O presente artigo de Lobo et al.1 tem por objetivo «comparar o acesso a novas tecnologias em saúde, no tratamento da doença coronária (CHD), entre os sistemas de saúde de Portugal e dos Estados Unidos, caracterizando as necessidades das populações e a disponibilidade de recursos». A avaliação do acesso às novas tecnologias, em termos farmacológicos e de dispositivos médicos, resulta do conhecimento das «diferenças entre as datas de autorização de introdução no mercado/comercialização nos dois países». Trata‐se, assim, de um artigo muitíssimo interessante, informativo e original.
Há dois aspetos que considero relevantes logo de início. Primeiro, o artigo tem 12 coautores, dos quais sete pertencem ao CINTESIS2 (destes, só um é cardiologista – B. Melica), dois ao ISAMB3 e três são de Boston (Estados Unidos). O CINTESIS2 é uma nova unidade estratégica nacional de investigação e desenvolvimento (R&D) que procura reforçar o sistema científico e tecnológico em Portugal, uma vez que se dirige de modo custo‐eficaz à investigação altamente complexa e aos desafios da sociedade do programa HORIZON 2020. Tem impacto regional porque envolve quatro regiões (seis instituições) do norte, centro e Algarve. Uma das linhas temáticas é a chamada TL1 – Clinical and Heath Services Research, na qual se insere o presente artigo. Globalmente, esta mega unidade virtual é única em Portugal e tem 16 grupos de investigação com conhecimentos para realizar investigação translacional e inovação no ambiente real de cuidados de saúde. O ISAMB3 é uma nova unidade de investigação, multidisciplinar e autónoma que reúne contribuições dos vários centros de investigação e unidades estruturais da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, com o objetivo de realizar investigação, divulgação e intervenção social na área das ciências da saúde. Este será o primeiro artigo destas duas instituições sobre cardiologia de que tenho conhecimento. Desconheço, igualmente, o conhecimento da realidade portuguesa prática sobre cardiologia dos vários autores e a lista bibliográfica não me permite tirar conclusões. Mas a oportunidade do artigo parece derivar da criação, em 2015, do Sistema Nacional de Avaliação de Tecnologias de Saúde (SiNATS)4, nomeadamente de medicamentos e de dispositivos médicos, sob a responsabilidade do INFARMED, procurando a harmonização entre Portugal e outros sistemas europeus.
O segundo aspeto é que se comparam dados de países com características muito diferentes: a população dos Estados Unidos é 30 vezes superior à portuguesa; os gastos com saúde são de 10% do PIB em Portugal e de 18% nos Estados Unidos (2011), a taxa de alfabetização é igualmente inferior em Portugal (95% em 2011) (além da baixa literacia em saúde em Portugal) e 99% nos Estados Unidos em 2003, e a mortalidade global é superior em Portugal (11 versus 8% em 2014)5. Os dados epidemiológicos e os recursos disponíveis nos dois países são igualmente muito diferentes. A comparação entre Portugal e os Estados Unidos parece, à primeira vista, um grande desafio de sucesso incerto. Considero que Portugal não tem dados epidemiológicos fiáveis e são poucos em populações com CHD (registo PULSAR)6, enquanto que os dados dos Estados Unidos são do National Health and Nutrition Examination Survey7, que é um centro para estatísticas de saúde com caráter nacional e com publicação regular de dados, que parecem ter uma fiabilidade completamente diferente.
Sem entrar em detalhes sobre os dados portugueses, a fonte da sua colheita ou o modo como são colhidos, parece que os perfis de risco são mais baixos do que nos Estados Unidos, o que poderá justificar as menores hospitalizações per capita e a menor mortalidade por CHD e enfarte em Portugal. A taxa de prevalência de CHD em Portugal é impossível de conhecer. Tirando a alta prevalência de hipertensão arterial em Portugal, todos os outros fatores de risco apresentam taxas inferiores aos dos indivíduos americanos. Com risco global coronário mais baixo em Portugal, a diferença de mortalidade é significativa para mortalidade global por CHD: a mortalidade é de 72,8 em Portugal versus 168 nos Estados Unidos por 100000 habitantes, padronizada por idade e sexo. Poderá discutir‐se se os dados de mortalidade por doença coronária em Portugal serão verdadeiros. Fora do hospital, os dados de mortalidade poderão ser incorretos porque, por exemplo, a morte súbita raramente é contabilizada como morte por doença coronária (habitualmente é considerada um acidente vascular cerebral) e os certificados de óbito só recentemente estarão a ser mais bem preenchidos, dando maior credibilidade ao diagnóstico. Em 2006, estimava‐se que 82% dos doentes faleciam por enfarte do miocárdio fora do hospital8. Quanto à mortalidade por enfarte do miocárdio, em que não há diferenças significativas relativas aos Estados Unidos, isto poderá traduzir o menor risco global dos doentes, os cuidados médicos (medicamentosos pré e hospitalares) e as condições hospitalares relativamente adequadas em Portugal e comparáveis aos Estados Unidos. A angioplastia primária tem vindo a aumentar progressivamente, apesar do número reduzido de centros com cobertura hemodinâmica de 24 horas/dia, sendo a taxa em 2013 de 338 por milhão de habitantes9. O número de centros com cardiologia de intervenção em Portugal é relativamente diminuto (25) e com cirurgia cardíaca ainda mais, com apenas seis9. Não nos parece, assim, ser possível fazer uma comparação sobre recursos disponíveis entre Portugal e os Estados Unidos, mesmo salvaguardando a dimensão dos dois países.
Relativamente ao objetivo proposto de avaliação do acesso a novas tecnologias (novos dispositivos médicos e novos fármacos) nos dois países, o artigo é particularmente interessante, educativo e, eventualmente, desconhecido, para a maioria dos cardiologistas portugueses. A doença coronária foi o paradigma para esta avaliação, porque os gastos com dispositivos médicos são cada vez mais elevados.
Os Estados Unidos servem como benchmark para Portugal, embora tenham um sistema de saúde essencialmente privado, muito maior despesa de saúde per capita e por terem uma agência regulatória, a Food and Drug Administration (FDA), que é referência a nível mundial para avaliação de dispositivos e de medicamentos. Em Portugal, o sistema é essencialmente público e, no espaço europeu e dentro da Comunidade Europeia, cada país pode ter regulamentos e práticas completamente diferentes, derivados da eficiência do processo regulatório, das limitações do sistema de reembolso, da capacidade económica individual, dos recursos disponíveis, etc. Os médicos desconhecem, geralmente, como se faz todo o processo de avaliação, aprovação e entrada no mercado de medicamentos e pensam que, para os dispositivos médicos, basta que tenham a marca CE (conformidade europeia) para poderem ser usados em Portugal. O artigo é particularmente educativo neste aspeto.
É sintomático que só em 2015 tenha sido criado em Portugal um SiNATS4, nomeadamente medicamentos e dispositivos médicos, sob a responsabilidade do INFARMED. Por este motivo, o artigo procurou avaliar a situação de acesso a dispositivos médicos e medicamentos anterior ao referido SiNATS. Desconhecendo se este sistema já estará em funcionamento no «terreno», devo reconhecer que Portugal será sempre diferente dos Estados Unidos. Não sei, igualmente, se este sistema irá facilitar ou burocratizar ainda mais a avaliação, a aprovação e a comercialização de medicamentos e dispositivos médicos. Talvez uma das razões porque os dispositivos médicos são introduzidos e utilizados mais precocemente em Portugal (ou na Europa) do que nos Estados Unidos, seja porque necessitam apenas da marca de certificação CE, embora em Portugal os dispositivos de alto risco devam ser sempre registados com o INFARMED antes da sua comercialização.
O artigo confirma que os medicamentos são comercializados mais cedo após aprovação nos Estados Unidos (mais de 70% dos medicamentos) do que em Portugal e outros países. Por outro lado, o sistema na União Europeia (UE) é mais eficaz na aprovação e entrada no mercado dos dispositivos médicos (12 dos 16 dispositivos analisados tiveram autorização de comercialização mais cedo em Portugal). Neste aspeto, o contraste entre Portugal e os Estados Unidos é interessante, mas não sei se será apenas uma curiosidade ou um fator com influência na qualidade dos cuidados médicos, apesar de as novas tecnologias poderem ser mais custo‐eficazes.
A Agência Europeia dos Medicamentos (EMA) fornece a autorização para comercialização de um fármaco na UE, mas a centralização é apenas obrigatória para alguns fármacos. Como é dito no artigo, em 2012, a EMA só foi responsável por aproximadamente 13% das aprovações de comercialização de fármacos em Portugal.
Portugal sofre nos últimos anos, como outros países, de cortes na saúde que não são exclusivamente na dotação orçamental para os hospitais, centros de saúde e pessoal, mas igualmente para os custos com medicamentos e entrada no mercado de novos dispositivos médicos. Quanto aos medicamentos, o governo divulga que os genéricos são iguais aos fármacos originais (o que nem sempre é verdade e o exemplo é o Lasix [original], muito mais eficaz por comparação com a Furosemida [genérico] dado em ambulatório ou em meio hospitalar), havendo incentivos a farmácias de oficina e até a médicos para a sua prescrição. É assim difícil a entrada de novos fármacos, tal como é a decisão de comparticipação (e custo) antes da comercialização (para confirmar a eficácia).
Antes da entrada em funcionamento do SiNATS no INFARMED, a introdução em Portugal de novos dispositivos era relativamente «pacífica». As limitações seriam sobretudo pelo seu custo, mas este seria um problema para os hospitais que decidiam sobre se haveria cabimento no respetivo orçamento, e dependeria de haver sensibilização dos conselhos de administração para a prestação de melhores e mais modernos cuidados que pudessem beneficiar a população doente. Os exemplos típicos atualmente são a disponibilidade de válvulas aórticas para implantação percutânea, os dispositivos para encerramento do apêndice auricular esquerdo, os novos tipos de stents absorvíveis, etc. A avaliação e aprovação dos novos dispositivos na Europa não requerem estudos aleatorizados e este será o principal motivo para a sua entrada no mercado mais precocemente de que nos Estados Unidos. Apesar desta vantagem, são múltiplos os exemplos de alertas de segurança após comercialização e «recolhas» precoces de dispositivos na Europa por não ter havido tempo e experiência suficiente antes da comercialização, ao contrário do exigido em ensaios clínicos nos Estados Unidos pela FDA. Este é um tema em estudo no Parlamento Europeu na procura de nova regulamentação10.
O artigo é altamente informativo, apesar de considerar que a comparação entre Portugal e os Estados Unidos, em que aspeto for e também na área da saúde, é uma missão praticamente impossível.
Fica a mensagem principal de que a diferente capacidade em adotar e difundir tecnologias de saúde (a maioria dos fármacos são aprovados mais cedo em Portugal mas comercializados mais cedo nos Estados Unidos; a maioria dos dispositivos têm autorização de comercialização mais cedo em Portugal mas alguns tiveram difusão mais rápida nos Estados Unidos), poderão ter contribuído para a melhoria de qualidade dos cuidados de saúde em Portugal para além do melhor perfil de risco epidemiológico em Portugal.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.