Informação da revista
Vol. 32. Núm. 12.
Páginas 1027-1030 (dezembro 2013)
Visitas
9751
Vol. 32. Núm. 12.
Páginas 1027-1030 (dezembro 2013)
Caso clínico
Open Access
Endocardite por Gemella: uma entidade agressiva
Gemella endocarditis: An aggressive entity
Visitas
9751
Ana Rita Godinhoa,
Autor para correspondência
rita_biscaia_godinho@hotmail.com

Autor para correspondência.
, Elisa Toméb, Ana Vazb, André Gomesc, Prudência Vazb
a Serviço de Cardiologia, Hospital de São João, Porto, Portugal
b Serviço de Medicina, ULS-Nordeste, Bragança, Portugal
c Serviço de Medicina, Hospital de São João, Porto, Portugal
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Resume
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Figuras (4)
Mostrar maisMostrar menos
Resumo

Os autores apresentam um caso de endocardite subaguda causada por um agente raro, Gemella morbillorum. Trata-se de um homem 72 anos com hipertensão arterial e valvulopatia aórtica, submetido a endoscopias digestivas seis meses antes. Admitido por febre e dor abdominal. Concomitantemente apresentava clínica compatível com insuficiência cardíaca descompensada associada a petéquias com semanas de evolução. Os exames imagiológicos mostraram consolidação da base pulmonar esquerda, enfarte esplénico e abcesso subfrénico esquerdo. O ecocardiograma transtorácico mostrou alterações sugestivas de endocardite de três válvulas com destruição do folheto anterior da válvula mitral. A embolização esplénica, em provável contexto de endocardite, complicou com abcesso subfrénico esquerdo e disseminação para o tórax. Foi isolado em três hemoculturas Gemella morbillorum, admitido como o agente infecioso envolvido. Evolução desfavorável com necessidade de cirurgia urgente para controlo de foco e resolução de complicações mecânicas dela decorrentes. Destaca-se a necessidade de uma anamnese completa para a colocação de hipóteses de diagnóstico assertivas, que complementadas com exames adequados possibilitam uma abordagem terapêutica adequada e curativa.

Palavras-chave:
Endocardite
Gemella morbillorum
Embolização séptica
Abstract

The authors present a rare case of subacute endocarditis caused by Gemella morbillorum. A 72-year-old man, with a history of hypertension, aortic valve disease and upper and lower endoscopy six months previously, was admitted due to fever and abdominal pain. He also complained of long-standing dyspnea on exertion and petechiae on his lower limbs. Imaging scans showed a consolidation in the lower left lung field, a splenic infarct and a left subphrenic abscess. Transthoracic echocardiogram findings were highly suggestive of endocarditis affecting three valves, with destruction of the mitral valve anterior leaflet. G. morbillorum was identified in three blood cultures and was considered the etiologic pathogen. Due to the patient's worsening condition, he underwent cardiac surgery, aiming to control the infection and to resolve the associated mechanical complications. This case highlights the need for a complete and thorough history to arrive at likely diagnostic hypotheses that, together with complementary exams, will lead to correct diagnosis and the prompt institution of appropriate therapy.

Keywords:
Endocarditis
Gemella morbillorum
Septic embolization
Texto Completo
Caso clínico

Homem de 72 anos admitido por febre e dor abdominal. Antecedentes de hipertensão arterial e valvulopatia aórtica não esclarecida. Seis meses antes do início dos sintomas realizou endoscopia digestiva alta que revelou gastrite crónica atrófica do antro e colonoscopia que não apresentaria alterações. Medicado habitualmente com inibidor de bomba de protões, inibidor de enzima de conversão de angiotensina e diurético tiazídico. Descrevia cansaço para progressivamente menores esforços, ortopneia, dispneia paroxística noturna, diminuição subjetiva do débito urinário e edemas dos membros inferiores apresentando ainda petéquias dispersas das pernas, com quatro a seis semanas de evolução. Um dia antes da admissão iniciou quadro de febre e dor abdominal difusa. À admissão, além da febre, apresentava ingurgitamento jugular visível e à auscultação cardiopulmonar realçava-se sopro mitro- aórtico IV em VI e estase pulmonar. O abdómen era doloroso à palpação, mas sem sinais de irritação peritoneal, apresentando edemas bilaterais até à raiz da coxa e petéquias bilateralmente até ao joelho. Laboratorialmente documentou-se uma anemia microcítica hipocrómica com ferro e transferrina baixos, mas com ferritina aumentada, LDH normal. Esfregaço de sangue periférico com anisocitose ligeira e alguns eliptócitos. Velocidade de sedimentação 116mm, proteína C reativa 10,32mg/dL e peptídio tipo B – BNP >4000pg/mL. Sem outras alterações a destacar, nomeadamente contagem plaquetar, coagulação, função renal ou provas hepáticas. Os exames de imagem toracoabdominal evidenciaram foco de consolidação na base pulmonar esquerda, abcesso subfrénico esquerdo, enfarte esplénico de moderadas dimensões e hepatomegalia. O ecocardiograma transtorácico revelou dilatação das câmaras cardíacas esquerdas e da aurícula direita; espessamento das cúspides da válvula aórtica com duas formações nodulares, condicionando insuficiência aórtica ligeira/moderada; presença de vegetação com 15mm na face anterior do folheto anterior da válvula mitral causando destruição tecidular e muito provável perfuração do mesmo folheto, condicionando insuficiência mitral severa; válvula tricúspide com espessamento dos folhetos associada a estrutura ecogénica móvel compatível com vegetação de 13mm, documentando-se insuficiência tricúspide severa; espessamento das cúspides da válvula pulmonar com insuficiência pulmonar ligeira a moderada; hipocinésia global do ventrículo esquerdo. A nível cerebral não apresentava alterações imagiológicas. Isolamento de Gemella morbillorum (G. morbillorum [strumor]) em três hemoculturas distintas.

Foi efetuado o diagnóstico definitivo de endocardite, apresentando um critério major (evidência ecocardiográfica de infeção) e quatro critérios minor (fator predisponente – valvulopatia, febre >38°C, fenómenos vasculares – enfarte esplénico e petéquias e hemoculturas positivas sem características de critério major) segundo a classificação de Duke. Realizou curso de antibioterapia com vancomicina durante seis semanas e gentamicina durante duas semanas, tendo sido submetido a cirurgia de substituição da válvula mitral e aórtica por próteses biológicas e ainda a anuloplastia da válvula tricúspide. Sem isolamento de agentes no exame microbiológico das válvulas nativas. Os exames imagiológicos de controlo realizados documentaram a resolução do abcesso subfrénico e da consolidação pulmonar existindo apenas uma imagem sequelar de enfarte esplénico. Laboratorialmente destacava-se normalização do hematócrito e diminuição dos parâmetros inflamatórios. Teve alta hospitalar após conclusão do ciclo de antibioterapia com resolução da sua clínica de insuficiência cardíaca, sem necessidade de terapêutica médica, nomeadamente diurético, e sob antiagregação plaquetária e hipocoagulação que manteve durante três meses. Ficou orientado para consulta externa de cirurgia cardiotorácica e medicina interna.

Discussão

A endocardite é uma entidade com incidência 3-10/100 000 pessoas/ano que atinge predominantemente a faixa etária entre os 70-80 anos, maioritariamente homens. Ao longo das últimas décadas documentou-se um aumento da sua incidência, quer pela melhoria dos meios de diagnóstico existentes quer por estar cada vez mais associada a cuidados de saúde.

O género G. morbillorum é constituído por seis espécies de bactérias Gram positivo, presentes nas membranas mucosas de várias espécies animais, entre os quais os homens (Figuras 1–4).

Figura 1.

A face auricular do folheto anterior da válvula mitral apresenta uma estrutura ecogénica móvel compatível com vegetação de cerca de 15mm. O folheto anterior apresenta-se espessado, evidenciando destruição tecidular e muito provável perfuração, condicionando insuficiência mitral grave.

(0.19MB).
Figura 2.

Válvula aórtica com duas formações nodulares aderentes, originando deficiente captação e insuficiência aórtica de grau ligeiro a moderado.

(0.23MB).
Figura 3.

Válvula tricúspide com estrutura ecogénica móvel compatível com vegetação de dimensões superiores a 13mm.

(0.19MB).
Figura 4.

TC abdominal mostrando o enfarte esplénico.

(0.09MB).

A endocardite por G. morbillorum é uma entidade rara, estando descritos cerca de 24 casos na literatura1,2. De difícil identificação microbiológica1,3, esta bactéria, catálase negativo, anaeróbio facultativo2,3 tem uma grande variedade de apresentação2. Faz parte da flora orofaríngea, gastrointestinal e génito urinária, raramente causando infeções no homem4,5. Não obstante, pode causar septicémia, meningite, artrite e endocardite que cursa na maioria dos casos de forma subaguda ou crónica6. Apesar de poucos casos descritos, pode ainda ser responsável por infeções do trato respiratório, nomeadamente abcessos pulmonares, pneumonia necrotizante e empiemas pleurais7.

Atingindo predominantemente homens entre os 20-80 anos de idade, está associada a má higiene oral, procedimentos dentários4, patologias e instrumentação do cólon3, imunossupressão, uso de drogas endovenosas, diabetes mellitus, disfunção hepatorrenal e patologia cardíaca como doença valvular, mixoma cardíaco ou cardiomiopatia hipertrófica3–5,8. A associação de penicilina/vancomicina e gentamicina é recomendada para o tratamento da endocardite causada por este agente, apresentando prognóstico favorável quando iniciada precocemente, associada, quando indicada, a intervenção cirúrgica4.

Neste caso clinico, à predisposição do doente inerente à sua patologia valvular associou-se a instrumentação do trato gastrointestinal, o que poderá ter despoletado toda a doença. Uma vez que evoluiu de forma progressiva, mas indolente, com clínica de insuficiência cardíaca associada a anemia e petéquias, foi apenas diagnosticada pela instalação de sintomatologia aguda provocada pela existência de um abcesso subfrénico em relação provável com o enfarte esplénico secundário à endocardite. O achado imagiológico de consolidação pulmonar esquerda terá ocorrido por disseminação transdiafragmática a partir do abcesso subfrénico existente. A bacteriémia por G. morbillorum e a evolução clínica favorável do abcesso subfrénico e da consolidação pulmonar com a terapêutica instituída corroboram que será esse o agente etiológico responsável, apesar de não ter sido possível a realização de exames culturais dirigidos.

Não obstante a instituição precoce de antibioterapia dirigida e a otimização da terapêutica médica, o doente evoluiu desfavoravelmente tendo sido submetido a cirurgia urgente por insuficiência cardíaca aguda refratária associada a destruição e perfuração do folheto anterior da válvula mitral e insuficiência das quatro válvulas. A abordagem cirúrgica permitiu ainda diminuir o risco de novas embolias sépticas, consequência da presença de vegetações >10mm8.

Os autores pretendem com a apresentação deste caso evidenciar a evolução clínica indolente e variável que esta entidade nosológica apresenta, obrigando a uma elevada suspeita clínica, alicerçada numa anamnese completa e rigorosa, bem como em meios complementares de diagnóstico dirigidos, para realizar o seu diagnóstico. A instituição atempada de antibioterapia adequada, bem como, quando indicado, a cirurgia cardíaca, confere bom prognóstico.

Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais

Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.

Direito à privacidade e consentimento escrito

Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Bibliografia
[1]
H. Al Soub, S.S. El-Shafie, A.L. Al-Khal, et al.
Gemella morbillorum endocarditis.
Saudi Med J., 24 (2003), pp. 1135-1137
[2]
S. Taimur, R. Madiha, F. Samar, et al.
Gemella morbillorum endocarditis in a patient with a bicuspid aortic valve.
Hellenic J Cardiol., 51 (2010), pp. 183-186
[3]
S.F. FitzGerald, A.C. Moloney, B.J. Maurer, et al.
Gemella endocarditis: Consider the colon.
J Heart Valve Dis., 15 (2006), pp. 833-835
[4]
K. Akiyama, N. Taniyasu, J. Hirota, et al.
Recurrent aortic valve endocarditis caused by Gemella morbillorum--report of a case and review of the literature.
Jpn Circ J., 65 (2001), pp. 997-1000
[5]
M.O. Al Chekakie, A. Heroux, M. Montpetit, et al.
Gemella morbillorum prosthetic valve endocarditis.
Congest Heart Fail., 15 (2009), pp. 291-292
[6]
R.M. Zakir, A. Al-Dehneh, L. Dabu, et al.
Mitral bioprosthetic valve endocarditis caused by an unusual microorganism Gemella morbillorum, in an intravenous drug user.
J Clin Microbiol., 42 (2004), pp. 4893-4896
[7]
C. Senent, J.N. Sancho, E. Chiner, et al.
Pleural empyema caused by Gemella species: A rare condition.
Arch Bronconeumol., 44 (2008), pp. 574-577
[8]
M. Zheng, O.T. Ng, B.W. Teo.
Aortic and mitral valve endocarditis caused by Gemella morbillorum in a haemodialysis patient.
Singapore Med J., 49 (2008), pp. 385-387
Copyright © 2013. Sociedade Portuguesa de Cardiologia
Baixar PDF
Idiomas
Revista Portuguesa de Cardiologia
Opções de artigo
Ferramentas
en pt

Are you a health professional able to prescribe or dispense drugs?

Você é um profissional de saúde habilitado a prescrever ou dispensar medicamentos

Ao assinalar que é «Profissional de Saúde», declara conhecer e aceitar que a responsável pelo tratamento dos dados pessoais dos utilizadores da página de internet da Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC), é esta entidade, com sede no Campo Grande, n.º 28, 13.º, 1700-093 Lisboa, com os telefones 217 970 685 e 217 817 630, fax 217 931 095 e com o endereço de correio eletrónico revista@spc.pt. Declaro para todos os fins, que assumo inteira responsabilidade pela veracidade e exatidão da afirmação aqui fornecida.