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Vol. 33. Núm. 1.
Páginas 27-37 (janeiro 2014)
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Vol. 33. Núm. 1.
Páginas 27-37 (janeiro 2014)
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Disfunção sistólica ventricular esquerda detetada por speckle tracking em hipertensos com fração de ejeção preservada
Left ventricular systolic dysfunction detected by speckle tracking in hypertensive patients with preserved ejection fraction
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Susana Gonçalvesa,b,
Autor para correspondência
susanafdgpires@gmail.com

Autor para correspondência.
, Nuno Cortez-Diasb, Ana Nunesa, Adriana Beloc, Inês Zimbarra Cabritaa,b, Catarina Sousaa, Fausto J. Pintoa,b
a Departamento de Cardiologia, Instituto Cardiovascular de Lisboa, Lisboa, Portugal
b Serviço de Cardiologia, Centro Académico de Medicina de Lisboa, Hospital de Santa Maria, CCUL, Lisboa, Portugal
c Departamento de Estatística, Centro Nacional de Coleção de Dados em Cardiologia, Sociedade Portuguesa de Cardiologia, Lisboa, Portugal
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Tabela 1. Caracterização da população hipertensa
Tabela 2. Parâmetros de deformação miocárdica longitudinal média [(4C+3C+2C)/3] e circunferencial média [(VM+MP+AP)/3] nos dois grupos em estudo
Tabela 3. Distribuição dos parâmetros de deformação miocárdica global em função das características ecocardiográficas (geometria ventricular, função diastólica e pressão auricular esquerda)
Tabela 4. Grau de concordância entre o PG-SL, o PG-SRs, o PG-SC e o PG-SRsC, na deteção de compromisso ventricular avaliado pelo coeficiente Kappa
Tabela 5. Distribuição da disfunção ventricular subclínica em função das características clínicas (grau e controlo da HTA) e ecocardiográficas (dimensão da aurícula esquerda, alteração estrutural do ventrículo esquerdo, geometria ventricular, função diastólica e pressão auricular esquerda)
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Resumo
Introdução

O espectro da cardiopatia hipertensiva é diverso podendo ir até à disfunção ventricular esquerda. O desenvolvimento de metodologias ecocardiográficas que permitam melhorar o estadiamento da cardiopatia hipertensiva e identificar precocemente hipertensos em risco de evolução desfavorável poderá ser clinicamente relevante.

Objetivos

Identificar o compromisso subclínico da função ventricular esquerda em indivíduos hipertensos com fração de ejeção preservada (>55%), utilizando parâmetros globais da deformação miocárdica (speckle tracking).

Metodologia

Foram estudados dois grupos de indivíduos: normotensos (N=20; 59+7 anos; 55% homens) e hipertensos (N=229; 62+12 anos; 57% homens), tendo sido avaliados vários parâmetros clínicos e ecocardiográficos de função ventricular esquerda (convencionais e parâmetros globais da deformação miocárdica longitudinal e circunferencial). Foram determinados os cut-offs da normalidade a partir do grupo de normotensos e aplicados ao grupo de hipertensos, para se detetar disfunção ventricular esquerda subclínica. Foram utilizados os testes t de Student, Mann-Whitney e do Qui-Quadrado.

Resultados

O grupo de hipertensos apresentou na sua maioria hipertensão arterial do tipo I (53,7%), pressão arterial controlada (64,9%) e alteração estrutural do ventrículo esquerdo em 54,8% dos indivíduos. Não se detetaram diferenças significativas entre os grupos nos parâmetros globais de deformação longitudinal ou circunferencial. Após aplicação dos cut-offs da normalidade nos hipertensos, foram identificados 35 indivíduos (15,3%) com disfunção ventricular esquerda subclínica.

Conclusões

A avaliação da deformação miocárdica permitiu identificar o compromisso sistólico subclínico da função ventricular esquerda num grupo de hipertensos com fração de ejeção preservada. A relevância clínica destes achados deverá ser confirmada por estudos de follow–up prolongado.

Palavras-chave:
Hipertensão arterial
Deformação miocárdica
Disfunção ventricular esquerda subclínica
Ecocardiografia
Speckle tracking
Abreviaturas:
HTA
OR
PG-SL
PG-SRsL
PG-SReL
PG-SRaL
PG-SC
PG-SRsC
PG-SReC
PG-SRaC
VE
Abstract

Introduction The spectrum of hypertensive heart disease is wide, and can include left ventricular dysfunction. The development of echocardiographic parameters to improve patient stratification and to identify early adverse changes could be clinically useful.

Aim To identify subclinical left ventricular dysfunction in hypertensive subjects with preserved ejection fraction (>55%), identified by global parameters of myocardial strain on speckle tracking imaging.

Methods This was a comparative observational study of two groups of individuals: normotensive (n=20, age 59±7 years, 55% male) and hypertensive (n=229, age 62±12 years, 57% male). Left ventricular function was assessed by various conventional clinical and echocardiographic parameters and global longitudinal and circumferential myocardial strain. Cut-off values to detect subclinical left ventricular dysfunction were established and applied in the hypertensive group. The Student's t test, Mann-Whitney test and chi-square test were used for the comparative statistical analysis.

Results Most hypertensive subjects (53.7%) had grade I hypertension; blood pressure was controlled in 64.9%, and 54.8% showed left ventricular structural changes. Comparison between the normotensive and hypertensive groups showed no significant differences in parameters of global longitudinal or circumferential systolic strain. Application of the cut-offs to the hypertensive group identified 35 individuals (15.3%) as having subclinical left ventricular systolic dysfunction as assessed by global longitudinal myocardial strain parameters.

Conclusions In this group of hypertensive patients, global myocardial strain parameters identified a group of individuals with subclinical left ventricular systolic dysfunction despite preserved ejection fraction. The clinical relevance of these findings needs to be assessed in long-term follow-up studies.

Keywords:
Hypertension
Myocardial strain
Subclinical left ventricular dysfunction
Echocardiography
Speckle tracking
Texto Completo
Introdução

A hipertensão arterial (HTA) constitui o principal fator de risco das doenças cardiovasculares e o terceiro mais determinante de morbilidade. Por isso, é fundamental o seu diagnóstico e estratificação precoce1,2. O estudo ultrassonográfico cardíaco é um exame essencial na avaliação das repercussões cardíacas da HTA, nomeadamente na deteção precoce da disfunção ventricular esquerda, frequente em indivíduos hipertensos3.

A avaliação ecocardiográfica convencional da população hipertensa tem-se centrado em três pilares fundamentais: (1) estadiamento da presença da hipertrofia; (2) avaliação da gravidade da disfunção diastólica; e (3) estudo da função sistólica global. Esta análise está intimamente associada ao modelo conceptual que propõe a existência de um contínuo na expressão cardíaca da doença hipertensiva e que perspetiva que a disfunção sistólica do ventrículo esquerdo (VE) será um evento tardio na sua história natural3–5. Os avanços da ecocardiografia ocorridos na última década disponibilizaram novos métodos de análise que vieram desafiar este modelo, nomeadamente a análise da deformação miocárdica por speckle tracking permitiu a avaliação quantitativa da função ventricular esquerda com elevada acuidade diagnóstica6,7. Esta modalidade ecocardiográfica possibilita o estudo da deformação miocárdica em todas as suas dimensões – longitudinal, circunferencial, transversal, radial e avaliação da torção. A análise da deformação miocárdica nos hipertensos poderá permitir a deteção de envolvimento cardíaco subclínico, e identificar, entre os hipertensos assintomáticos, aqueles em maior risco de evolução desfavorável1,8–10.

O presente estudo pretende avaliar com métodos ecocardiográficos mais sensíveis a função ventricular esquerda numa população de hipertensos com fração de ejeção preservada, com o objetivo de detetar alterações precoces que permitam identificar subgrupos de risco.

População e métodos

Estudo observacional transversal, de 229 indivíduos hipertensos, com idade ≥35 anos e fração de ejeção ventricular esquerda >55%, determinada ecocardiograficamente pelo método Simpson-biplano. Constituíram critérios de exclusão: (1) hipertensão arterial secundária; (2) diabetes melittus; (3) miocardiopatia associada; (4) doença valvular de gravidade pelo menos moderada; (5) insuficiência renal crónica; (6) evidência de doença coronária ativa; e (7) ritmo não sinusal (p. ex. fibrilhação auricular ou ritmo de pacemaker). Todos os indivíduos foram seguidos em consulta de cardiologia (>12 meses), em regime ambulatório e o período de recrutamento do estudo decorreu entre janeiro de 2008 e janeiro de 2011.

No presente estudo foi analisado um grupo de indivíduos normotensos, constituído por indivíduos saudáveis com idade superior a 35 anos de idade, avaliados clinicamente, laboratorialmente, com prova de esforço e monitorização ambulatória da pressão arterial de 24 horas.

Avaliação clínica

Foram avaliadas variáveis demográficas (sexo e idade), antropométricas (peso e altura), clínicas (fatores de risco concomitantes, duração e controlo da hipertensão) e terapêutica em curso.

Foi avaliado o grau da hipertensão arterial de acordo com as recomendações da European Society of Hypertension e European Society of Cardiology11,12, em dois momentos distintos: no início do seguimento clínico e na altura da avaliação para inclusão no estudo. Relativamente à avaliação no início do seguimento clínico foram considerados os valores médios da pressão arterial medidos pela monitorização ambulatória de 24 horas (N=109) ou na sua ausência, pelos valores de pressão arterial mais elevados medidos nas primeiras duas consultas consecutivas (N=110). No momento de inclusão no estudo foram considerados os valores de pressão arterial medidos nessa avaliação. A pressão arterial braquial foi avaliada com esfignomanómetro após período de repouso de cinco minutos na posição sentada. Efetuaram-se duas medições consecutivas e a sua média foi considerada.

Avaliação ecocardiográfica

Os estudos ecocardiográficos foram realizados num equipamento Vivid 7 (sonda multifrequência m4s 1,75 – 3,5MHz, GE® Medical Systems), compreendendo estudo convencional, avaliação por Doppler tecidular e análise da deformação miocárdica (speckle-tracking).

Em todos os exames foram adquiridos e armazenados cineloops de três ciclos cardíacos em modo bidimensional das vias paraesternal esquerda curto eixo (planos da válvula mitral, músculos papilares e ápex) e apicais (quatro, duas e três câmaras) assegurando frame-rate superior 60Fr/s, que permitisse posteriormente a análise off-line da deformação miocárdica. As medições do estudo convencional foram realizadas seguindo as recomendações da Sociedade Europeia/Americana de Cardiologia13,14, sendo indexadas à superfície corporal sempre que apropriado. As medições foram efetuadas três vezes e a sua média foi considerada. A fração de ejeção e os volumes telediastólico e telesistólico do VE foram medidos pelo método de Simpson biplano.

A geometria ventricular esquerda foi avaliada com base na massa ventricular esquerda (estimada por: MVE=0,8x[diâmetro interno telediastólico do VE + dimensão da parede posterior do VE em telediástole + dimensão do septo interventricular do VE em telediástole]3+0,6g, com indexação à área de superfície corporal e género) e na espessura relativa da parede (calculada por: EPR=2x dimensão da parede posterior em telediástole do VE/diâmetro interno telediastólico do VE), e categorizada segundo as recomendações13. Os quatro padrões de geometria do VE considerados foram: geometria normal, remodeling ventricular, hipertrofia concêntrica, hipertrofia excêntrica.

A função diastólica foi caracterizada pela avaliação do Doppler pulsado do fluxo transmitral (com medição do pico de velocidade protodiastólica [E], tempo de desaceleração e pico de velocidade telediastólica [A]), pela avaliação com Doppler tecidular pulsado da velocidade protodiastólica miocárdica (E’) no anel mitral septal e lateral (sendo determinada a E’ média [septal + lateral/2] e a razão E/E’ média), e pelo volume telessistólico da aurícula esquerda14–16.

Os quatro padrões de função diastólica considerados foram: (1) função diastólica normal, definida por E’ septal >8, E’ lateral >10 e volume da aurícula esquerda <34l/m2; (2) disfunção diastólica grau I, definida por E’ septal <8, E¿ lateral <10, volume da aurícula esquerda >34l/m2, E/A <0,8, tempo de desaceleração >200ms, e E/E’ médio <8; (3) disfunção diastólica grau II, definida por E’ septal <8, E¿ lateral <10, volume da aurícula esquerda >34l/m2, E/A entre 0,8-1,5, tempo de desaceleração entre 160-200ms e E/E’ médio entre 9-12; (4) e disfunção diastólica grau III, definida por E’ septal <8, E¿ lateral <10, volume da aurícula esquerda >34l/m2, E/A >2, tempo de desaceleração <160ms e E/E’ médio >1314.

2 D Strain – speckle tracking

A deformação miocárdica foi analisada por speckle tracking em pós-processamento (workstation-Echopac GE®), com ocultação da identificação. Utilizou-se um sistema semiautomático de tracking do miocárdio, com demarcação manual do bordo endocárdico no período telessistólico e ajustamento manual da região de interesse. Só foram analisados os segmentos cuja qualidade do tracking miocárdico tenha sido considerada adequada simultaneamente pelo sistema de análise automática e pelo operador.

A partir da análise das vias apicais foi avaliada a deformação miocárdica global longitudinal. Para avaliação da função sistólica, foram medidos o pico sistólico global de strain longitudinal (PG-SL %) e o pico global de strain rate sistólico longitudinal (PG-SRsL s–1). Para avaliação adicional da função diastólica global foram medidos o pico global de strain rate protodiastólico longitudinal (PG-SReL s–1) e o pico global de strain rate telediastólico longitudinal (PG-SRaL s–1).

A partir da análise das vias curto-eixo foi avaliada a deformação miocárdica circunferencial. Para avaliação da função sistólica global foram medidos o pico sistólico global de strain circunferencial (PG-SC %) e o pico global de strain rate sistólico circunferencial (PG-SRsC s–1). Para avaliação adicional da função diastólica global foram medidos pico global de strain rate protodiastólico circunferencial (PG-SReC s–1) e o pico global de strain rate telediastólico circunferencial (PG-SRaC s–1).

Análise estatística

No tratamento dos dados foi utilizada a estatística descritiva, com apresentação de tabelas de frequências (absolutas e relativas). Nas variáveis quantitativas foram calculadas medidas de localização central (média e mediana) e de dispersão (desvio padrão e intervalo interquartil). Sempre que as variáveis eram contínuas e seguiam uma distribuição normal foi aplicado o teste t de student na comparação das médias e quando não seguiram distribuição normal foi utilizado o teste não paramétrico de Mann-Whitney para comparação das medianas. O teste do Qui-Quadrado foi aplicado em variáveis qualitativas, permitindo a comparação de proporções.

No cálculo do odds ratio (OR), foi utilizado um intervalo de confiança a 95%.

Na análise dos valores globais de deformação foi ainda determinado um cut-off da normalidade – a título de inferência foi calculado o valor limite para as variáveis da deformação miocárdica sistólica longitudinal e circunferencial, a partir do grupo de normotensos. Estabeleceu-se como cut-off da presença ou não de compromisso ventricular sistólico, o limite superior (média +2x desvio padrão), para as variáveis da deformação longitudinal e circunferencial: PG-SL (%) e o PG-SRsL (s–1) e PG-SC (%) e o PG-SRsC (s–1). Na avaliação da deformação longitudinal e circunferencial os valores negativos quanto mais próximos da linha de base (zero) maior é o compromisso ventricular. O grau concordância foi avaliado segundo o coeficiente Kappa.

Na análise estatística foi utilizado o software Statistical Package for Social Science, versão 19, e considerado um nível de significância de 5%.

ResultadosCaracterização da amostra

Foram estudados 229 indivíduos hipertensos (idade média de 62±12 anos; 53,7% do sexo masculino) com fração de ejeção preservada, 68,1% dos quais com o diagnóstico de hipertensão arterial há mais de cinco anos. Nenhum dos indivíduos apresentou manifestações clínicas de insuficiência cardíaca de classe funcional >2 (New York Heart Association). As características demográficas e clínicas da população são apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1.

Caracterização da população hipertensa

Características  Doentes hipertensos (N=229)
  Início de seguimento (%)  Avaliação para o estudo (%) 
Controlo da hipertensão arterial*
HTA controlada  94 (41,0) 
HTA grau I  123 (53,7)  99 (43,2) 
HTA grau II  94 (41,1)  32 (14,0) 
HTA grau III  12 (5,2)  4 (1,7) 
Fatores de risco cardiovasculares concomitantes    167 (72,9) 
Dislipidemia    134 (58,5) 
Diabetes Mellitus tipo 2    25 (10,9) 
Tabagismo    21 (9,2) 
Sedentarismo    17 (7,4) 
Obesidade (índice de massa corporal ≥30kg/m2  48 (20,9) 
História familiar de doença cardiovascular em Idade precoce (<50 anos)    54 (23,6) 
Terapêutica anti-hipertensora    218 (95,1) 
Diurético    122 (53,3) 
Bloqueador β-adrenérgico    122 (53,3) 
Antagonista dos recetores da angiotensina II    101 (44,1) 
Antagonista dos canais de cálcio    70 (30,6) 
Inibidor da enzima conversora da angiotensina    49 (21,4) 
*

O grau da hipertensão arterial foi avaliado segundo as recomendações da European Society of Hypertension e European Society of Cardiology, com base na medição da pressão arterial em consulta, grau 1: 140-159/90-99mmHg; grau 2: 160-179/100-109mmHg; grau 3: ≥180/110mmHg; com base na medição ambulatória da pressão arterial de 24 horas (valores médios das 24 horas), grau 1: 131-149/80-89mmHg; grau 2: 150-169/90-99mmHg; grau 3: ≥170/100mmHg.

Na determinação dos limites da normalidade dos parâmetros de deformação miocárdica global foram estudados 20 indivíduos normotensos, saudáveis, sem diferenças significativas quanto à distribuição por sexo (55% do sexo masculino) ou idade (idade média de 59±7 anos), comparativamente com a população hipertensa estudada.

Ecocardiografia convencional

No grupo de hipertensos, 45,8% dos indivíduos apresentavam geometria ventricular esquerda normal, 9,7% exibiam remodelagem concêntrica, 22,0% tinham hipertrofia concêntrica e em 22,5% existia hipertrofia excêntrica. Os indivíduos deste grupo apresentavam valores mais elevados de massa ventricular esquerda (107±29 versus 74±13g/m2; p <0,001) e de espessura parietal relativa (0,40±0,07 versus 0,31±0,04; p <0,001), quando comparados com os normotensos.

Relativamente à função diastólica, foram detetadas alterações em 52,4% dos indivíduos (N=120), traduzidas em 30,1% (N=69) com disfunção diastólica de grau I, e 22,3% (N=51) disfunção diastólica de grau II. Nenhum dos indivíduos exibiu disfunção diastólica grau III.

Deformação miocárdica global – speckle tracking

A qualidade dos cineloops adquiridos em modo bidimensional foi adequada para a avaliação da deformação miocárdica longitudinal em 229 hipertensos e em 103 para a deformação circunferencial.

Os parâmetros de deformação miocárdica global quer longitudinal quer circunferencial que reportam à função sistólica do VE (PG-SL, PG-SRsL, PC-SC e o PC-SRsC) não apresentaram diferenças significativas na análise comparativa entre os dois grupos em estudo. No entanto, os parâmetros globais do strain rate diastólico quer da deformação longitudinal (PG-SReL, PG-SRaL) quer da deformação circunferencial (PG-SReC, PG-SRaC) apresentaram-se significativamente alterados – Tabela 2.

Tabela 2.

Parâmetros de deformação miocárdica longitudinal média [(4C+3C+2C)/3] e circunferencial média [(VM+MP+AP)/3] nos dois grupos em estudo

  Hipertensos  Normotensos  Valor p 
PSG-SLmédio (%)  −19,49+2,89  −20,58+2,26  0,102* 
PG-SrsLmédios−1  −1,02+0,18  −1,09+0,14  0,087* 
PG-SreLmédios−1  1,12+0,29  1,63+0,30  <0,001** 
PG-SraLmédios−1  1,05+0,23  0,74+0,16  <0,001* 
PSG-SCmédio (%)  −19,48+3,92  −18,29+3,06  0,214* 
PG-SrsCmédios−1  −1,26+0,3  −1,20+0,20  0,302* 
PG-SreCmédios−1  1,42+0,43  1,72+0,46  0,007** 
PG-SraCmédios−1  0,90+0,28  0,52+0,12  <0,001* 
*

Teste t de Student.

**

Teste de Mann-Whitney.

A distribuição dos parâmetros de deformação miocárdica global sistólicos em função da geometria ventricular e função diastólica e pressão auricular esquerda é apresentada na Tabela 3.

Tabela 3.

Distribuição dos parâmetros de deformação miocárdica global em função das características ecocardiográficas (geometria ventricular, função diastólica e pressão auricular esquerda)

Características  PG-SLPG-SrLPG-SCPG-SrC
  Média ± DP (mín a máx)  Valor p  Média ± DP (mín a máx)  Valor p  Média ± DP (mín a máx)  Valor p  Média ± DP (mín a máx)  Valor p 
Geometria ventricular
Normal: normotensos
N=20  −20,6±2,3(−24,9 a −16,8)  Versus normal: normotensos  −1,09±0,14(−1,37 a −0,83)  Versus normal: normotensos  −18,29±3,06(−11,53 a −1,20)  Versus normal: normotensos  −1,20±0,20(−1,57 a −0,83)  Versus normal: normotensos 
Normal: hipertensos
N=106  −19,7±2,4(−23,5 a −15,0)  NS  −1,03±0,17(−1,70 a −0,63)  NS  −19,4±3,4(−26,63 a −12,03)  NS  −1,23±0,25(−1,90 a −0,73)  NS 
Remodelagem concêntrica
N=22  −19,2±3,3(−23,5 a −9,4)  NS  −1,07±0,14(−1,40 a −0,80)  NS  −19,3±4,8(−25,9 a −12,4)  NS  −1,37±0,31(−1,73 a −0,87)  NS 
Hipertrofia concêntrica
N=50  −18,5±3,3(−25,7 a −9,4)  0,019  −0,98±0,19(−1,47 a −0,63)  0,020  −19,2±4,75(−31,9 a −9,67)  NS  −1,35±0,37(−2,23 a −0,83)  NS 
Hipertrofia excêntrica
N=51  −20,2±2,7(−24,7 a −9,4)  NS  −1,01±0,18(−1,60 a −0,70)  NS (0,051)  −20,0±3,6(−24,0 a − 12,33)  NS  −1,17±0,28(−1,47 a −0,57)  NS 
Função diastólica
Normal: normotensos
N=20  −20,6±2,3(−24,9 a −16,8)  Versus normal: normotensos  −1,09±0,14(−1,37 a −0,83)  Versus normal: normotensos  −18,3±3,1(−23,8 a −11,5)  Versus normal: normotensos  −1,20±0,20(−1,57 a −0,83)  Versus normal: normotensos 
Normal: hipertensos
N=109  −19,9±2,7(−28,4 a −11,2)  NS  −1,05±0,18(−1,70 a −0,63)  NS  −18,2±3,9(−25,9 a −11,7)  NS  −1,19±0,31(−2,17 a −0,57)  NS 
Disfunção grau I
N=69  −19,1±2,6(−24,4 a −12,7)  NS  −0,96±0,14(−1,33 a −0,63)  0,001  −20,3±3,2(−26,6 a −12,0)  0,036  −1,27±0,27(−1,77 a −0,73)  NS 
Disfunção grau II
N=51  −19,2±3,6(−26,3 a −9,4)  NS  −1,03±0,20(−1,40 a −0,67)  NS  −21,2±4,2(−31,9 a −9,7)  0,015  −1,40±0,30(−2,23 a −0,87)  0,019 
Pressão auricular esquerda
Normal: normotensos
N=20  −20,6±2,3(−24,9 a −16,8)  Versus normal: normotensos  −1,90±0,14(−1,37 a −0,83)  Versus normal: normotensos  −18,3±3,1(−23,8 a −11,5)  Versus normal: normotensos  −1,20±0,20(−1,57±−0,83)  Versus normal: normotensos 
Normal: hipertensos
N=194  −19,6±2,83(−28,4 a −9,37)  NS  −1,03±0,18(−1,70 a −0,63)  NS  −19,3±3,8(−26,6 a −9,67)  NS  −1,24±0,3(−2,17 a −0,57)  NS 
Aumentada
N=35  −18,9±3,2(−26,3 a −12,1)  0,030  −0,97±0,16(−1,30 a −0,63)  0,008  −20,7±4,3(−31,9 a −12,43)  NS  −1,36±0,33(−2,23 a −0,87)  NS 

Nos indivíduos hipertensos, os valores médios do PG-SL e PG-SRsL foram de –19,5±2,9% e de –1,02±0,18 s–1, respetivamente. Os valores do PG-SL variaram significativamente em função da presença de alterações da geometria ventricular. Em particular, detetou-se diminuição da deformação sistólica longitudinal nos indivíduos com hipertrofia ventricular esquerda concêntrica (p=0,019) – Figura 1.

Figura 1.

Frequência do pico sistólico global de strain longitudinal, em função do tipo de geometria do ventrículo esquerdo (normal, remodelagem concêntrica, hipertrofia ventricular esquerda concêntrica, e hipertrofia ventricular esquerda excêntrica), nos normotensos e hipertensos.

(0.13MB).

Além disso, os parâmetros de deformação sistólica longitudinal apresentaram-se significativamente diminuídos nos indivíduos com pressão auricular esquerda aumentada, mas não exibiram correlação com a gravidade da disfunção diastólica.

Os valores médios do PG-SC e PG-SRsC nos hipertensos foram de –19,5±3,9% e –1,26±0,3 s–1, respetivamente. Os valores PG-SC e PG-SRsC diferiram significativamente em função da presença de disfunção diastólica, muito embora tenham sido paradoxalmente mais negativos nos indivíduos com disfunção mais grave – Figura 2.

Figura 2.

Frequência do pico sistólico global de strain longitudinal, em função da avaliação da função diastólica (normal, disfunção diastólica de grau 1 e grau 2), nos normotensos e hipertensos.

(0.11MB).

A torção foi avaliada em 95 hipertensos, apresentando um valor médio de 14±6°, não diferindo em função da presença de hipertensão arterial, alteração da geometria ventricular ou disfunção diastólica. Porém, exibiu correlação significativa com o PG-SC (Pearson R=–0,37, p <0,001; Spearman Rho=–0,40, p <0,0019) e com o PSG-SrC (Pearson R=–0,28, p=0,003; Spearman Rho=–0,30, p=0,001). Além disso, a torção exibiu correlação positiva fraca com a fração de ejeção ventricular esquerda (Pearson R=0,20, p=0,021; Spearman Rho=0,19, p=0,028) – Figura 3.

Figura 3.

Gráfico A – correlação entre a torção em valor absoluto e a fração de ejeção; Gráfico B – correlação entre a torção em valor absoluto e o pico sistólico global de strain circunferencial.

(0.2MB).

Dado que os parâmetros de deformação miocárdica exibiram distribuição normal na população normotensa foram determinados os limites da normalidade. No que respeita ao PG-SL e ao PG-SRsL foram de –16,50% e –0,82 s–1, respetivamente. Aplicando os cut-offs foi detetado compromisso da deformação miocárdica longitudinal em 15,3% (N=35) dos hipertensos avaliados.

No que respeita ao PG-SC e ao PG-SRsC os limites da normalidade foram de –12,17% e –0,81 s–1, respetivamente, e após aplicação dos cut-offs foi detetado compromisso da deformação miocárdica circunferencial em 4% (N=9) dos hipertensos avaliados.

A concordância da deteção de compromisso subclínico da função sistólica ventricular avaliada pelos diferentes parâmetros da deformação miocárdica foi fraca ou moderada – Tabela 4.

Tabela 4.

Grau de concordância entre o PG-SL, o PG-SRs, o PG-SC e o PG-SRsC, na deteção de compromisso ventricular avaliado pelo coeficiente Kappa

Kappa (Mc NemarPG-SL  PG-SRsL  PG-SC  PG-SRsC 
PSG-SL  –  0,585 (0,359)  −0,056 (0,424)  −0,048 (0,566) 
PG-SRsL  –  –  0,160 (0,035)  0,298 (0,006) 
PSG-SC  –  0,160 (0,035)  –  0,193 (1,000) 
PG-SRsC  −0,048 (0,566)  –  –  – 

Atendendo ao menor número de indivíduos em que foi viável a análise da deformação circunferencial e à menor concordância da avaliação da disfunção sistólica subclínica baseada nesses parâmetros, o compromisso da deformação miocárdica foi avaliado com base apenas nos parâmetros de deformação longitudinal. Considerou-se existir disfunção subclínica da função sistólica global na presença de PSG-SL inferior ao valor absoluto de –16,50% ou PG-SRsL inferior ao valor absoluto de –0,82 s–1.

Os hipertensos com compromisso ventricular esquerdo subclínico apresentaram maior gravidade no grau de hipertensão arterial, maioritariamente com a pressão arterial não controlada e com alteração estrutural do VE, sendo que a probabilidade de disfunção subclínica foi três vezes maior nos hipertensos com hipertrofia ventricular esquerda concêntrica (OR: 2,97 1,22-7,22 p=0,016) – Figura 4. Quanto à função diastólica, os hipertensos com disfunção subclínica do VE apresentaram concomitantemente maior gravidade de disfunção diastólica e pressões de enchimento aumentadas – Tabela 5.

Figura 4.

Distribuição da frequência da disfunção ventricular subclínica em função do tipo de geometria do ventrículo esquerdo.

(0.1MB).
Tabela 5.

Distribuição da disfunção ventricular subclínica em função das características clínicas (grau e controlo da HTA) e ecocardiográficas (dimensão da aurícula esquerda, alteração estrutural do ventrículo esquerdo, geometria ventricular, função diastólica e pressão auricular esquerda)

  Frequência da disfunção ventricular subclínica  Valor p (grupo)  Odds ratio (IC 95%)Valor p 
Grau de HTA – avaliação para o estudo
Controlo ótimo (N=49)  4,1% (N=2)  0,035  Classe de referência 
Controlo normal (N=45)  13,3% (N=6)   
Grau 1(N=99)  18,2% (N=18)    OR=5,22(1,16–23,51)p=0,031 
Grau 2(N=32)  28,1% (N=9)    OR=9,20(1,84-46,06)p=0,007 
* faltam quatro doentes de HTA de grau 3 e nenhum apresenta disfunção subclínica.       
Grau da HTA - início do seguimento
Grau 1 (N=123)  8,9% (N=11)  0,009  Classe de referência 
Grau 2 (N=94)  13,3% (N=6)    2,75 (1,25-6,08) p=0,012 
Grau 3 (N=12)  18,2% (N=18)    5,09 (1,32-19,65) p=0,018 
Controlo da HTA
HTA controlada(N=141)  9,2% (N=13)  0,001  Classe de referência 
HTA não controlada (N=88)  25% (N=33)    OR=3,28(1,56-6,23)p <0,001 
Aurícula esquerda
Não dilatada (N=150)  12,0% (N=18)  0,079   
Dilatada (N=77)  20,8% (N=16)     
Alteração estrutural do VE
Sem alteração estrutural do VE (N=103)  10,7 (N=11)  0,076   
Com alteração estrutural do VE (N=125)  19,2 (N=24)     
Geometria ventricular
Normal (N=104)  10,6% (N=11)  p=0,101  Classe de referência 
Remodeling concêntrico (N=22)  13,6% (N=3)    NS 
HVE concêntrica (N=50)  26,0% (N=13)    OR=2,97 (1,22-7,22) p=0,016 
HVE excêntrica (N=51)  15,7% (N=8)    NS 
Função diastólica
Normal (N=109)  10,1% (N=11)  p=0,05  Classe de referência 
Disfunção grau 1 (N=69)  18,8% (N=13)     
Disfunçãograu 2 (N=51)  21,6% (N=11)    OR=2,45(0,98-6,11)p >0,001 
Pressões de enchimento do VE
Normal (N=194)  13,4% (N=26)  p=0,062   
Aumentadas (N=35)  25,7% (N=9)     

No grupo de hipertensos com disfunção subclínica do VE foi calculado o odss ratio em função da gravidade e do controlo da pressão arterial e verificou-se que os indivíduos com HTA de grau 1 (OR: 5,22 1,16-23,51 p=0,031) e grau 2 (OR: 9,20 1,84-46,06 p=0,007), aquando a avaliação para o estudo, bem como os indivíduos com a pressão arterial não controlada (OR: 3,28 1,56-6,23; p <0,001) apresentaram maior probabilidade de desenvolverem disfunção subclínica do VE – Tabela 5.

Discussão

O objetivo principal deste trabalho consistiu na avaliação da função ventricular esquerda num grupo de indivíduos hipertensos com fração de ejeção preservada, utilizando métodos ecocardiográficos convencionais e de deformação miocárdica global, com a finalidade de identificar padrões de compromisso subclínico da função ventricular esquerda.

A massa ventricular esquerda e a espessura parietal relativa do VE encontravam-se significativamente aumentadas no grupo de hipertensos. Schillaci et al.4 demonstraram que o aumento da massa do VE é preditor de eventos cardiovasculares de forma contínua, em indivíduos com HTA essencial, mesmo sem lesão de órgão alvo.

Na avaliação da função diastólica14 cerca de 52,4% apresentavam critérios de disfunção diastólica, sendo na sua maioria disfunção de grau 1 (30,1%). Vários estudos sugerem que a complexa interação da hiperplasia celular, morte celular, fibrose e decréscimo da captação dos canais de cálcio, bem como um aumento da rigidez das fibras miocárdicas, poderão ser responsáveis pela disfunção diastólica nos indivíduos hipertensos, sendo que vários autores defendem que a disfunção diastólica poderá ser um marcador precoce na cardiopatia hipertensiva17,18.

Os valores globais da deformação longitudinal e circunferencial que reportam a função sistólica do VE, nomeadamente os picos sistólicos globais de strain e strain rate, não apresentaram diferença significativa quando comparados com o grupo de normotensos, o que poderá ser explicado pelo facto de a maioria dos indivíduos da nossa amostra apresentarem HTA do tipo 1 (53,7%) e a pressão arterial controlada (61,6%). Estes resultados estão em consonância com estudos prévios, nomeadamente o de Narayanan et al., que relatam que indivíduos com HTA ligeira e fração de ejeção preservada poderão não apresentar parâmetros de deformação significativamente reduzidos19.

Os picos globais do strain rate protodiastólico e telediastólico da deformação longitudinal e circunferencial encontram-se significativamente alterados no grupo de hipertensos, quando comparados com os normotensos, o que poderá traduzir a importância não só duma avaliação espacial global, mas sobretudo duma avaliação temporal, obtida a partir dos valores do strain rate. Estudos em populações maiores e mais diversificadas de hipertensos poderá ajudar a perceber melhor a razão para estas diferenças. Poder-se-á especular que a presença de alterações precoces na mecânica ventricular esquerda possa levar a uma redistribuição temporal de alguns fenómenos diastólicos, o que aliás tem sido documentado do ponto de vista hemodinâmico através do estudo Doppler de fluxo e que poderá, assim, traduzir-se também numa alteração mecânica identificada no registo de taxa de deformação.

Nos vários estudos publicados anteriormente20,21 existem algumas discrepâncias nos cut-offs da normalidade dos parâmetros da deformação miocárdica. Importa ainda realçar que a maior parte destes estudos não foram realizados com uma população mediterrânica, como tal, apesar do grupo de normotensos ser de pequena dimensão optou-se por se definir os cut-offs com compromisso e sem compromisso ventricular a partir do grupo de normotensos, por este ter características idênticas quanto ao sexo e à idade com o grupo de hipertensos, e de ser representativo de uma população mediterrânica.

Após aplicação dos cut-offs nos 229 hipertensos, foi detetado compromisso da deformação miocárdica longitudinal em 15,3% (N=35) dos hipertensos avaliados (Figura 5). Ambos os parâmetros, o PG-SL e o PG-SRsL, apresentaram uma concordância moderada (coeficiente Kappa=0,581) na deteção de indivíduos com compromisso ventricular subclínico. Os parâmetros da deformação miocárdica circunferencial, PG-SC e o PG-SRsC, detetaram poucos indivíduos com compromisso ventricular subclínico (3,9% – 4 indivíduos) e sem concordância entre si (Kappa=–0,107).

Figura 5.

Curvas do pico sistólico do strain longitudinal das vias apicais e a imagem paramétrica do ventrículo esquerdo em bulls-eye, de um indivíduo normotenso (à esquerda) e de um indivíduo hipertenso (à direita).

(0.29MB).

No grupo de indivíduos hipertensos o risco de ocorrência de disfunção subclínica pareceu estar associado ao grau de gravidade da HTA e da eficácia do controlo da pressão arterial, bem como à presença da hipertrofia ventricular esquerda concêntrica. Alguns autores referem que a presença de hipertrofia na cardiopatia hipertensiva resulta de uma resposta adaptativa ao aumento da pós-carga, seguida do aumento progressivo de fibrose miocárdica. Segundo Geyer et al., o strain longitudinal calculado por speckle tracking encontra-se reduzido nos hipertensos, enquanto o strain circunferencial e o radial poderão encontrar-se preservados, assim como a torção. No entanto, o movimento untwisting do VE poderá encontra-se anormal e tardio neste grupo9. Alguns autores reportam ainda valores da torção aumentada nos hipertensos22.

A correlação entre os parâmetros de deformação e marcadores analíticos (serum level of tissue inhitor of Matrix Metalloproteinase-1) de fibrose miocárdica em indivíduos hipertensos tem sido alvo de interesse. Kang et al. referem no seu estudo que em indivíduos hipertensos com fração de ejeção normal apresentavam o PG-SL diminuído e um aumento paradoxal da torção do VE. Estes parâmetros correlacionaram-se quantitativamente com o serum level of tissue inhitor of Matrix Metalloproteinase-1, que é responsável pelo depósito do colagénio no miocárdio. Estes autores concluíram ainda que a avaliação pelos parâmetros da deformação miocárdica por speckle tracking nos hipertensos poderá ser útil na deteção precoce de disfunção sistólica subclínica, que parece estar relacionada com o depósito de fibrose intramiocárdica progressiva22. Neste estudo a torção foi indicada como um marcador precoce de disfunção sistólica, dado que este parâmetro revela-se alterado, muito antes dos danos tecidulares irreversíveis. Os autores descreveram um aumento do valor da torção no grupo de hipertensos, sobretudo à custa do aumento da rotação basal23. O aumento da rotação tem sido também associado ao aumento de idade e alterações do enchimento diastólico24.

As fibras subendocárdicas são as primeiras a serem afetadas pela fibrose interesticial e perivascular. As fibras longitudinais como consequência da sua localização subendocárdica proeminente são mais vulneráveis ao aumento da fibrose e da sobrecarga hemodinâmica. Assim, a função longitudinal é afetada mais cedo do que o desenvolvimento da disfunção das fibras circunferenciais responsáveis pela função circunferencial. Vários estudos recomendam a avaliação dos valores globais de deformação miocárdica longitudinal como marcador precoce de disfunção subclínica do VE25–27.

Limitações

Uma das limitações do estudo consiste no facto de as medições não terem sido diretamente validadas pela ressonância magnética cardíaca, no entanto, Amundsen et al.28 demonstraram a existência de uma boa correlação entre os valores obtidos por speckle tracking e a ressonância magnética.

Outra das limitações é o facto de os cut-offs definidos resultarem de uma amostra de reduzidas dimensões, mas optou-se metodologicamente por este facto devido às características do grupo de hipertensos em estudo (idade, sexo e tipologia mediterrânica).

O facto de os indivíduos que constituem a amostra em estudo estarem medicados e controlados há muito tempo poderá torná-los não verdadeiramente representativos de todo o espectro de cardiopatia hipertensiva. Contudo, este é precisamente o subgrupo que se pretendeu analisar, uma vez que é neste grupo que a deteção de disfunção subclínica se torna mais importante, dado que pode levar a intervenções mais precoces, eventualmente com impacto no prognóstico destes doentes.

Conclusões

No grupo de hipertensos em estudo a utilização do PG-SL e o PG-SRsL permitiu detetar graus de disfunção sistólica ventricular em indivíduos com fração de ejeção preservada, independentemente da presença ou não de alteração estrutural do VE, o que permite especular sobre o potencial e repercussão de intervenções mais precoces nestes indivíduos. Contudo, apenas a realização de estudos prospetivos multicêntricos longitudinais, com medição de variáveis prognósticas de médio e longo prazo, permitirão concluir sobre a relevância prognóstica destas alterações precoces.

A realização dum estudo prospetivo multicêntrico envolvendo uma população maior, com o objetivo de se criarem cut-offs da normalidade, dos parâmetros da deformação miocárdica que sejam representativos da população mediterrânica, seria igualmente de grande relevância. Em conclusão, a possibilidade de estudar parâmetros mais sensíveis de função ventricular esquerda permitiu identificar um conjunto de alterações precoces numa população ambulatória de indivíduos hipertensos com fração de ejeção preservada.

Tais alterações poderão representar potenciais marcadores de risco cardiovascular nestas populações e assim potencialmente identificar subgrupos de maior risco, em que uma intervenção mais precoce e mais agressiva possa vir a ter impacto significativo.

Estudos de follow up prolongado poderão avaliar a relevância clínica dos achados do presente estudo.

Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais

Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.

Direito à privacidade e consentimento escrito

Os autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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