Em 1923, numa entrevista ao New York Times, George Mallory, que viria a falecer na sua 3ª tentativa de atingir o cume do Evereste (o seu corpo só viria a ser descoberto em 1999), quando questionado sobre o motivo de conquistar esta montanha, respondeu: «because it's there».
Desde então, esta expressão tornou‐se icónica, habitualmente utilizada quando se tenta justificar uma ação ou ambição à partida não justificáveis.
No artigo publicado nesta revista «Implantação simultânea de MitraClip e encerramento do apêndice auricular esquerdo (AAE) com Watchman: a experiência de um centro de referência»1, Francisco et al. descrevem cinco casos de pacientes que efetuaram este procedimento combinado, com excelentes resultados periprocedimento e no follow‐up (médio 243±70,7 dias).
O racional é atrativo: uma vez que ambos os procedimentos requerem um acesso transeptal, porque não combiná‐los? A implantação de MitraClip é dos raros procedimentos de cardiologia de intervenção que não exige qualquer administração de contraste, pelo que a sobrecarga deste é aqui menos provável, o que é fundamental em pacientes com múltiplas comorbilidades, incluindo frequentemente a insuficiência renal.
O não diferir os dois procedimentos tem também a vantagem da diminuição de custos, diminuição do período de tempo de suspensão/alteração dos anticoagulantes, diminuição de potenciais complicações vasculares (já que o acesso é comum), diminuição do tempo total de fluoroscopia e de evitar o efeito aditivo de duas comunicações do septo interauricular residuais. Como desvantagem mais importante temos o prolongamento do tempo do procedimento.
Se, como provam os autores, a punção transeptal de referência para MitraClip – diferente da punção ideal para o encerramento do AAE – não inviabiliza a implantação do dispositivo Watchman, nem este condiciona os movimentos para implantação do MitraClip, esta parece ser uma união que faz particularmente sentido.
Neste contexto, qual é, pois, o elo mais fraco deste procedimento combinado? A meu ver, é a indicação para o encerramento do AAE (como referem aliás os autores, mantém uma indicação classe IIb pelas guidelines da ESC).
Este procedimento continua a ser alvo de alguma controvérsia, de que o agora famoso comentário de novembro de 2016 de John Mandrola (Left atrial appendage closure should stop now)2 é o exemplo mais recente.
E, neste aspeto, a abordagem de Francisco et al. foi imaculada, restringindo a associação do encerramento do AAE a pacientes com indicações sólidas para o fazer: comorbilidades diretamente relacionadas com o risco hemorrágico da toma de anticoagulantes (cirrose hepática, AVC prévio sob anticoagulante oral, anemia crónica com angiodisplasia do cólon, labilidade comprovada de INR e utilização crónica de anti‐inflamatórios não esteroides por patologia osteoarticular degenerativa).
Os doentes selecionados para esta abordagem foram claramente pacientes com um perfil de risco superior (por exemplo, três deles não seriam elegíveis para participar no EVEREST II3, já que tinham uma fração de ejeção<25%; no EVEREST II a média foi de 60%, nesta série 26%) e, diretamente relacionado com a indicação para encerramento do AAE, um score médio CHA2DS2VASc de 4,5±0,6 e um HAS‐BLED de 3,5±0,6. Na maior série publicada com o dispositivo Watchman – meta‐análise4 envolvendo 2406 pacientes dos ensaios PROTECT AF, PREVAIL e respetivos registos –, o CHA2DS2VASc variou entre 3,5±1,6 e 4,3±1,3 e a proporção de pacientes com HAS‐BLED≥3 entre 19,9‐36,2% (na série de Francisco et al. todos tinham um HAS‐BLED≥3).
No único estudo publicado comparando a abordagem combinada com a implantação isolada de MitraClip, Kuwata et al.5 retiram conclusões semelhantes às da série portuguesa em termos de segurança, exequibilidade e eficácia a curto prazo. Nesse estudo, realizado numa população com uma fração de ejeção média de 54% e utilizando os dispositivos Amplatzer e Amulet, o tempo de procedimento (90 versus 66min) e o tempo de fluoroscopia (32 versus 18min) foram os únicos dados que diferiram estatisticamente de forma significativa. O curto follow‐up de ambas as séries é, porventura, a sua maior limitação, pois deixa em aberto o eventual benefício clínico – incluindo a sobrevivência – a médio e a longo prazo das intervenções, particularmente do encerramento do AAE, que constitui a intervenção mais controversa6.
Pelo exposto, acho que o artigo de Francisco et al., ao selecionar escrupulosamente os pacientes a submeter a este procedimento combinado, e na improvável hipótese de vir a realizar‐se um ensaio aleatorizado entre uma abordagem diferida versus combinada, oferece‐nos a evidência possível que a associação de MitraClip e encerramento do AAE por um dispositivo Watchman é exequível, segura e também, pelo menos no curto prazo, eficaz. Nos casos que apresentaram não se limitaram ao «because it's there», mas sim «and last, but not least, because it's there», e devemos estar‐lhes gratos por isso.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.