Homem de 50 anos, insuficiente renal crónico em hemodiálise, submetido a cateterismo cardíaco no contexto de síndrome coronária aguda, que revelou lesões estenóticas focais (tipo A) localizadas na descendente anterior proximal e circunflexa média. Efetuou-se angioplastia ad-hoc com implantação direta de stent. Imediatamente depois, observa-se abrupta queda tensional e o angiograma revela «novas» lesões com redução do fluxo em toda a árvore coronária e instalação de choque cardiogénico. Durante as manobras de reanimação, em dissociação eletromecânica, é administrado verapamil intracoronário com obtenção fluxo coronário TIMI 3, ritmo sinusal e pressão arterial. Assistiu-se progressivamente à melhoria e estabilização clínica. Foi implementado tratamento com antagonistas do cálcio e nitratos, registando-se no seguimento mais 2 admissões hospitalares por angor instável. A coronariografia voltou a revelar locais na árvore coronária que poderiam ser facilmente interpretados como novas lesões, mas as «estenoses» angiográficas foram solucionadas após administração de vasodilatadores intracoronários.
A 50-year-old man, with chronic kidney disease and on dialysis, underwent coronary angiography in the context of acute coronary syndrome, which revealed focal lesions (type A) in the proximal left anterior descending and mid circumflex arteries. Ad-hoc angioplasty was performed on both lesions with direct stenting. An immediate drop in arterial blood pressure was observed and the angiogram showed new lesions with reduced flow throughout the coronary tree, progressing to cardiogenic shock and electromechanical dissociation. During cardiopulmonary resuscitation maneuvers, intracoronary verapamil was administered and TIMI 3 flow, sinus rhythm and a rise in blood pressure were obtained. Clinical stability was progressively restored. The patient was discharged medicated with calcium channel blockers and nitrates. During follow-up, he was twice readmitted for unstable angina. Coronary angiography revealed findings that could easily have been interpreted as new obstructive lesions, but these resolved after administration of intracoronary nitrates.
O vasoespamo coronário espontâneo está associado a alterações do sistema nervoso neurovegetativo1 (alteração do equilíbrio do tónus simpático/vagal) e disfunção endotelial2,3 (com redução da biodisponibilidade de óxido nítrico). Esta entidade é considerada a base fisiopatológica da angina variante/angina Prinzemetal e ocorre entre 1-5% dos procedimentos de diagnóstico e intervenção percutânea, que, pela possibilidade de motivar agressão ou trauma endotelial, podem desencadear ou agravar o espasmo coronário4. A sua localização, distribuição e gravidade determina a gravidade do quadro clínico. Enfarte agudo do miocárdio, arritmias graves, choque cardiogénico e morte são eventos que podem surgir neste contexto5. Na base do tratamento na fase aguda estão os vasodilatadores arteriais coronários.
TextoHomem de 50 anos, insuficiente renal crónico em programa regular de substituição da função renal por hemodiálise, fumador e hipertenso, sem antecedentes de patologia cardíaca conhecida, abuso de cocaína, síncope ou de eventos cardiovasculares, admitido por dor retroesternal em repouso de breve duração, vespertina, durante a sessão de hemodiálise.
Encontrava-se já referenciado para coronariografia invasiva por, nos últimos meses, ter tido episódios clínicos de características similares, embora sem evidência de significativo compromisso isquémico do miocárdio na cintigrafia de perfusão do miocárdio.
À entrada no serviço de urgência, encontra-se oligossintomático (apenas angor muito residual), sendo admitido por angor instável (eletrocardiograma sem alterações significativas e biomarcadores de necrose aguda do miocárdio negativos). Função sistólica global e segmentar do ventrículo esquerdo conservada.
Estimativa de risco, enfarte agudo do mocárdio/morte: a) score GRACE=5% intra-hospitalar e 13% aos 6 meses; b) score TIMI=5% aos 14 dias.
No dia seguinte, é submetido a cateterismo cardíaco. A coronariografia revelou lesões estenóticas focais (tipo A) localizadas na descendente anterior proximal e circunflexa média (Fig. 1).
Efetuou-se angioplastia ad-hoc dos 2 vasos utilizado stent direto (Fig. 2), sendo utilizadas próteses intracoronárias convencionais (3,0 mm × 12mm a nível da descendente anterior proximal e 3,0 mm × 15mm a nível da circunflexa média).
No controlo angiográfico da última lesão abordada (descendente anterior proximal), observa-se bom resultado angiográfico nos locais de implantação prévia de stent, mas é agora visível «nova lesão» pré-stent a nível da circunflexa proximal (Fig. 3).
Imediatamente depois, observa-se queda tensional e o angiograma revela outras «novas lesões» e redução do fluxo em toda a árvore coronária. O doente entra em choque cardiogénico e o angiograma coronário releva retenção de contraste em vários pontos da coronária esquerda, principalmente intrastent e fluxo distal TIMI 0 (Fig. 4A). São iniciadas manobras de suporte básico e avançado de vida, implantação de eletrocateter provisório (ritmo de BAV completo seguido de assistolia ventricular) e colocação de balão de contrapulsação intra-aórtico.
Na figura 4A observa-se retenção de contraste em vários pontos da árvore coronária e redução abrupta do fluxo coronário. A figura 4B é obtida após administração intracoronária de verapamil com restauração do fluxo coronário e resolução do intenso vasoespasmo difuso da árvore coronária esquerda.
Neste cenário, são colocadas várias hipóteses etiológicas, como dissecção coronária ou fenómeno de no reflow, mas aquela que parece mais provável, pelo contexto clínico e angiográfico, é a de espasmo difuso e grave da árvore coronária, sendo administrado, mesmo com o doente em manobras de reanimação e em ritmo de dissociação eletromecânica, verapamil intracoronário, que obteve sucesso, juntamente com todo o restante arsenal farmacológico, associado à tentativa de ressuscitação, com obtenção de fluxo coronário TIMI 3 (Fig. 4B), ritmo sinusal e pressão arterial eficaz.
Foi necessária ventilação invasiva e suporte hemodinâmico com balão intra-aórtico durante 48 h, assistindo-se progressivamente à melhoria e estabilização clínica.
Durante o internamento observaram-se vários episódios angor associados a elevação transitória do segmento ST na monitorização eletrocardiográfica contínua (Fig. 5) com resolução após administração de vasodilatadores coronários.
Posteriormente, teve alta hospitalar para ambulatório, assintomático e sob tratamento com antagonistas do cálcio e nitratos. Até à data atual, registaram-se mais duas admissões hospitalares por angor instável, ambas com quadro clínico muito sobreponível à primeira admissão. Em ambos os eventos, o doente suspendeu total ou parcialmente as recomendações terapêuticas.
No último internamento voltou a proceder-se ao estudo invasivo das coronárias. A coronariografia, mais uma vez, revelou locais na árvore coronária que poderiam ser facilmente interpretados como novas lesões, mas o «defeito» angiográfico foi solucionado após tratamento vigoroso com nitratos intracoronários (Fig. 6).
DiscussãoOs doentes com angina variante apresentam angina típica em repouso associada a supradesnivelamento transitório do segmento ST, que tende a ocorrer principalmente à noite ou nas primeiras horas da manhã6.
O angiograma coronário diagnóstico, envolvendo a administração de nitratos por via intracoronária e, se necessário, a injeção de contraste com cateterização não seletiva exclui, na maioria dos casos, a possibilidade de estarmos perante espasmo coronário e não doença aterosclerótica obstrutiva7.
Estes aspetos clínicos e imagiológicos típicos da doença vasoespástica coronária não estavam completamente presentes na admissão do nosso doente. Apesar de ter tido vários episódios de angor em repouso, estes foram quase sempre durante a sessão (vespertina) de hemodiálise. Certo que não existia evidência de importante compromisso isquémico do miocárdio, dado objetivado pela cintigrafia de perfusão do miocárdio realizada no mês anterior à primeira admissão hospitalar. Estes achados poderiam ter sido argumento para se ter equacionado a hipótese de angina vasoespástica. Contudo, na primeira abordagem hospitalar, os eletrocardiogramas seriados, ainda com angor residual, não revelam alterações ST-T valorizáveis e, na coronariografia diagnóstica, a administração inicial de nitratos não alterou o aspeto angiográfico das lesões observadas. Estes dois últimos achados contribuíram de alguma forma para se avançar para angioplastia coronária, convencidos os operadores de que estavam na presença de doença coronária obstrutiva «fixa».
Embora os espasmos coronários tenham tendência de resolução espontânea, os episódios prolongados podem conduzir a enfarte do miocárdio, arritmias e morte cardíaca súbita. No nosso caso, em que a intervenção coronária teve um importante papel no agravamento do espasmo coronário e instalação de choque cardiogénico8, a morte só foi evitada por uma atitude rápida e consistente no diagnóstico e na implementação do tratamento adequado.
A administração de verapamil intracoronário, mesmo no quadro de choque cardiogénico com dissociação eletromecânica, foi providencial. Sendo até uma contraindicação o seu uso neste contexto, foi o elemento chave para a resolução do grave vasoespasmo que existia e, desta forma, alterar o prognóstico vital do doente.
Como se veio a registar também no nosso caso, o vasoespasmo pode reaparecer em locais distintos do segmento tratado, incluindo espasmo multivaso9.
A revascularização coronária (percutânea e/ou cirúrgica) não está indicada no espasmo coronário isolado sem estenose coronária ateromatosa obstrutiva «fixa»2. Nos internamentos seguintes, foi novamente efetuada avaliação da anatomia coronária, agora já com o conhecimento e cautela em relação ao evento ocorrido no primeiro internamento e com administração de doses generosas de nitratos intracoronários de forma a estabelecer o diagnóstico diferencial entre vasoespasmo isolado (o que se veio a verificar) e doença aterosclerótica obstrutiva.
Embora não tivesse sido utilizada, a imagem intracoronária por ecografia (IVUS) ou por coerência ótica (OCT) poderia ter sido providencial para caracterizar o envolvimento aterosclerótico da parede arterial e, desta forma, proprocionar informação adicional importante para a abordagem terapêutica.
As arritmias são achados frequentes durante as crises vasoespásticas agudas, ou seja, bloqueio AV e arritmias ventriculares graves.
Na maioria dos casos de angina variante, o tratamento adequado com vasodilatadores previne novos episódios de vasoespasmo.
A implantação de cardioversor-desfibrilhador deve ser contemplada nos quadros de angina vasoespástica refratária com síncope e/ou arritmias ventriculares graves10
O prognóstico é bom quando a angina variante coexiste com coronárias normais e tem boa resposta ao tratamento com bloqueadores de canais de cálcio ou nitratos. A incidência de enfarte agudo do miocárdio, arritmias malignas e morte súbita é baixa neste grupo de doentes5.
Os sintomas persistentes estão normalmente associados a tabagismo ativo11 e tratamento com doses suboptimas de antianginosos, o que, mais uma vez, assume paralelismo com o nosso caso.
ConclusõesO vasoespasmo coronário é uma entidade que não é benigna e pode levar a um desfecho fatal. Neste contexto, é imperioso obter uma boa vasodilatação coronária e o verapamil poderá ser uma excelente opção, mesmo no pior cenário hemodinâmico.
Deve ser dada atenção à administração de potentes vasodilatadores coronários (nitratos intracoronários e/ou verapamil) para um correto diagnóstico da gravidade da lesão angiográfica antes de se avançar para a intervenção percutânea.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.