A insuficiência cardíaca é um problema grave de saúde pública que atinge um elevado número de indivíduos e está associada a mortalidade e morbilidade elevadas. O presente estudo tem como objetivo estimar o cenário provável no que respeita à prevalência de IC em Portugal e respetivas consequências a curto, médio e longo prazo.
MétodosA presente avaliação tem por base o projeto EPICA (Epidemiologia da Insuficiência Cardíaca e Aprendizagem) desenhado para obter estimativas de prevalência de insuficiência cardíaca crónica em Portugal continental, em 1998. Foram feitas estimativas de prevalência de insuficiência cardíaca, para indivíduos com idade superior a 25 anos, distribuídos por faixa etária e por sexo, recorreu‐se aos dados do Censo 2011, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Estatística.
ResultadosBaseados nas alterações demográficas esperadas, associadas a um envelhecimento marcado da população, iremos encontrar um número muito elevado de portugueses afetados por essa síndrome. Assumindo a manutenção das práticas clínicas atuais, estima‐se que a prevalência de insuficiência cardíaca em Portugal continental aumente em cerca de 30% em 2035 e 33% em 2060, relativamente a 2011, com um número de 479 921 e 494 191 indivíduos afetados para 2035 e 2060, respetivamente.
ConclusõesPara além do elevado número de doentes esperado, estima‐se que as hospitalizações e a mortalidade associadas à síndrome aumentem significativamente o impacto económico da IC. Nesse sentido, revela‐se de extrema importância a consciencialização para a síndrome, o que facilitará o diagnóstico, a referenciação precoce de doentes e uma melhor gestão da insuficiência cardíaca, diminuindo o peso da doença em Portugal.
Heart failure is a major public health problem that affects a large number of individuals and is associated with high mortality and morbidity. This study aims to estimate the probable scenario for HF prevalence and its consequences in the short‐, medium‐ and long‐term in Portugal.
MethodsThis assessment is based on the EPICA (Epidemiology of Heart Failure and Learning) project, which was designed to estimate the prevalence of chronic heart failure in mainland Portugal in 1998. Estimates of heart failure prevalence were performed for individuals aged over 25 years, distributed by age group and gender, based on data from the 2011 Census by Statistics Portugal.
ResultsThe expected demographic changes, particularly the marked aging of the population, mean that a large number of Portuguese will likely be affected by this syndrome. Assuming that current clinical practices are maintained, the prevalence of heart failure in mainland Portugal will increase by 30% by 2035 and by 33% by 2060, compared to 2011, resulting in 479 921 and 494 191 affected individuals, respectively.
ConclusionsIn addition to the large number of heart failure patients expected, it is estimated that the hospitalizations and mortality associated with this syndrome will significantly increase its economic impact. Therefore, it is extremely important to raise awareness of this syndrome, as this will favor diagnosis and early referral of patients, facilitating better management of heart failure and helping to decrease the burden it imposes on Portugal.
A insuficiência cardíaca (IC) é um problema grave de saúde pública que, apesar dos avanços no tratamento farmacológico e não farmacológico, bem como na gestão da sindrome, atinge um elevado número de indivíduos e está associado a mortalidade e morbilidade elevadas1,2. É uma síndrome clínica caracterizada por sintomas e sinais causados pela presença de disfunção cardíaca objetiva1.
Os fatores de risco predisponentes mais relevantes para a IC, identificados na população em geral, incluem: doença arterial coronária, hipertensão arterial, hipercolesterolemia, diabetes, tabagismo e obesidade3. A presença de múltiplas comorbilidades é uma das principais determinantes do prognóstico e da qualidade de vida4–6.
Existem diversos estudos publicados relativamente à prevalência da IC. No entanto, devido às diferenças entre populações e à falta de uniformidade dos critérios usados, tanto na definição como no diagnóstico de IC, os resultados obtidos são divergentes, o que leva a inconsistências nas estimativas de prevalência e de incidência da síndrome1,4.
Não obstante, a prevalência da IC em países desenvolvidos é estimada em cerca de 2% da população adulta e os dados de incidência revelam que a IC afeta entre 5‐10 pessoas por cada 1000, anualmente. Vários estudos apontam que ambas as medidas de frequência aumentam progressivamente com o avançar da idade2,5. Em Portugal, a prevalência global da IC crónica na população adulta foi estimada no estudo EPICA em 4,36%, atingiu 12,67% na faixa dos 70‐79 anos e 16,14% acima dos 80 anos5. O impacto económico dessa síndrome é muito elevado e em países desenvolvidos os custos diretos da IC representam cerca de 2% do orçamento total para a saúde3. Em termos globais, estima‐se que o valor tenha ascendido aos 102 mil milhões de euros em 2012, numa amostra que engloba 92,4% de todos os países e 98,7% da população mundial para esse ano7.
Com o envelhecimento da população, aliado ao aumento da sobrevivência de doentes com doença arterial coronária, é esperado que o impacto da síndrome aumente substancialmente8. O presente documento pretende avaliar e antecipar o cenário mais provável de prevalência e respetivas consequências, caso não sejam tomadas medidas para diminuir o impacto da síndrome nos próximos anos.
MétodosTerminologia e população do estudoA presente avaliação tem por base o estudo EPICA (Epidemiologia da Insuficiência Cardíaca e Aprendizagem) assim como os dados do Censo 2011 e as projeções populacionais para 2018, 2035, 2060 e 2080, a partir de dados do INE5.
O EPICA foi um estudo observacional transversal baseado numa amostra da população adulta dos utentes dos centros de saúde de Portugal continental, representativa da população portuguesa em geral, estudada entre 1998‐20005. O objetivo principal foi estimar a prevalência global da IC crónica, específica por idade e sexo, de acordo com as Recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia para o diagnóstico de IC à data: sintomas e sinais compatíveis com IC e evidência objetiva de disfunção cardíaca5. Foram estabelecidas as seguintes faixas para análise: 25‐49 anos, 50‐59, 60‐69, 70‐79 e acima de 80.
De acordo com o tipo de disfunção cardíaca predominante, avaliada por ecocardiograma, foram definidos cinco subtipos de IC que incluem IC por disfunção sistólica do VE (fração de encurtamento do VE < 28% na ausência de alteração segmentar, equivalente a uma fração de ejeção do VE < 45%) e IC com função sistólica preservada (fração de encurtamento do VE ≥ 28%, equivalente a uma fração de ejeção do VE ≥ 45%), doença valvular, doença do pericárdio e IC direita, as restantes são classificadas como multifatoriais5.
Análise estatísticaAs estimativas de prevalência de IC, para indivíduos com idade superior a 25 anos, distribuídas por faixa etária e sexo, foram obtidas a partir de dados do estudo EPICA. A prevalência global de IC calculada no estudo EPICA foi de 4,36% e correspondeu, à data, a 264 000 indivíduos com a síndrome. Em particular, a prevalência estimada de IC de acordo com a faixa etária analisada foi de: 25‐49 anos, 1,36%; 50‐59, 2,93%; 60‐69, 7,63%; 70‐79, 12,67%; e na faixa com idade superior a 80 anos, 16,14%.
Adicionalmente, recorreu‐se aos dados do Censo 2011, feito pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) para aferir o número de indivíduos residentes em Portugal continental. As projeções populacionais, para 2018, 2035, 2060 e 2080, foram determinadas a partir de dados do INE em que as estimativas provisórias de população residente em 31 de dezembro de 2015 constituem a população base para as projeções de população. O INE recorreu ao método das componentes por coortes para o cálculo das projeções de população residente no qual são formuladas hipóteses sobre os níveis futuros de fecundidade, mortalidade e migrações9.
Foi assumido o cenário central, o qual associa as hipóteses de evolução central para a fecundidade e para a mortalidade e o cenário otimista para as migrações, ou seja, conjuga um conjunto de hipóteses consideradas como mais prováveis face aos recentes desenvolvimentos demográficos. De acordo com o INE, a hipótese central para a fecundidade pressupõe uma recuperação moderada dos níveis futuros de fecundidade, com o índice sintético de fecundidade (ISF) a atingir em 2080 um valor central entre as hipóteses pessimista e otimista: 1,55 criança por mulher. A hipótese central de mortalidade admite a continuação das tendências recentes de melhoria da mortalidade, com a esperança de vida à nascença a atingir em 2080, para Portugal, 87,38 anos para os homens e 92,10 anos para as mulheres. Relativamente à hipótese otimista para as migrações, ela considerou a possibilidade de recuperação dos saldos migratórios para valores positivos mais elevados e a atingir em 2080 um saldo migratório positivo de 29.8929.
As estimativas de prevalência, de cada grupo etário e sexo, foram multiplicadas pelos valores absolutos obtidos no Censo 2011 e pelas projeções de população para 2018, 2035, 2060 e 2080 para estimar o número de indivíduos com IC nos referidos anos.
O número de utentes saídos e a taxa de mortalidade intra‐hospitalar foram calculados com base nas estimativas de prevalência de 2011 e nos dados do relatório do Programa Nacional para as Doenças Cérebro‐Cardiovasculares de 2015, publicado pela Direção Geral de Saúde (DGS)10.
ResultadosNúmero de indivíduos afetados pela síndromeA presente projeção sugere que o número de doentes com IC em Portugal continental aumentará cerca de 7% em 2018, 30% em 2035 e 33% em 2060, relativamente a 2011, traduz‐se num número absoluto de 397 805, 479 921 e 494 191 indivíduos afetados, respetivamente. Já em 2080, espera‐se que o número de doentes com IC atinja os 437 004, refletindo a diminuição prevista da população dos atuais 10,3 para 7,5 milhões de pessoas9. As estimativas por grupos etários encontram‐se representadas na figura 1.
As projeções indicam que o número de indivíduos com idade superior a 60 anos, com IC, irá ascender aos 312 649 em 2018, 405 897 em 2035, 436 506 em 2060 e 389 130 em 2080.
Destaca‐se o aumento considerável do número de doentes com IC, acima dos 80 anos, nomeadamente a partir de 2035. Superará, a partir de então, todos os restantes intervalos etários. Nessa faixa etária, em 2017, estima‐se que o número de doentes tenha atingido os 83 019 indivíduos. Já em 2018 é esperado um aumento de cerca de 20%, em 2035 de 73% e, em relação a 2060, é esperado um incremento de 168% no número de indivíduos afetados nessa faixa etária, relativamente a 2011. tabela 1.
Estimativa, em números absolutos, dos diversos tipos de IC na população com idade superior a 25 anos
Subtipo de IC | Disfunção sistólica | Função sistólica preservada | Doença valvular | Doença pericárdica | IC direita |
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Prevalências EPICA | |||||
1998‐2000 | |||||
M (%) | 1,91 | 0,88 | 0,68 | 0,05 | 0,63 |
F (%) | 0,75 | 2,42 | 0,70 | 0,03 | 0,28 |
Censo | |||||
2011 | |||||
M | 66 715 | 30 738 | 23 752 | 1746 | 22 006 |
F | 29 933 | 96 584 | 27 937 | 1197 | 11 175 |
MF | 96 648 | 127 322 | 51 689 | 2944 | 33 181 |
Cenário central | |||||
2018 | |||||
M | 65 408 | 30 136 | 23 287 | 1712 | 21 574 |
F | 29 988 | 96 762 | 27 989 | 1200 | 11 196 |
MF | 95 396 | 126 898 | 51 276 | 2912 | 32 770 |
2035 | |||||
M | 65 441 | 30 151 | 23 298 | 1713 | 21 585 |
F | 30 156 | 97 303 | 28 145 | 1206 | 11 258 |
MF | 95 597 | 127 454 | 51 444 | 2919 | 32 843 |
2060 | |||||
M | 57 769 | 26 616 | 20 567 | 1512 | 19 055 |
F | 26 430 | 85 282 | 24 668 | 1057 | 9867 |
MF | 84 199 | 111 898 | 45 235 | 2569 | 28 922 |
2080 | |||||
M | 51 381 | 23 673 | 18 293 | 1345 | 16 948 |
F | 22 356 | 72 134 | 20 865 | 894 | 8346 |
MF | 73 737 | 95 807 | 39 158 | 2239 | 25 294 |
Legenda: Para o período 1998‐2000 (estudo EPICA) são apresentadas as prevalências de indivíduos com mais de 25 anos, por subtipo de IC e por sexo, na população portuguesa. Para 2011, 2018, 2035, 2060 e 2080 são apresentadas as projeções para os números absolutos de indivíduos com mais de 25 anos, por subtipo de IC e por sexo, na população portuguesa.
F: sexo feminino; M: sexo masculino; MF: somatório de indivíduos do sexo masculino e feminino.
De acordo com o estudo EPICA, constatou‐se que a IC com função sistólica preservada é a mais frequente, seguida da IC por disfunção sistólica. Em relação à IC com função sistólica preservada, em 2018, estima‐se que o número absoluto de doentes atinja os 126 898 indivíduos. De realçar que temos uma prevalência superior no sexo feminino, 96 762 indivíduos, no mesmo ano.
Relativamente à disfunção sistólica encontramos uma prevalência superior no sexo masculino espera‐se, assim, que 65 408, 65 441, 57 769 e 51 381 indivíduos do sexo masculino sejam afetados por esse tipo de IC em 2018, 2035, 2060 e 2080, respetivamente.
Foi, ainda, estimado o número absoluto de indivíduos com IC, relativamente à classificação da NYHA (figura 2). Assim, em 2035 é expectável que o número de doentes em ambulatório com IC em classe II da NYHA ascenda a 112 781 e em classes III e IV ascenda a mais de 136 000 indivíduos (figura 2).
Hospitalizações e mortalidadeConsiderando que, em 2011, a estimativa de doentes com idade superior a 25 anos com IC seria de 371 264 indivíduos e analisando o relatório do Programa Nacional para as Doenças Cérebro‐Cardiovasculares de 2015, publicado pela Direção Geral de Saúde (DGS), verificou‐se que em 2011 o número de utentes saídos após episódio de IC aguda correspondeu a 15 624. De acordo com as projeções feitas para 2018, 2035, 2060 e 2080, estima‐se que o número de utentes saídos atinja aproximadamente os 16 708, 20 157, 20 756 e 18 354, respetivamente. Se a taxa de mortalidade intra‐hospitalar se mantiver, e assumindo o valor mais recente de 2014, de 12,5%, é esperado que o número de óbitos em internamento, dos doentes admitidos por IC aguda, atinja os 2088, 2520, 2595 e 2294, nos mesmos anos.
DiscussãoDe entre os vários fatores que contribuem para o aumento da prevalência de IC, o envelhecimento assume um papel determinante. De acordo com as projeções da população residente, Portugal perderá população devido à diminuição do número de nascimentos e, consequentemente, seria expectável uma diminuição do número de indivíduos com IC. No entanto, o envelhecimento da população contrariará essa expectativa. É esperado um aumento significativo do número de indivíduos com IC, a atingir os 494 191, em 2060. Com base nessa projeção, prevê‐se que o número de doentes, com idade superior a 60 anos (312 649 indivíduos), ultrapasse, já em 2018, o número anteriormente estimado no estudo EPICA, para o total de indivíduos adultos com IC, englobando todas as faixas etárias (264 000 indivíduos)5.
Num estudo feito nos EUA, cuja metodologia foi semelhante à da presente análise, foram obtidos resultados sobreponíveis aos da presente projeção. Estima‐se que em 2030 o número de doentes afetados pela IC irá aumentar em 46% relativamente a 2012, atingirá assim oito milhões de indivíduos no país. Em Portugal, antecipa‐se que em 2035 o número de doentes adultos afetados pela IC aumente cerca de 30%, relativamente a 2011. Devido ao envelhecimento esperado da população nos EUA, é estimado que o número de doentes com idade superior a 80 anos atinja, em 2030, um aumento de 66% relativamente a 201211. Em Portugal, entre 2011 e 2035, é esperado um aumento similar na mesma faixa etária, que corresponderá a 73%. Como é notório, as alterações demográficas predizem um rápido aumento do número de indivíduos com IC.
A análise da projeção relativa aos subtipos de IC indica que já em 2018 iremos ter 126 898 indivíduos com IC com função sistólica preservada, na sua grande maioria idosos e do sexo feminino, o que corrobora a literatura existente12. Considerando as tendências populacionais do INE, é esperado que esse subtipo de IC aumente. De salientar o facto de a IC com fração de ejeção preservada ter critérios de diagnóstico menos consensuais e, assim, mais desafiantes e de, até ao momento, não haver qualquer tratamento capaz de objetivamente diminuir a mortalidade, contrariamente à IC com FEVE diminuída2. Admitimos estar a assistir a uma mudança epidemiológica da IC, uma vez que vários estudos revelam um aumento de prevalência de IC com FEVE preservada, em parte atribuível quer ao envelhecimento quer ao aumento dos fatores de risco e comorbilidades, que acompanham e contribuem para o desenvolvimento da IC, e uma diminuição da prevalência de IC com FEVE diminuída13.
A classificação funcional da NYHA é dos mais fortes preditores independentes de prognóstico na IC2,4. Em 2035, é esperado que o número de doentes nas classes III e IV da NYHA, em ambulatório, atinja mais de 136 000 indivíduos. São fases graves da doença que se encontram associadas a uma maior complexidade na gestão do doente, bem como a um impacto superior sobre o sistema nacional de saúde, inerente a um maior número de internamentos com consequente aumento da morbilidade e mortalidade associadas, uma vez que os dados disponíveis nos mostram que a hospitalização contribui até 80% para os custos com a síndrome. Adicionalmente, salienta‐se que o número de doentes em classe IV, estimado a partir do estudo EPICA, estará provavelmente infraestimado. Uma vez que o estudo foi feito em contexto de ambulatório, é expectável que o número de indivíduos em classe IV, mais habitualmente seguidos em meio hospitalar, seja, na realidade, superior.
Diversos estudos que examinaram a tendência das hospitalizações por IC ao longo dos anos revelam um valor máximo na década de 1990, seguido por um decréscimo a partir dessa data, na população idosa. Os fatores que contribuem para a diminuição do número de hospitalizações incluem: redução e/ou melhor controlo médico dos fatores de risco, como a hipertensão arterial e o tabagismo; diminuição da incidência de enfarte agudo do miocárdio (EAM); bem como a criação de programas multidisciplinares dedicados à gestão da IC e, por outro lado, um aumento do número de doentes diagnosticados e tratados precocemente nos cuidados de saúde primários4,14,15.
Não obstante, a IC representa a principal causa de hospitalização em indivíduos com idade superior a 65 anos, o que atesta o impacto da síndrome nos países ditos desenvolvidos16,17. De facto, em Portugal, um estudo feito com recurso à base nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (GDH) avaliou a tendência dos episódios de internamentos por IC e verificou que entre 2000 e 2015 o número de doentes internados por IC duplicou, particularmente nas faixas entre os 66‐80 anos e superior a 81 e encontrou‐se uma associação significativa com a presença de fatores de risco18. Considerando, igualmente, a tendência para o envelhecimento da população portuguesa, será de prever um aumento significativo do número de hospitalizações e dos custos médicos diretos com o tratamento da IC, caso não se tomem medidas e se alterem práticas. Efetivamente, a presente projeção vai ao encontro do expectável na medida em que se estima que, considerando o relatório para as Doenças Cérebro‐Cardiovasculares de 2015, para 2018, 2035, 2060 e 2080, o número de utentes saídos, após um episódio de IC aguda, aumente e atinja os 16 708, 20 157, 20 756 e 18 354, respetivamente1. No mesmo relatório é possível verificar uma diminuição da mortalidade intra‐hospitalar por IC, com uma variação negativa de 9,90% entre 2010 e 201410. Morten Schmidt et al. avaliaram as tendências dos últimos 30 anos relativamente às taxas de hospitalização e mortalidade, numa coorte na Dinamarca, e concluíram que a mortalidade a um ano ou a 1‐5 anos também diminuiu consistentemente, entre 1983 e 2012, atingiu um decréscimo superior a 40%15. Importa referir que o relatório para as Doenças Cérebro‐Cardiovasculares, que se recorre da base de codificação dos GDH, apenas usa um código único de GDH correspondente ao diagnóstico principal para a contabilização dos internamentos por IC (CID‐9‐MC: 428). Uma vez que os internamentos por IC podem ser codificados por mais do que um identificador, e que esse código pode surgir como diagnóstico secundário, sendo considerado como motivo principal de internamento o desencadeante do episódio de agudização, a infeção ou a arritmia, por ex., é de esperar que esse resultado não capture o número real de doentes internados com IC, o qual será muito provavelmente superior10,19.
Adicionalmente, são desconhecidos dados relativos ao número total de admissões e readmissões por IC nos serviços hospitalares em Portugal, assumindo as readmissões um peso muito significativo na gestão da IC. Usualmente, as hospitalizações são seguidas por um episódio de readmissão após 30 dias, em 24% dos casos20, ascendendo esse valor a 50% dos doentes após seis meses21. Salienta‐se, desse modo, a importância de avaliar esse indicador em Portugal, uma vez que uma redução das taxas de readmissão pode significar, simultaneamente, uma diminuição de custos e uma melhoria da prestação de cuidados. É por isso, um foco importante dos pagadores públicos e privados nos indicadores de remuneração por desempenho22.
Considerando todos os dados previamente apresentados, existe a firme convicção de que a prevenção da IC e o diagnóstico precoce, assentes no conhecimento da epidemiologia, poderá ter um grande impacto na melhoria da qualidade de vida e na mortalidade e, simultaneamente, reduzir a despesa em cuidados de saúde8,17,23.
Salienta‐se, adicionalmente, a importância da otimização terapêutica dos doentes com IC e FEVE deprimida. O ESC‐HF Long‐Term Registry, registo conduzido pela Sociedade Europeia de Cardiologia, revela que, entre 2011 e 2013, apesar do elevado uso dos fármacos modificadores de doença recomendados nas guidelines, apenas um terço dos doentes recebeu a dose máxima tolerada considerada adequada24. Efetivamente, um estudo europeu sobre a perceção da IC, o estudo Shape, revelou uma baixa compreensão da síndrome e das opções terapêuticas por parte dos especialistas de medicina geral e familiar25. Adicionalmente, a população em geral revelou desconhecimento sobre a natureza, a gravidade, as opções terapêuticas e os custos associados à IC. Por conseguinte, é improvável que o público em geral e os profissionais de saúde solicitem medidas adequadas por parte das autoridades de saúde25.
Também em Portugal se mantém alguma subvalorização da relevância da insuficiência cardíaca, quer ao nível dos profissionais de saúde bem como dos decisores, o que se reflete na falta de definição de fluxos assistenciais e de estruturas dedicadas à IC a vários níveis do SNS e, ainda, na falta de comunicação entre os vários intervenientes no tratamento da síndrome8.
A dificuldade no reconhecimento dos sintomas e da gravidade da doença por parte do público em geral e dos doentes também leva à procura tardia de aconselhamento médico. É necessário aumentar a consciencialização para a IC, quer no nível da identificação da síndrome quer do reconhecimento da sua etiologia, para permitir uma alteração do estilo de vida dos doentes e contribuir para uma diminuição do risco.
Tornou‐se assim essencial priorizar a gestão adequada do doente e da doença no Plano Nacional de Saúde, para que possamos contrariar estas projeções e diminuir a carga da IC em Portugal, nos próximos anos8,17,26.
Limitações do estudoAs presentes projeções são feitas com base nas prevalências estimadas há quase 20 anos pelo estudo EPICA. Salienta‐se que, em Portugal, não foram feitos estudos de atualização de prevalência da IC, motivo pelo qual se recorreu às prevalências do estudo EPICA e às estimativas de população do INE.
Tendo em conta que a presente análise se baseia nos dados do estudo EPICA, mantêm‐se as limitações descritas no mesmo, nomeadamente o facto de a amostra analisada consistir em indivíduos seguidos em contexto de cuidados de saúde primários, e não de população em geral. Uma vez que essa população tende a ser mais doente do que a população em geral, é de admitir que sofra de doença cardíaca mais grave. Por outro lado, é expectável que o número de indivíduos em classe IV esteja infraestimado, uma vez que, habitualmente, esses doentes são seguidos em contexto hospitalar e o estudo EPICA foi feito em contexto de ambulatório. Adicionalmente, uma vez que a população em geral não foi o alvo da avaliação do estudo EPICA, os números obtidos serão presumivelmente inferiores aos números reais.
Por fim, importa sublinhar que as projeções do INE são condicionadas pela estrutura e composição da população no momento de partida e pelos diferentes padrões de comportamento da fecundidade, da mortalidade e migrações estabelecidos em cada uma das hipóteses. Deve, ainda, ter‐se presente que quanto maior for o período de projeção, maior será a incerteza associada.
ConclusõesA IC é uma das principais causas de morbilidade e mortalidade, afeta maioritariamente indivíduos idosos e assume um impacto muito elevado tanto para o doente como para a sociedade em geral13,17.
Com as alterações demográficas esperadas, associadas a um envelhecimento marcado da população, antecipa‐se encontrar nos próximos anos um número importante de portugueses afetados por essa síndrome, o qual poderá duplicar e ascender a cerca de meio milhão de indivíduos, até 2035. A prevalência real de IC em Portugal na atualidade é desconhecida, pelo que se salienta a importância de se estimar com base em dados epidemiológicos, cruciais no processo de decisão e alocação de recursos em cuidados de saúde17.
Para além do elevado número de doentes esperado, estima‐se que as hospitalizações e a mortalidade associadas a essa síndrome aumentem significativamente o impacto económico da IC. Salienta‐se, assim, a importância de aumentar a consciencialização para a síndrome, o que facilitará o diagnóstico precoce, a referenciação de doentes e possibilitará uma gestão correta da IC, com impacto sobre a qualidade de vida dos doentes e a redução dos custos com a gestão da doença.
A possibilidade de antecipar, com a maior sensibilidade possível, o aumento esperado do número de indivíduos afetados por essa síndrome e respetivas consequências a curto, médio e longo prazo é crucial para a tomada de consciência da carga e dos custos da doença, bem como para o desenvolvimento e implementação de estratégias que possam contrariar as estimativas e, desse modo, reduzir significativamente a epidemia antecipada.
Conflitos de interesseCândida Fonseca é consultora da Novartis, Orion, OM Pharma, Bayer e Servier (empresas que desenvolvem e vendem tratamentos para insuficiência cardíaca e comorbilidades) e participa nos comités executivos e comités científicos de estudos clínicos promovidos pela Novartis, Servier, Bayer e OM Pharma. Adicionalmente, recebeu honorários como palestrante da Novartis, Servier, OMPharma e Orion na área de insuficiência cardíaca. Inês Araújo recebeu honorários como palestrante da Servier, Novartis e Orion. É ainda coinvestigadora de estudos clínicos na área da IC promovidos pela Servier, Novartis e Bayer. Fátima Ceia não tem conflitos de interesse a declarar. Daniel Brás é colaborador da Novartis Farma SA, Porto Salvo, Portugal.
O apoio financeiro para assistência editorial científica foi fornecido pela Novartis Farma – Produtos Farmacêuticos SA. Agradecemos a Marta Maia (W4Research, Lda.) pelo apoio editorial científico a este manuscrito.