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Vol. 40. Núm. 5.
Páginas 311-315 (maio 2021)
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Perspetivas em Cardiologia
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Desenvolvimento (pós‐Covid): memória, discernimento, humanismo, ética, ciência e natureza
Development post‐Covid‐19: memory, discernment, humanism, ethics, science and nature
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António Bagão Félix
Professor catedrático convidado da Universidade Lusíada/Ex‐ministro da Segurança Social e do Trabalho/Ex‐ministro das Finanças, Lisboa, Portugal
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A primeira razão de ser da ciência económica prende‐se com a regra universal e intemporal de os recursos disponíveis serem limitados face às necessidades. Para aproximar aqueles meios e estes fins, o crescimento económico é uma condição necessária. Porém, insuficiente se não resultar em maior desenvolvimento humano. E, consequentemente, através da medida da quantidade (económica) se progredir na qualidade (humana). Esta é uma inequação a que a atividade médica também não é imune: a natureza finita dos recursos face à procura infinita de saúde. Afinal, nada de diferente do que qualquer outra atividade, mas com a enorme diferença de aqui estar em jogo o mais absoluto valor: o da vida.

Desenvolvimento: Etimologicamente o contrário de envolvimento, ou seja, libertação. Como se mede, sem que tal coincida com uma espécie de «felicidade nacional bruta a preços de mercado»? Há um «critério» que, caricaturalmente, considera três sinais exteriores, daqueles que são mais depressa apreendidos pelas pessoas: a quantidade de (pequenas) obras sempre inacabadas nas ruas; o estado de limpeza e higiene dos sanitários públicos, em especial nos comboios; e o grau de qualidade e de eficiência das telecomunicações. Ou seja, uma sábia mistura de produtividade, comportamento social e tecnologia.

As três dimensões do desenvolvimento: 1) em nós: individualidade (não individualismo); 2) dimensão social; 3) dimensão ambiental, no encontro com a natureza.

Cada vez mais, o desenvolvimento tem de ser coerentemente pluridimensional. Um desenvolvimento integral, autêntico, libertador. Um desenvolvimento associado à ética e à responsabilidade pessoal e social. À justiça distributiva e não apenas à justiça contratual e comutativa. À capacidade de conciliar mercado, sociedade e Estado. À afirmação do princípio da subsidiariedade. Ao «ser mais e melhor» e não apenas «ao incremento do ter». À importância das energias morais para neutralizar os excessos alienantes de produtivismo e de utilitarismo. À sustentabilidade social, demográfica e geracional que erradique a primazia da lógica estrita do curto‐prazo. (Bento XVI, Caritas in Veritate):

Diagnóstico da sociedade contemporânea

Não devemos esquecer as notáveis expressões de melhoria do bem‐estar, do aumento da esperança de vida, a redução esmagadora da mortalidade infantil, o fortalecimento de sistemas sociais públicos, o maior período de paz, o acesso mais generalizado aos bens públicos essenciais e tantos outros exemplos de progresso humano e social.

Mas, o que aqui quero expressar são interrogações, dúvidas e até angústias. Ou seja, o lado negativo desta Rerum Novarum (Das coisas novas), já não de Leão XIII (1891), mas dos tempos hodiernos.

Temos, ao nosso dispor, uma imparável parafernália tecnológica. Vivemos numa época de êxtase científica, onde o infinito parece ser o limite. Universalizaram‐se poderosos meios virtuais de comunicação, com o que de maravilhoso e danoso nos trazem. Glorificámos o homo economicus e transformámos a economia de mercado em sociedade de mercado. Endeusámos a globalização económica e informacional e ignorámos os seus perigos morais. Valorizou‐se mais o crescimento económico do que o desenvolvimento humano. Estimulou‐se a apologia e o elogio do sucesso, enquanto se desdenhou da compaixão por quem fracassa. Fomentou‐se, sem rodeios, o monopólio do ter, que tantas vezes esmaga a dignidade do ser. Desprezámos a aldeia para aumentar o urbanismo descontrolado e o asfalto. (Tolstói, aldeia) Vivemos prenhes da nova ideologia do atualismo, que secundariza o tempo que está para além do dia seguinte. Erguemos o utilitarismo como a ética da conveniência e o egoísmo como a ética intergeracional. Convivemos com uma insidiosa métrica do valor da vida, através da qual ser velho é um problema e nascer é uma inconveniência. Continuamos, apesar das declarações proclamatórias, a ver a natureza como uma mera coisa instrumental a usar, abusar e a saquear. Exaltamos a exclusividade dos direitos e fragmentamos os correspondentes deveres. Esquecemos que a noção de direitos humanos é ilusória quando se separa o direito do dever. Enganamo‐nos quando, entre o bem e o mal, criámos uma falsa e perigosa categoria ética, a da indiferença. Esbanjamos investigação e dinheiro em meios de guerra nucleares, urânio enriquecido, armamento sofisticado, armas químicas, mas não temos sido capazes de erradicar a malária que mata em África, e outras doenças, só porque escolhem os pobres para seu alvo. Desmerecemos o direito natural universal que decorre da natureza humana e dos seus fins para tudo concentrar no direito positivo contingente, que, não raro, contraria o direito natural. Adulterámos o bem comum, enquanto expressão ética e dimensão social e comunitária de fazer o bem e enquanto razão de ser da autoridade política. Desvalorizámos a família e o lar (palavra ora em desuso) como epicentros da educação, da solidariedade e de transmissão da vida, em troca do individualismo, da efemeridade e do hedonismo. Trocámos valores sólidos pelo subjetivismo e relativismo de meras opiniões que nada valem por tudo quererem valer. Dividimos a força da verdade e multiplicamos a mentira. Promovemos a primazia do número e o sufoco da estatística, como formas traiçoeiras de ditar políticas e de iludir as muitas formas de exclusão. Satisfazemo‐nos com a supremacia das circunstâncias sobre nós próprios. Reduzimos os agrupamentos humanos a arquétipos formatados em visões abstratas e objeto de decisões frias e distantes.

Assistimos a uma Europa sem alma, sem comando, cheia de tiques de correção política, palavrosa e convertida em euros. Deixámos de ter estadistas que viam longe, para dar lugar à política que não enxerga para além do curtíssimo prazo e alimenta (e se alimenta) de epifenómenos populares, populistas, ou seja, lá o que for.

Somos de um tempo em que uns acusam outros de culpas, não raro por nada de importante e por tudo de insignificante. Tão concentrados estamos nas verdadeiras ou inventadas culpas, que esquecemos as soluções ou os caminhos a trilhar. Trocámos a segurança das soluções pela pressa das impressões. Para isso, menosprezamos a memória, alimentados por uma insidiosa cultura do presentismo e do descarte. A erosão memorial é mais conveniente para quem anuncia do que para quem age. Sacrificamos o essencial, seduzidos que estamos pela obsessão da quantidade, da futilidade, senão mesmo da inutilidade. Tudo subjugamos ao tempo físico (kronos) e desvalorizamos o tempo espiritual que está para além do tempo (kayros). Como ilustrativamente, nos diz um provérbio, creio que chileno, «à procura de água, encontrámos petróleo e morremos à sede».

Propositadamente estou a falar na primeira pessoa do plural, e não num anónimo sujeito nulo. Mas porque nós, se todos achamos que nada ou pouco temos a ver com isto? Fi‐lo, desde logo pensando em mim, tendo presente um texto do filósofo e eticista Emmanuel Levinas, em Ética e infinito, por sua vez baseado no que Dostoiévski, escreve em Os irmãos Karamazov: «Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, eu mais do que os outros. Não devido a esta ou àquela culpabilidade efetivamente minha por causa de faltas que tivesse cometido, mas porque sou responsável de uma responsabilidade total».

Enfim, vivemos (vivíamos) numa roda aparente, enganadora e solipsista, que muitos julgavam inexpugnável. E, de repente, um vírus do tamanho de nada consegue, planetariamente, pôr em causa este estado de coisas. Um quase invisível inimigo de cerca de 500 nanómetros, ataca‐nos na nossa mais sagrada e vulnerável expressão, a da vida. Perante este combate, tudo o resto se esvanece. O que ontem era importante, hoje passou a ser dispensável. O que ontem era urgente, diluiu‐se na sua quase sempre falsa pressa. Ninguém sabe como esta situação vai evoluir, mas o despertar das consciências deve ser encarado como uma boa lição a tirar para o futuro. Este é um ponto que nos deve tornar mais avisados quanto às servidões em que muitas vidas se deixaram aprisionar. Esta guerra silenciosa que o mundo enfrenta abre‐nos e alerta‐nos para as verdadeiras e profundas prioridades de governantes e governados, da vida em sociedade.

Reconheço que este meu diagnóstico seja por demais pessimista, de observar o mundo agora confrontado com o brutal ataque de um traiçoeiro micro‐organismo. Mas, também, falo no otimismo esperançoso da lição que saibamos tirar desta ameaça. E se só o nosso comportamento pode erradicar este pesadelo, que ele sirva também para prevenirmos o nosso futuro.

A crise é sempre uma ocasião de discernimento, de distinguir o essencial e acessório, o útil e o fútil, o perene e o passageiro, o relevante e o adjacente, o ser e o ter.

Os limites para um melhor desenvolvimento

O desenvolvimento também sempre nos colocará o problema dos LIMITES. Vejamos o quadro anexo que estabelece as ordens (no sentido de Pascal) que temos diante de nós. Este modelo é parcialmente baseado no pensador francês André Comte‐Sponville.

1.a ‐ A ordem tecnocientífica: Que limites estabelecer?

Esta ordem está endogenamente ligada por oposição do possível ao impossível, que, todavia, é incapaz de se autolimitar. É o que se designa por processo científico e tecnológico. Que não é garantia para a humanidade. As ciências só por si não se autolimitam. Logo, têm de ser limitadas do exterior.

A ciência, seja ela qual for, apenas nos diz o que agora é tecnicamente possível, cientificamente pensável ou por enquanto ainda não possível. O mesmo avanço científico pode ser usado para o bem ou para o mal.

Armas letais, manipulações genéticas, clonagem reprodutiva, desenvolvimento químico, energia nuclear são exemplos bem conhecidos dessa ambivalência.

Já dizia Kant: uma ciência que negligenciasse a ética seria bárbara e selvagem. Uma ética que competisse com a ciência seria dominadora e castradora.

2.a ‐ A ordem económica

Que limites para a economia? Que limites para o mercado? Que limites para o mercado de capitais? Que limites para o preço da habitação? Ou do petróleo? Ou das matérias primas? Ou da alimentação (limites de mínimos e de máximos)? Ou dos salários? Ou dos juros? A economia não responde… Não há limites económicos para a economia, como é bem visível em tempos de euforia especulativa ou em períodos de depressão.

Logo, tem de ser limitada do exterior.

3.a ‐ A ordem jurídico‐política (A Lei e o Estado)

Estruturada por oposição do legal ao ilegal.

Mas como se pode limitar esta terceira ordem, seja a nível individual, seja a nível coletivo?

Há quem diga que a ética é tão‐só o cumprimento escrupuloso da lei. Acontece que o conjunto das normas jurídicas e o conjunto das normas éticas jamais coincidem. Há muitas regras de conduta ética que não estão juridicamente plasmadas. A ética não se estrutura na dicotomia legal/ilegal, mas radica na consciência. O conjunto do que é moralmente aceitável (o legítimo) é mais restrito do que é juridicamente aceitável (o legal). Nem tudo o que a lei permite se nos deve impor, e há coisas que a lei não impõe, mas que se nos devem impor. Nenhuma lei proíbe em absoluto a mentira, a desonestidade, a deslealdade, a malvadez, o ódio, o desprezo, a vilanagem… Como nenhuma lei só por si assegura a decência, a verdade, a generosidade, a temperança, a prudência, a exemplaridade, a integridade, a autenticidade, a honradez, a coerência ou a sensatez.

Imagine‐se o puro (ou vil) legalista. Imagine‐se se se limitasse ao cumprimento da lei.

E, aqui chegados, poderemos ter um «monstro»: um legalista puro e duro, cientificamente competente e tecnicamente perfeito.

Em nível coletivo, há exemplos dramáticos na história que nos evidenciam que a lei (mesmo que sustentada na soberania do povo ou vontade de maiorias em determinados momentos) que o legislador pode fazer o melhor e o pior (apartheid, genocídios, holocausto, goulag etc.).

É que não se vota sobre o que é verdadeiro ou falso, sobre o bem e o mal. Como pode a lei limitar o que faz a lei? A norma jurídica não pode assegurar a capacidade de se limitar a si própria (não há limites, mesmo que democráticos para a democracia). O que vemos hoje por todo o mundo é o que chamaria de «oportunismo legal». Fazem‐se leis, não como expressão da razão (como dizia São Tomás de Aquino), mas leis prolixas vagueando entre vontade, conveniência e ilusão.

Logo temos de a limitar do exterior.

4.a ‐ A ordem da moral (e não ordem moral)

A ética da primeira pessoa (a autoexigência) deveria ser sempre a primeira condição para a ética da terceira pessoa (ser‐se exigente com os outros). Infelizmente todos os dias se observam distorções deste contrato moral. E parece cada vez menos considerado o imperativo kantiano: Age unicamente segundo a máxima que te leve a querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei de tal modo que, se os papéis fossem invertidos, as partes em questão estariam sempre de acordo.

A consciência de uma pessoa honesta é mais exigente do que o produto de um legislador.

Não há necessidade de limitar a ordem da moral (como se alguém pudesse ser moral de mais), mas sim de a completar, porque, em si, a ética é indispensável, mas ainda insuficiente. A ética é uma expressão de exigência e livre arbítrio: conciliar o quero, o posso e o devo. Há coisas que quero, mas não posso. Há coisas que posso, mas não devo. Há coisas que devo, mas não quero (ou que não devo, mas quero). Pode‐se ser melhor pessoa, mas não se pode ser mais pessoa.

A regra de ouro no plano ético tem sido frequentemente violada: para alguns, os fins justificam sempre qualquer tipo de meio. Para tal, «inventou‐se» um novo arquétipo moral entre os atos bons e os maus: os atos indiferentes, uma espécie de silenciosa amiba onde se acolhem as maiores ilegitimidades éticas.

A perspetiva axiológica do uso do poder como poder‐dever tende a diluir‐se na primazia do triângulo presentismo‐relativismo‐subjetivismo. No frenesim de micro, pequenas e médias éticas, a sociedade vem‐se tornando mais amnésica.

Fazer as coisas bem feitas poderá ser uma medida de eficiência. Mas só fazer as coisas certas é uma medida de ética. Juntando estas duas asserções, isto é fazer as coisas certas de um modo certo é chegar à plenitude do imperativo ético. Para tal, buscando os fins na sua relação com o outro e consigo. E sabendo escolher os meios necessários para alcançar os fins. Com liberdade e responsabilidade. Tantas vezes em confrontação dilemática, em contextos e situações que podem implicar escolhas difíceis e custos associados a renúncias. O que falta ao «fariseu» é a calibragem moral, o humanismo, o amor.

5.a ‐ A ordem da natureza

Uma ética não se esgota numa perspetiva meramente antropocêntrica, com o ser humano desligado do mundo natural.

A ideia de uma integral e pluridimensional ética refuta a ideia moral de pôr o Homem à parte da Natureza, como se esta e todos os outros seres vivos não tivessem direito aos nossos deveres para com eles. O conceito de dignidade numa perspetiva teleológica não diz apenas respeito aos seres vivos (seres humanos, animais, plantas) como a todos os seres não vivos (oceanos, cursos de água, atmosfera).

O valor da natureza não pode ser meramente instrumental. Um mero reservatório de recursos. Ou coisificado, pela apropriação e transformação do mundo natural. Antes exige uma visão biocêntrica que nos possa conduzir a um ideal ético de harmonia do homem com a natureza. Daí e desde logo, a afirmação da ética do cuidar e do princípio preventivo que lhe está associado. Ao menos, ditada pelo princípio da necessidade.

A nossa vida no planeta depende da vida vegetal. Graças à fotossíntese, conseguem o milagre da transformação da energia luminosa em energia química, que nos permite viver. A fotossíntese é o verdadeiro motor da vida: água, luz e dióxido de carbono para nos libertarem oxigénio. Haverá dádiva maior?

As leis do mercado têm prevalecido inexoravelmente sobre as leis da Natureza. O uso dos recursos ambientais não pode ser separado do respeito pelas exigências morais. As estatísticas não refletem a realidade da terra, do ar e do mar. O PIB é cada vez mais um indicador imperfeito e incompleto. Não toma em conta a apreciação ou a depreciação do ativo ambiental e dos recursos naturais. Já se fala, com insistência, em outras formas de medir a riqueza e o desenvolvimento, considerando não apenas o que se produz como ativo da sociedade (o PIB contabilístico tradicional), mas deduzindo‐lhe o passivo que resulta da depreciação ou destruição de bens naturais indispensáveis ao bem‐estar coletivo (água, solos, florestas, pescas, reservas minerais). Provavelmente se isto fosse tomado em conta – um PIB mais verde ou azul – a degradação e a destruição da floresta, por exemplo, teriam provocado quedas do PIB. Quem sabe se esta mudança estatística, só por si, não permitiria uma atenção maior a estes setores, pois que deste modo os governantes se sentiriam mais escrutinados….

Uma ética humana, mas abrindo‐se ao mundo natural. O Papa Francisco na Encíclica Laudato Si nos alerta para uma lógica de crescimento como se fôssemos «proprietários e dominadores, autorizados a saquear» os bens do planeta. «A fraqueza das reações perante os gemidos da irmã Terra».

6.a ‐ A ordem do amor

Por fim, a ordem do amor: o amor da verdade, o amor da humanidade ou do próximo e o amor da liberdade. Ou, por outras palavras, a ordem da humanidade em que a nossa tripla condição de indivíduo, cidadão e pessoa convergem para a edificação do bem‐comum.

Em conclusão: precisamos destas seis ordens ao mesmo tempo, na sua independência relativa e na sua plena interação.

As seis são necessárias, nenhuma é suficiente.

Cuidados de saúde

Terminarei com uma breve passagem pelo que considero serem fatores ligados a tensões entre as ordens citadas no domínio dos cuidados de saúde.

Alguém disse que «os serviços de saúde são a medida de uma civilização». Parece‐me ser uma asserção cada vez mais adequada.

Falando mais concretamente dos sistemas de saúde ou outras ofertas de saúde, importa alterar fatores de obstrução e de exercício de formas de poder ao desenvolvimento na era pós‐Covid:

O poder da tecnocracia e da burocracia sobre a humanização dos cuidados de saúde. Burocracia entendida como o resultado do divórcio entre os meios e os fins. Tecnocracia como a supremacia dos meios sobre os fins que muitas vezes se superiorizam face ao caráter e finalidade humanos e humanistas da prestação de cuidados de saúde. Não é por acaso que o sistema de saúde público deve ser o único setor económico que se queixa da procura e vê o seu aumento como uma fatalidade e não como uma oportunidade!

O poder das estruturas orgânicas sobre os objetivos de saúde. A segmentação e compartimentação das respostas conduzem, não raro, à sua insuficiência e iniquidade, para problemas que são globais, ou mesmo à sua omissão funcional constituindo quase «terras de ninguém» (em parte, geriatria, saúde mental). Os serviços públicos de saúde ainda são monolíticos na sua estrutura e fragmentados na sua ação. Por isso, não é de admirar que para os mais pobres a urgência hospitalar seja o único ponto de sistema integrado de cuidados de saúde.

O poder das estatísticas sobre as pessoas que se revela no facto de a política em geral se distanciar das pessoas e dos seus problemas concretos e de muitas vezes se enfocar a administração da coisa pública nas estatísticas, como seu fim último. Ora, na saúde, antes dos números estão sempre as pessoas, antes da aparência estatística está a realidade percecionada por cada pessoa. A obsessão pela quantidade até pode ser uma eficiente «união de facto», mas só a luta pela qualidade revela a excelência humana de uma «união de valor»!

O poder dos diagnósticos (segurança) sobre as terapêuticas (eficácia) que levou caricaturalmente o escritor austríaco Karl Kraus a afirmar que «uma das causas mais comuns de todas as doenças é o diagnóstico»!

O poder da idade e dos ativos sobre os inativos, que gera situações de alguma discriminação, porque em primeiro lugar os ativos têm mais disponibilização de cuidados e as pessoas mais velhas têm mais dificuldade de obter cuidados de saúde adequados. Há mesmo, por vezes, a ideia utilitarista e humanamente perversa de uma «métrica da vida», pela qual já não vale a pena «investir» na saúde dos velhos.

O poder urbano sobre o rural: sendo que na saúde é sobretudo a oferta que condiciona a procura, havendo no campo menos oferta de centros de saúde, de hospitais, de farmácias, de meios de diagnóstico, há menos prevenção e menos consumo de «cuidados de saúde». Estudos empíricos revelam claramente que fora das grandes cidades, o consumo, designadamente de cuidados em ambulatório, é quase diretamente proporcional à densidade dos serviços médicos.

Tudo a haver com as questões‐chave, agora mais exigentes e prementes:

Como compatibilizar equidade e eficiência, liberdade de escolha e concorrência, equilíbrio sensato entre incentivos e controlos, consumo e gestão de meios, segmentação de responsabilidades e partilha de riscos, solidariedade e contratualização do risco?

Como atuar face às restrições que resultam das características de rivalidade do bem saúde, com uma gestão cada vez mais exigente numa economia de escassez, com a aspiração à equidade e tempestividade no seu uso, com a fortaleza de estritas regras éticas e deontológicas, com uma evolução tecnológica alucinante no diagnóstico e terapêutica, com uma crescente e bem‐vinda consciencialização dos direitos dos cidadãos, com o imperativo da privacidade, e até com uma revolução no domínio da genética que levanta novas e insondáveis interrogações. Além da valorização da ética de cuidar que está para além da ética de curar.

Em conclusão: sabendo‐se que a história se repete, ainda que com diferentes meios e contingências, temos de ser humildes, apurar o sentido de prevenção, sem a obsessão do maniqueísmo, prontos a aprender com os erros.

Não há remédios técnicos para males éticos. Esta é a mais séria e profunda reforma estrutural e geracional que urge concretizar. Com futuro e esperança.

Aqui, apenas procurei lançar interrogações. Como escreveu Confúcio, «não procuro tanto saber as respostas, mas sobretudo compreender as perguntas». Ou Goethe: não perguntemos se estamos totalmente de acordo, mas tão‐só se vamos pelo mesmo caminho.

Conflitos de interesse

Nenhum.

Conferência proferida no 1.° Fórum da Revista Portuguesa de Cardiologia, Casa do Coração, Lisboa, 11 de Setembro de 2020.

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