Quando um editor é convidado e se propõe a escrever um comentário editorial sobre um artigo para cuja decisão de publicação ele próprio contribuiu de modo decisivo confronta‐se com um dilema de escolha: salientar os pontos fortes ou comentar as insuficiências, algumas das quais, aliás, superadas durante um processo editorial cuja profundidade os leitores geralmente desconhecem, uma vez que o que é publicado é o produto final de um processo de revisão, por vezes extenso.
E há muitas razões pelas quais um artigo é aceite ou rejeitado para publicação. No caso do artigo publicado nesta edição da Revista pelo grupo cardiológico médico‐cirúrgico de Santa Marta sob o título Endocardite infeciosa: tratamento cirúrgico e preditores prognósticos1, a aceitação poderia muito bem ser justificada pela conclusão enviada ao editor por um dos revisores: «informativo, tendo em conta a escassez de dados da patologia em Portugal». Ora, há cerca de quatro anos o grupo de São João publicou também na nossa Revista um estudo similar, sob o título Endocardite infeciosa esquerda: análise de prognóstico e preditores de mortalidade2. Ainda assim, o confronto entre duas experiências, geograficamente distantes, parece salutar.
No artigo agora em discussão, os autores apresentam uma série retrospetiva de 233 casos de endocardite infeciosa (definida ou provável) observados num único centro, o que, no nosso meio, se pode considerar uma experiência significativa. A ideia seria, a julgar pelo título, essencialmente, avaliar a indicação e o tratamento cirúrgicos e os respetivos preditores prognósticos. A cirurgia tem, naturalmente, um papel importante, quiçá fundamental, a desempenhar nessa patologia, nalgumas séries é usada em metade dos doentes, frequentemente em situações de life‐saving. Lamentavelmente, o manuscrito é, a esse respeito, relativamente parco de pormenores.
Deve, contudo, salientar‐se que esse trabalho apresenta uma descrição bastante pormenorizada das características demográficas e clínicas da população, nomeadamente no que diz respeito à localização e extensão da doença, bem como das comorbilidades. Esses dados são importantes para melhor caracterizarmos a população portuguesa em risco e podem servir como ponto de partida para novos estudos. Nesse sentido, um título mais adequado talvez tivesse sido Endocardite infeciosa: opções terapêuticas e preditores prognósticos.
De facto, os autores propõem‐se a comparar os resultados de dois tratamentos: cirúrgico versus médico. No entanto, focam‐se sobretudo nas componentes clínicas, nomeadamente nos fatores preditores e complicações da doença em si, nunca abordam de forma específica as peculiaridades afetas ao ato cirúrgico per se, como as complicações da própria cirurgia, os resultados microbiológicos das biópsias cirúrgicas e o tempo de antibioterapia após cirurgia. E também não são abordadas questões importantes como as complicações cirúrgicas ou os tempos de internamento, ou causas de morte intra‐hospitalar nos grupos submetidos a tratamento médico e a cirurgia.
O tempo de internamento é importante no que respeita não só à qualidade dos cuidados como também aos custos económicos envolvidos3, um aspeto não displicente no nosso país. É sobejamente conhecido que essa patologia obriga, por norma, a internamentos prolongados, a duração do tratamento antibiótico é geralmente de quatro a seis semanas4. Os tempos médios de internamento podem, portanto, fornecer informações acerca da qualidade do tratamento, bem como das complicações que possam ter prolongado o internamento, e esquemas antibióticos aplicados, entre outros. E esses dados podem estar correlacionados com complicações em médio/longo prazo, como recidivas de endocardite ou mesmo mortalidade2.
Relativamente às indicações cirúrgicas, hoje bem definidas nas guidelines4, são bem conhecidos os fatores preditores de prognóstico a ter em conta, quer no que respeita à indicação quer quanto à sua precocidade. É também reconhecido que, por vezes, apesar de a indicação cirúrgica ser clara, a sua aplicação prática pode não sê‐lo tanto, pois depende de um conjunto de fatores como o status físico e mental do doente e as suas comorbilidades e seu risco cirúrgico, que podem ser proibitivos da cirurgia.
Nesta série, por exemplo, 35% dos doentes com indicação cirúrgica não foram operados. Teria sido uma mais valia apurar os motivos: risco proibitivo, recusa do doente, morte a aguardar cirurgia?5 Reconhecemos que em estudos retrospetivos nem sempre é fácil a determinação dos motivos que levaram à não feitura do ato cirúrgico, mas essa informação poderia influenciar decisões futuras (pelos próprios e por outros), nomeadamente na gestão dos tempos operatórios, ou a informação prestada ao doente durante o consentimento.
Um dado importante demonstrado pelos autores é que o benefício cirúrgico apenas existe quando o doente tem indicação cirúrgica demonstrada. E que esse benefício se mantém quer no internamento quer em longo prazo, o que vem de encontro aos resultados descritos noutras séries6,7. É importante salientar tal facto, dado que chama a atenção para a necessidade de identificar corretamente quais os doentes que reúnem critérios cirúrgicos e de não optar extemporaneamente por essa terapêutica.
O artigo é também parco quanto à análise das complicações no pós‐operatório e das causas de morte durante o internamento. Os autores nunca descrevem as complicações ocorridas nos doentes nem a sua frequência, isto é, quantas infeções respiratórias, AVCs, tamponamentos cardíacos, arritmias, disfunções de próteses, entre outras possíveis2,4. E relativamente à mortalidade, quais as causas: choque cardiogénico, sepses, complicações neurológicas? Afinal, a causa de morte pode não ser forçosamente derivada da EI2.
Concentrando a análise do grupo submetido a tratamento cirúrgico, uma vertente interessante a explorar seria o resultado das biópsias cirúrgicas. De acordo com as guidelines da ESC, a análise patológica do material cirúrgico é hoje um gold‐standard do diagnóstico na EI4. E nos casos em que as culturas sanguíneas foram negativas, poderá ajudar na identificação do microrganismo e na decisão quanto ao tempo de antibioterapia a fazer após a cirurgia. Por exemplo, poderá justificar o início de um novo ciclo de antibioterapia, os antibióticos agora escolhidos com base nos testes de sensibilidade são relativos ao agente isolado.
E já que abordamos o tema da antibioterapia, nunca é referido que esquemas foram usados e se, à luz das guidelines atuais ou prévias, esses eram considerados adequados.
E chegamos ao follow‐up: os autores apresentam um tempo médio superior a dois anos e com uma taxa de seguimento de 95%, o que é muito positivo, torna essa série numa das maiores e talvez com um dos mais longos tempos de seguimento descritos na população portuguesa2,8. Certamente, o apuramento de complicações e causas de morte cardíaca/não cardíaca durante o follow‐up é, por vezes, muito complexo, quiçá impossível, nomeadamente porque os doentes poderão ser seguidos em instituições diferentes. Mas os dados obtidos são relativos apenas à mortalidade, não especificam sequer causas de morte (cardíaca/não cardíaca). Também não se exploram outros dados interessantes, como, por exemplo, complicações tardias importantes (recidiva de endocardite, necessidade de cirurgia/reoperação, entre outras)4,5,8.
E esses são critérios de qualidade do tratamento cirúrgico prestado, cuja análise seria da maior importância para a melhoria dos cuidados. Todos esses dados, decerto difíceis de obter em estudos retrospetivos, como referido previamente e como os autores bem argumentaram, são, contudo, de grande importância, pois podem levar a mudanças na atitude dos cirurgiões, nomeadamente na aceitação de casos borderline, antecipação do ato cirúrgico em condições de grande risco/desfavoráveis etc. E também para os cardiologistas, no sentido de se aprimorar o tratamento pós‐operatório e o seguimento após tratamento inicial da EI, tenha ele sido cirúrgico ou não.
Finalmente, temos de enquadrar o artigo no tempo e espaço, bem como ter em conta os dados disponíveis. Sem dúvida, deve elogiar‐se a colaboração, nem sempre fácil, de cardiologistas e cirurgiões cardíacos na elaboração de trabalhos científicos. O conceito de Heart Team, agora tão em voga, revela‐se cada vez mais decisivo na abordagem terapêutica da endocardite infeciosa. E esse conceito implica exatamente uma discussão clara e equilibrada entre os vários participantes, clínicos e cirurgiões, tendo em conta os seus diferentes pontos de vista acerca de qual o melhor esquema para cada doente específico, ajustando‐o às suas comorbilidades, às várias opções de tratamento médico‐cirúrgicas e também à vontade do doente. A importância da existência de Heart Team em todo o processo de decisão e tratamento da EI talvez seja, afinal, uma conclusão implícita deste trabalho.
E, já agora, uma das motivações para a sua publicação na nossa Revista….
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.