos encontramos no «pelotão da frente», na intervenção eletrofisiológica global, incluindo a ablação de fibrilhação auricular, assim como na implantação de CDI ou CRT, nos encontramos englobados num segundo pelotão. Efetivamente, apesar da taxa anual de implantações de Portugal em 2014 ser de 120/milhão de habitantes de novas unidades de CDI e estar acima da média europeia (a qual foi de 99/milhão), encontramo‐nos num segundo grupo (taxas entre 74‐166/milhão de habitantes) dos países europeus, a par da Espanha. Em relação à intervenção eletrofisiológica e especificamente à ablação de fibrilhação auricular, o registo mostra taxas respetivamente de 232/milhão e de 69/milhão, o que em termos comparativos europeus nos inclui de novo no segundo quartil (taxa global de ablações entre 179‐321/milhão habitantes e de ablação de FA entre 48‐108/milhão habitantes), a par de países como a Espanha ou a Inglaterra. Portanto, apesar de ser ainda desejável um aumento dos números da intervenção eletrofisiológica, a verdade é que as taxas de intervenção em Portugal são já semelhantes às de países mais desenvolvidos.
Este registo permite ainda perceber quais são os centros portugueses mais diferenciados em eletrofisiologia cardíaca e que, por consequência, integram a respetiva Rede de Referenciação Nacional em Cardiologia5,6: Hospital de Gaia, Hospitais da Universidade de Coimbra, Hospital de Santa Cruz, Hospital de Santa Maria e Hospital de Santa Marta. Nestes cinco centros, deverá assim ser concentrado o investimento público nesta área, de modo a propiciar as melhores condições de desenvolvimento e diferenciação.
Por último, um comentário sobre o tipo e qualidade dos registos. Apesar do mérito de manter este registo atualizado, seria muito útil, até do ponto de vista clínico, a inclusão de informação mais detalhada e específica nestes registos anuais, nomeadamente percentagens de sucesso e o tipo e incidência de complicações associadas a estas intervenções. Este tipo de informação relevante, ainda que preservando a identidade dos centros específicos, poderia ser bastante útil quer para a comunidade médica e científica, como para os próprios doentes interessados.
Em conclusão, será através de registos atualizados e credíveis, como é o exemplo deste Registo Nacional de Eletrofisiologia, que será possível conhecer a realidade nacional, planificar uma rede assistencial eficaz e oferecer uma formação pós‐graduada de qualidade em Portugal, de forma a atingir um padrão de excelência no tratamento dos nossos doentes.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.