Nos últimos tempos, dou por mim a refletir sobre o meu percurso como médico e qual o futuro da Medicina. A inteligência artificial, que está aí à nossa porta, talvez possibilite a curto prazo decisões mais racionais, de acordo com uma medicina de precisão, baseada na evidência científica atualizada de forma constante e imediata.
Muitos de nós tememos poder ser substituídos por uma alternativa mecânica que não erra, (falhar é humano), que não se cansa (adeus burnout) e que tem no seu «cérebro» toda a sabedoria acumulada pela humanidade.
O que nos restará a nós médicos de carne e osso, para contrariar este desafio enorme? O bom senso? A empatia? A comunicação? Como inspiração na procura de respostas, pensei no exemplo de um dos mestres que me ajudou a formar como médico.
Acompanhei o Professor Pádua na parte final da sua carreira, quando se preparava para jubilar e dedicar-se «apenas» ao Instituto Nacional de Cardiologia Preventiva, à Fundação com o seu nome e aos doentes do consultório. O Milan Kundera diz que «os velhos senhores se reconhecem pelo hábito que têm de se gabar dos sofrimentos passados e de os transformarem num museu para o qual convidam visitantes». Mas o Prof. não era assim; ele não se acomodava.
Olhava sempre para o futuro. Manteve sempre a curiosidade, o desassossego, que o fez abraçar projetos como a Faculdade, a Sociedade e Fundação Portuguesa de Cardiologia, o CINDI ou as campanhas de Almodôvar. Tudo era importante, todas as ocasiões eram boas para informar as pessoas, para agir no terreno. Dizia o Prof. João Lobo Antunes sobre o Prof.: «um dos traços do seu carácter foi sempre o não conter fratura entre o que diz e o que pratica».
Impressionava a sua ligação aos doentes, com longas conversas no consultório, muitas vezes sobre temas como o casamento de um familiar ou sobre o estado do país. À ficha do doente uniam-se, com fita-cola parcimoniosamente usada, postais enviados pelos doentes ao Prof. desde o local de férias grandes ou na altura do Natal. Na ficha existiam sempre notas sobre o clube de eleição ou o nascimento próximo de um neto. Essas notas serviam de elo, criando um vínculo de afeto e respeito que fazia que médico e doente de mantivessem juntos durante décadas. No diálogo criava-se cumplicidade, partilhava-se informação com palavras que todos entendiam. E com isso vinha o compromisso do doente melhorando a adesão a estilos de vida e à medicação.
Citando o Professor: «se o saber já habitualmente não ocupa lugar, no caso do coração até pode ajudar. Há tanta coisa que depende de nós próprios, em termos de prevenção e mesmo de apoio ao tratamento que certo nível de conhecimento pode não só facilitar o entendimento dos conselhos médicos como pode ajudar e muito, a evitar adoecer.» Costumava dizer que «a saúde é demasiado importante para ficar apenas sob a mão dos médicos». A importância da literacia na saúde reconhecida com cinquenta anos de antecedência…
Mas se a comunicação na consulta era importante, isso não chegava. Para ser eficaz a escala tinha de ser maior. A partir da década de 70, numa sociedade ainda muito conservadora, iletrada e pobre, ver um Professor da Faculdade sair dos frios corredores de Santa Maria para falar sobre saúde e ouvir os problemas das pessoas, era uma autêntica revolução. Era preciso informar o mundo!
E que melhor do que fazê-lo em horário nobre na televisão. Ou, já octogenário, criando um blogue para alertar o mundo em geral, divulgando as boas práticas de saúde. Sempre com imagens de marca que o tornavam imediatamente reconhecido, como o lacinho ou o seu xi-coração com que finalizava os seus bilhetinhos com recados, a forma que o Prof. descobriu antecedendo o e-mail.
A importância da prevenção, da literacia e da comunicação, envolvendo os doentes no processo, fizeram do Prof. Pádua um pioneiro na cardiologia e na medicina preventiva. Mas era a sua afetividade, a empatia e a forma como comunicava que o tornava ímpar como médico. E serão essas qualidades, acredito, a razão pelo qual o ser humano será sempre superior a qualquer máquina.
«Quando se sentarem ao pé de um doente agarrem-lhe a mão: com isso palpam o pulso enquanto falam com ele, estão sentindo a sua força, tensão arterial e ritmo, mas, talvez mais importante, estão a dar-lhe a mão, estão a estabelecer uma corrente afetiva e o doente sente que estão com ele, as mãos transmitem ao doente a vossa força.» Com conselhos assim, a medicina transcende-se e ajuda mais do que qualquer aplicação informática…
Como não ter orgulho de um Mestre assim?
Legenda: esquema da doença aterosclerótica adotado pelo Prof Pádua desde os anos oitenta