A determinação dos níveis séricos de peptídeos natriuréticos (porção aminoterminal do peptídeo natriurético tipo B–NT‐proBNP ou da porção carboxiterminal ‐ BNP) constituiu avanço científico com impacto clínico muito relevante no diagnóstico e na determinação prognóstica de doentes com insuficiência cardíaca (IC). São hoje um instrumento com valor reconhecido nesse contexto e diversos estudos sugerem o seu interesse na titulação da terapêutica desses doentes. Recentemente, com o conhecimento do valor terapêutico do uso de inibidores da neprilisina/antagonista dos recetores da angiotensina, o uso desses dois biomarcadores na IC carece de interpretação diversa. O uso desses fármacos associa‐se à redução dos níveis de NT‐proBNP mas a aumento dos níveis de BNP. Os autores neste artigo conciso reveem a interpretação e valorização dos níveis de peptídios natriuréticos à luz da evidência mais recente.
Assessment of serum levels of natriuretic peptides, especially the amino‐terminal portion (NT‐proBNP) and the carboxy‐terminal portion (BNP) of pro‐B‐type natriuretic peptide, has had a highly significant clinical impact on the diagnosis and prognostic stratification of patients with heart failure (HF). They are now an instrument with recognized value in this context and several studies have demonstrated their value in tailoring therapy for these patients. Following the recent advent of angiotensin receptor‐neprilysin inhibitors (ARNIs), there is a need to review how these two biomarkers are interpreted in HF. The use of ARNIs is associated with a reduction in NT‐proBNP but an increase in BNP levels. The authors of this concise article review the interpretation of natriuretic peptide levels in the light of the most recent evidence.
Desde o fim do século XX que se tem observado uma explosão de investigação clínica sobre biomarcadores na insuficiência cardíaca (IC), fundamentalmente do peptídeo natriurético (PN) tipo B. É hoje clara e substancial a importância que o uso desse PN tem no diagnóstico de IC, especialmente da IC aguda.1 De facto, com o uso da determinação do peptídeo natriurético tipo B, quer a sua porção carboxiterminal (BNP) quer a sua porção aminoterminal (NT‐proBNP), os clínicos conseguem determinar o mecanismo associado à dispneia – IC, quando o valor elevado, ou causa não cardíaca, (mais frequentemente doença pulmonar) quando está baixo.2,3 Esse valor diagnóstico do PN tipo B é ainda mais relevante – e está atualmente bem reconhecido – quando existe clinicamente elevado grau de incerteza sobre o mecanismo subjacente à dispneia no doente agudo.4 Na maioria dos serviços de urgência portugueses esse instrumento está disponível e será um desafio avaliar a sua custo/efetividade no nosso sistema de saúde. Em outros sistemas de saúde a sua mais‐valia clínica, inclusive custo/efetividade, já foi claramente demonstrada.5,6
Também o valor prognóstico do PN tipo B é hoje reconhecido em todo o espectro de gravidade da IC, quer em doentes agudos, quer crónicos.7–9 Adicionalmente sabemos que o seu perfil de variação se associa de forma importante ao prognóstico.10,11 Doentes com valores de peptídeo natriurético tipo B que aumentam apesar do aprimoramento da terapêutica têm um prognóstico significativamente mais reservado do que doentes nos quais se observam reduções significativas (> 30%) dos seus valores.10–14 Essas observações estiveram na génese de diversos estudos que tentaram avaliar se os níveis de PN tipo B poderiam constituir um objetivo válido na avaliação da eficácia do tratamento de doentes com IC. Esses estudos também se basearam na evidência verificada entre o uso de terapêuticas ligadas à melhoria prognóstica e à diminuição dos níveis de PN tipo B. Para além das observações da associação dos níveis de PN tipo B ao prognóstico, também a constatação de que as terapêuticas que se associam à melhoria do prognóstico se associavam a reduções dos níveis de PN tipo B (com exceção dos bloqueadores adrenérgicos, que apenas se associam a reduções no médio prazo) foram a razão para a feitura desses estudos. Os resultados (atualmente 10 ensaios) mostraram conclusões divergentes.15,16 De facto, diferentes desenhos dos vários estudos, objetivos de redução dos níveis de PN tipo B diversos e com metodologias usadas também diferentes dificultam a valorização dos resultados. Alguns aspetos foram contudo comuns a todos os estudos, a terapêutica com o objetivo de reduzir os níveis de PN tipo B não se associou a maior incidência de efeitos adversos e parece haver maior benefício da terapêutica guiada pelo PN nos doentes com menos de 75 anos. Outros aspetos relevantes na interpretação desses biomarcadores são a identificação dos doentes em que a modulação do sistema dos PN será bem mais difícil por «exaustão»/incapacidade fisiopatológica de plasticidade.17 Embora esses resultados não demonstrem cabalmente ser esse o caminho a seguir no tratamento individualizado dos doentes com IC, a estratégia mantém grande potencial e por isso continua em investigação.
Recentemente, a comunidade científica foi surpreendida pelos resultados do estudo que comparou o sacubitril‐valsartan, um inibidor da neprilisina e dos recetores da angiotensina (ARNI), com a terapêutica padrão da IC crónica, o enalapril (PARADIGM‐HF). O sacubiril/valsartan modula simultaneamente o sistema dos PN e o sistema da renina‐angiotensina‐aldosterona, um novo paradigma no tratamento da IC crónica.18 O sacubitril inibe diretamente a neprilisina, uma endopeptidase neutra responsável pela degradação de várias substâncias vasoactivas endógenas, entre elas os PN tipo A, B e C, a angiotensina (justifica o uso simultâneo do valsartan), a bradicinina, a adrenomedulina – ainda que com afinidades diferentes – pelo que o seu uso resulta previsivelmente num aumento dos níveis séricos do BNP.19In vitro, a neprilisina é responsável pela clivagem do BNP a vários níveis, os vários ensaios usados para a determinação dos níveis séricos de BNP detetam etitopos diferentes, levam a uma variação de 25% nos níveis séricos do BNP consoante a identificação de etitopos identificados pelos anticorpos de cada teste laboratorial. É certo que o sacubitril valsartan afeta todos os ensaios, poderá fazê‐lo em proporções diferentes e desafiar mais ainda a interpretação dos níveis séricos de BNP.19,20 Ao contrário do BNP, a porção N‐terminal do pro‐BNP (NT‐proBNP) não é substrato para a neprilisina, pelo que o seu doseamento não é afetado diretamente pelo mecanismo de ação do fármaco.
No PARADIGM‐HF, com o uso do sacubitril‐valsartan, foi observada uma elevação de cerca de 10% nos níveis de BNP e de 90% nos níveis urinários de cGMP (segundo mensageiro do BNP) e uma redução dos níveis de NT‐proBNP em 20 a 30% em curto e médio prazo. Resultados recentes do ensaio PARADIGM – HF mostraram que os doentes que atingiram reduções de NT‐proBNP para valores inferiores a 1.000 pg/l tiveram menor mortalidade cardiovascular ou internamento por IC independentemente do braço de tratamento a que estavam alocados – verificou‐se uma diminuição do risco relativo de 59% quando comparados com os que não diminuíram os níveis de NT‐proBNP abaixo dos 1.000 pg/dl).14 O tratamento com sacubitril‐valsartan diminuiu o NT‐proBNP para níveis inferiores a 1.000 pg/ml cerca de duas vezes mais frequentemente do que o enalapril (31 versus 17% dos doentes, respetivamente).14 Essas observações tornam o uso de NT‐proBNP na prática clínica futura como o instrumento preferencial na monitoração de doentes com IC. É um facto que desconhecemos ainda qual o comportamento do BNP em longo prazo em doentes sob terapêutica com inibidores da neprilisina/antagonistas da angiotensina, pode até haver uma redução ulterior dos níveis de BNP, mas o seu potencial de monitoração estará sempre comprometido. Na opinião dos autores, os clínicos deverão conhecer bem e ter experiência no uso de uma das formas do PN tipo B, à luz do conhecimento atual o NT‐proBNP é o instrumento que melhores possibilidades oferece ao clínico no espectro da sua utilidade clínica.
Recentemente, e decorrente de investigação dessa nova classe farmacológica, a neprilisina solúvel tem vindo a ser estudada como um potencial novo biomarcador na IC aguda e crónica, há observações preliminares que sugerem um valor superior ao NT‐proBNP como biomarcador associado ao prognóstico.20–23 Mais investigação será necessária para aperfeiçoar reagentes e testar essa hipótese antes que esse biomarcador possa eventualmente ser introduzido na prática clínica.
Sumário- ‐
O peptídeo natriurético tipo B‐ BNP/NT‐proBNP é um instrumento importante no diagnóstico de IC;
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O peptídeo natriurético tipo B‐ BNP/NT‐proBNP tem valor no exercício prognóstico em todo o espectro de gravidade da IC;
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O benefício clínico do uso do peptídeo natriurético tipo B‐ BNP/NT‐proBNP na monitoração de doentes com IC não está ainda provado;
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Os clínicos devem estar familiarizados com o uso de uma das formas de peptídeo natriuretico tipo B, atualmente o NT‐proBNP é o que mais possibilidades oferece no espectro da sua utilidade clínica.
Os autores declaram não haver conflitos de interesse.
Ao Dr. Nelson Lopes (Departamento Médico, Roche) pelo apoio logístico e científico.