A nefropatia induzida por contraste iodado (NIC), frequentemente subdiagnosticada, sendo uma entidade a ter sempre em consideração na prática clínica, é apontada como a terceira causa de incidência de lesão renal aguda em meio hospitalar.1 O elevado número e a diversidade de estudos angiográficos feitos para diagnóstico e/ou terapêutica, como as intervenções no nível coronário, estão entre as principais causas desse tipo de lesão renal aguda. Apesar de, na maior parte das vezes, ser reversível, está associada ao aumento da morbilidade e prolongamento do tempo de internamento com os custos inerentes, bem como ao risco aumentado de morte no primeiro ano, mesmo que os doentes não necessitem de diálise. A incidência depende de fatores relacionados com a técnica propriamente dita (tipo de contraste, volume e osmolaridade) e tem uma associação muito próxima com os fatores de risco pré‐existentes, em particular a idade superior a 60 anos, a doença renal crónica e a diabetes mellitus, entre outros.2 Inicialmente pensava‐se que os meios de contraste baseados no gadolínio seriam mais seguros, sobretudo em doentes com doença renal crónica estabelecida, no entanto a experiência e estudos posteriores vieram a demonstrar que o risco nefrotóxico existe e é significativo, sobretudo para valores da taxa de filtração glomerular < 30mL/min/1,73m2, está para além disso na origem da chamada fibrose sistémica nefrogénica.3
No indivíduo normal o meio de contraste iodado apresenta uma semivida média de duas horas e a sua eliminação renal é praticamente total ao fim de 24 horas. Os mecanismos fisiopatológicos que provocam a disfunção renal são diversos e fazem parte de uma intricada rede de fatores, na qual, para além do efeito citotóxico direto sobre as células epiteliais tubulares, existe uma mediação inflamatória e neuro‐hormonal, com um forte componente vasoconstritor da microcirculação medular com efeito isquémico intenso.
O diagnóstico da nefropatia de contraste é definido com base na elevação relativa de 25% na concentração sérica da creatinina, relativamente ao basal, ou no aumento absoluto de 0,5mg/dl da creatinina sérica, nas 48 a 72 horas seguintes ao procedimento.4 Isso significa que a depender das condições clínicas do doente, a verdadeira incidência é frequentemente subestimada, por habitualmente ser discreta e verificar‐se somente a partir do 3° dia após a injeção do contraste.
No sentido da prevenção é muito importante que antes da feitura de um procedimento angiográfico seja feita uma criteriosa avaliação do doente que pode incluir a estratificação do risco através de sistemas de scores.5 A medição da função renal assume aqui um papel fundamental e deve ser feita, não só através da creatinina sérica, influenciada por fatores não renais, como o peso e índice de massa corporal, idade, género e raça, mas sobretudo através da determinação da taxa de filtração glomerular (TFG), o melhor indicador da capacidade filtrante dos rins. Em opção à técnica gold standard, como a clearance da inulina, impossível de aplicar na rotina, ou das técnicas que usam isótopos radioativos, como a clearance urinária de 125I iothalamato, 51Cr‐EDTA, ou 99Tc‐DTPA, nem sempre acessíveis em meio hospitalar, na prática calcula‐se a taxa de filtração glomerular estimada (TFGe), baseada em equações desenvolvidas para o efeito.
Todas as equações têm limitações com a probabilidade de vieses que têm de ser contornados para adequar o tipo de equação à população‐alvo. No momento atual, e depois de inúmeros trabalhos que avaliaram de forma crítica a sua fiabilidade para estimar a filtração glomerular, a MDRD (the Modification of Diet in renal Disease), e a CKD‐EPI (Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration), são aquelas que reúnem maior consenso nos indivíduos com idade superior a 18 anos.5 A comparação daquelas equações com a equação de Cockcroft‐Gault (CG) e a clearance da creatinina com colheita de urina de 24h demonstraram a clara superioridade das primeiras. De notar que o uso da clearance da creatinina só deve ser considerado quando a produção é anormal, como nos casos de indivíduos com grande superfície corporal e/ou massa muscular, ou cujo teor proteico da dieta é invulgarmente elevado ou baixo.6
Apesar das condicionantes, a equação MDRD está validada em indivíduos brancos e negros entre os 18 e os 70 anos com disfunção renal crónica (TFGe < 60mL/min/1,73m2), enquanto a CKD‐EPI é mais fiável para os valores de TFGe > 60mL/min/1,73m2. No entanto, há que ter em atenção que essas equações devem somente ser aplicadas em indivíduos com função renal estável e fora dos períodos agudos, devendo ser excluídos as grávidas e doentes com graves comorbilidades.6,7
Muitos trabalhos, inclusive guidelines internacionais, têm referenciado a importância do doseamento sérico e da taxa de filtração glomerular estimada da cistatina C, uma vez que não é influenciada pela idade, massa muscular, pelo género ou pela ingestão proteica, todavia a técnica de doseamento é muito mais dispendiosa do que a creatinina.7
No artigo de Nunes M et al.8 os autores estudaram uma amostra relevante de doentes submetidos a intervenção coronária percutânea, com o objetivo de comparar o valor preditor das fórmulas de Cockcroft‐Gault e CKD‐EPI no risco de desenvolvimento de disfunção renal relacionada com a administração de contraste iodado. Esse trabalho, ao salientar a importância da determinação TFGe, coloca também em evidência o diagnóstico, frequentemente subestimado, da disfunção renal consequente ao procedimento. Por outro lado, reforça a importância da adoção de medidas eletivas de prevenção da nefropatia, relacionadas não só com o procedimento técnico propriamente dito, como também avisa acerca dos grupos de risco particularmente vulneráveis, de que são exemplo os doentes com patologia cardiovascular.
Em Métodos os autores estudaram, retrospetivamente, uma população constituída por 140 doentes de ambos os géneros, com idade média a rondar os 60 anos, inclusive brancos e negros, com índice de massa corporal variável e diversas comorbilidades, que sugeriam risco metabólico/aterogénico elevado. Não foi usado método de referência na avaliação da taxa de filtração glomerular, os autores classificaram os desvios do cut‐off de 60mL/min com base na aplicação das fórmulas CG e CKD‐EPI, o que dificulta a obtenção de conclusões. Por outro lado, em atenção ao contexto clínico da população estudada, é grande a probabilidade de a doença renal crónica já existir antes do procedimento, o que, de acordo com o referido anteriormente, implicaria a aplicação preferencial da equação MDRD na medição da TFGe, e não somente a comparação da equação de Cockcroft‐Gault com a CKD‐EPI. Ainda, e também pelos mesmos motivos, torna‐se difícil estabelecer com rigor a relação entre a administração do produto de contraste e a existência de nefropatia nesse grupo sensível de doentes, no qual se desconhecem as condições clínicas da feitura do exame. Na verdade são bem conhecidos vários fatores extrarrenais que podem influenciar a filtração glomerular num doente com coronariopatia aguda.
Não obstante a criteriosa análise estatística feita pelos autores, uma estratificação dos doentes, por idade, TFGe e patologia associada, poderia fornecer mais informações interessantes quanto à suscetibilidade para a disfunção renal, em função dos valores encontrados pelas três equações (MDRD, CG, CKD‐EPI), e o significado objetivo da incidência da nefropatia induzida por contraste, nos doentes submetidos a coronariografia.
As Conclusões avançadas pelos autores, no contexto deste comentário, reforçam acima de tudo a importância da medição sistemática da TFGe antes de qualquer procedimento com produto de contraste iodado.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.