O estudo clínico das diferentes patologias e doenças humanas é complexo, porque a influência de vários fatores, por vezes com relações interdependentes, se conjugam entre si. Assim, e para se poderem estabelecer relações causais, são necessários estudos bem delineados e poderosas ferramentas analíticas. Os ensaios clínicos aleatorizados, controlados, têm sido considerados como evidência de nível I, mas nem sempre são apropriados, nomeadamente por questões éticas. No entanto, estudos observacionais bem desenhados têm demonstrado resultados semelhantes aos aleatorizados1,2, sendo que os estudos prospetivos protegem mais de viés no desenho do estudo e da confusão por variáveis codependentes3. Mas os estudos prospetivos são difíceis de realizar, podem exigir duração prolongada para observações adequadas e são dispendiosos na organização e execução3. Por outro lado, os estudos observacionais retrospetivos podem levar menos tempo e são menos dispendiosos do que os estudos prospetivos. No entanto, são suscetíveis de maior viés na seleção e análise de dados3.
Da maior relevância é a qualidade dos dados que suportam qualquer estudo, uma vez que estes são o suporte dos resultados, logo, das conclusões. Quando se utilizam registos que não foram concebidos de raiz para um determinado estudo, os dados disponíveis podem ser insuficientes ou de má qualidade, existindo frequentemente uma ausência de elementos sobre potenciais fatores de confundimento. A deficiente qualidade dos dados registados é uma realidade a que nenhuma instituição se encontra imune, constituindo um obstáculo à sua efetiva utilização4. Embora nunca sejam tão perfeitos como o pretendido, a análise de dados retrospetivos enferma de maiores problemas, nomeadamente porque a metodologia de obtenção das variáveis não foi previamente estabelecida.
Diferentes índices antropométricos têm sido utilizados para a avaliação do risco de desenvolvimento de doenças, como o índice de massa corporal, o perímetro abdominal e a relação cintura‐anca. Em 1991, Rodolfo Valdez, considerando que a obesidade central, mais do que a obesidade generalizada, está associada às doenças cardiovasculares, propôs o índice de conicidade (IC) para avaliação da obesidade e distribuição da gordura corporal5. O IC determina‐se através das medidas da cintura e da estatura, expressas em metros, e do peso corporal, expresso em quilogramas, com a seguinte equação matemática:
O artigo «Estudo do índice de conicidade, índice de massa corporal e circunferência abdominal como preditores de doença arterial coronariana», publicado no presente número da Revista Portuguesa de Cardiologia6, é um estudo observacional, retrospetivo, longitudinal, de uma amostra obtida a partir de uma população específica – indivíduos observados no Instituto de Cardiologia de Cruz Alta (ICCA), Rio Grande do Sul, Brasil, de 2001‐2012. Os dados foram obtidos a partir do «registro geral dos indivíduos do ICCA, alimentado por médico cardiologista desde 2001». Tal implica limitações importantes na avaliação da validade interna do estudo, já que a análise de viés de seleção e informação, da qualidade do seguimento e da presença de fatores de confundimento é difícil. Os autores procuraram ultrapassar algumas das limitações estabelecendo critérios de inclusão e de exclusão, definindo eventos primários e secundários, analisando fatores de confusão, validando a recolha de dados «dos prontuários» e efetuando uma análise estatística cuidada. Mas, e atentas as limitações referidas, não é possível generalizar conclusões.
Diferentemente do estudo acima referido, o citado estudo de Pitanga e Lessa – «Sensibilidade e especificidade do índice de conicidade como discriminador do risco coronariano de adultos em Salvador, Brasil» – foi um estudo transversal, numa amostra probabilística de uma população de adultos, residente em Salvador, Brasil, tendo a metodologia do estudo sido previamente definida e testada: «Dez entrevistadores de campo e duas supervisoras, ambas nutricionistas, foram devidamente treinados para todas as etapas do trabalho. Para testes e correções dos instrumentos e técnicas, inclusive da dinâmica do trabalho de campo, 50 residências (100 participantes) foram visitadas e as entrevistas e exames realizados seguindo toda a metodologia proposta. O grupo teste não está incluído na amostra»7.
O «Estudo epidemiológico de prevalência da síndrome metabólica na população portuguesa» (VALSIM) foi um estudo transversal de uma amostra representativa dos adultos residentes em Portugal continental e ilhas seguidos nos cuidados de saúde primários (CSP)8. O VALSIM procurou determinar a prevalência da síndrome metabólica (SM) e de cada um dos seus componentes na população adulta utente dos CSP, tendo‐se concluído que a prevalência da SM nos utentes adultos dos CSP é elevada, atingindo 27,5% da população, e está fortemente associada à ocorrência de doença cardiovascular e, em particular, de diabetes mellitus8. Num subestudo do VALSIM, verificou‐se que nos diabéticos a prevalência de obesidade é muito elevada, sendo a prevalência de excesso de peso ou obesidade de 84,6% e a prevalência de obesidade abdominal – avaliada segundo os critérios do NCEP‐ATP III – de 69,3%9.
As doenças cardiovasculares são a principal causa de mortalidade e morbilidade a nível mundial, sendo expectável que aumentem na próxima década, predominantemente devido às alterações demográficas, mas também face ao aumento da inatividade física e ao aumento da prevalência da obesidade e da diabetes mellitus. Assim, o IC, uma medida antropométrica ainda pouco estudada, merece maior atenção, pelo que estudo de Fontela et al. é interessante, mas, e como os autores referiram, os «resultados devem ser considerados exploratórios e precisam ser confirmados por estudos futuros».
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.