Os autores apresentam o caso de uma doente de 76 anos, com o diagnóstico de tumor neuroendócrino do cego desde 2004 com metastização hepática, e com síndrome carcinóide desde setembro de 2010. A doente realizou ciclos de quimioterapia de forma intermitente, pelo que manteve sintomas e agravamento das lesões secundárias. Desde junho de 2011 apresenta sinais e sintomas compatíveis com insuficiência cardíaca direita, ficando internada em setembro de 2011. Nesta sequência realizou ecocardiograma transtorácico bi e tridimensional que revelou cavidades direitas dilatadas e folhetos das válvulas tricúspide e pulmonar espessados, fixos, condicionando insuficiência tricúspide grave e estenose e insuficiência pulmonar ligeiras, sugestivas de doença carcinóide cardíaca. Os autores discutem a relevância clínica da ecocardiografia transtorácica, e, atualmente, da ecocardiografia tridimensional, como o método de investigação de escolha nestes casos, ao permitir avaliar de forma única as válvulas e o aparelho subvalvular.
We describe the case of a 76-year-old woman, diagnosed with a neuroendocrine tumor of the cecum in 2004, with liver metastases and carcinoid syndrome since September 2010. The patient had been treated intermittently with chemotherapy cycles, and remained symptomatic, with worsening secondary lesions. In June 2011 she began to present signs and symptoms of right heart failure and was hospitalized in September 2011. Transthoracic two- and three-dimensional echocardiography revealed enlarged right atrium and ventricle and thickened and fixed tricuspid and pulmonary valve leaflets, causing severe tricuspid regurgitation and mild pulmonary regurgitation and stenosis, suggestive of carcinoid heart disease. The authors discuss the clinical importance of transthoracic echocardiography, and the more recent three-dimensional echocardiography, as the diagnostic exam of choice in these cases, as it is especially suitable for assessing the valves and subvalvular apparatus.
Os tumores carcinóides, cuja incidência na população geral é de 1 em cada 100 000 indivíduos, são neoplasias malignas raras que se originam das células enterocromafins localizadas no trato gastrointestinal ou pulmões1,2.
Aquando do diagnóstico, 20 a 30% dos doentes têm doença disseminada e apresentam-se com síndrome carcinóide, caracterizada por flushing, diarreia e broncospasmo. Esta síndrome é causada pela produção tumoral de serotonina e de outras substâncias vasoativas3.
Aproximadamente 50 a 60% dos doentes com síndrome carcinóide apresentam doença carcinóide cardíaca. O seu desenvolvimento está relacionado com a produção de substâncias vasoativas secretadas pelas células tumorais metastáticas no fígado, que atingem o coração direito, e que causam a deposição de tecido fibroso no endocárdio. Os estudos mais recentes sugerem que a prevalência de doença carcinóide cardíaca tem diminuído, em virtude da introdução de análogos da somatostatina e de outras terapias antitumorais que levam à redução do tumor e, consequentemente, dos seus produtos secretórios4,5.
Inicialmente a doença carcinóide cardíaca é bem tolerada, podendo os doentes manter-se em classe funcional I da New York Heart Association (NYHA) mesmo apresentando lesões valvulares graves no coração direito. Contudo, com o progredir da doença carcinóide cardíaca, surgirão os sinais e sintomas típicos de insuficiência cardíaca direita.
As características ecocardiográficas encontram-se bem definidas, e classicamente os folhetos e o aparelho subvalvular das válvulas tricúspide e pulmonar apresentam-se espessados, com excursão dos folhetos reduzida, fazendo com que estes se encontrem fixos e não coaptem. Desta forma, pode ocorrer uma combinação de insuficiência e estenose valvulares. Na maioria dos doentes com doença carcinóide cardíaca ocorre envolvimento da válvula tricúspide com ou sem envolvimento da válvula pulmonar. As lesões valvulares no coração esquerdo estão presentes em aproximadamente 15% dos doentes com doença carcinóide cardíaca. Estas também se caracterizam por espessamento difuso dos folhetos valvulares, contudo de modo menos agressivo do que no coração direito. Ligeiro derrame pericárdico ocorre em cerca de 10% dos doentes, enquanto a presença de metástases cardíacas é muito rara4.
No presente artigo apresentamos o caso de uma doente com síndrome carcinóide em que a ecocardiografia transtorácica bidimensional, e, subsequentemente, a ecocardiografia transtorácica tridimensional visualizaram adequadamente as estruturas, sendo possível estabelecer o diagnóstico de doença carcinóide cardíaca, sem o recurso a ecocardiografia transesofágica.
Caso clínicoDescrevemos o caso de uma doente de 76 anos, sem antecedentes pessoais relevantes, com o diagnóstico de tumor neuroendócrino do cego com padrão insular desde janeiro de 2004, após hemicolectomia direita, seguida desde então em Consulta de Oncologia Médica.
A tomografia computorizada abdominal e a cintigrafia com 111In-Pentatreótido (octreoscan) revelaram metastização hepática, pelo que iniciou tratamento paliativo com interferão-alfa 5 milhões de unidades (MU) 3 vezes por semana. Em abril de 2004 foi submetida a exérese de cinco metástases hepáticas, a ooforectomia bilateral e a exérese de nódulo peritoneal. O diagnóstico histológico de todos os fragmentos revelou tumor carcinóide, pelo que foi mantida a terapêutica com interferão-alfa.
Em março de 2005, em octreoscan de reavaliação foi documentado o desaparecimento das lesões hepáticas, mantendo-se a doente em vigilância. Em janeiro de 2007, apesar de clinicamente assintomática, apresentou captação hepática no octreoscan realizado e elevação de ácido 5-hidroxi-indolacético, tendo indicação para terapêutica com interferão ou quimioterapia, contudo a doente recusou qualquer terapêutica.
Em setembro de 2010 apresenta episódios esporádicos de flushing, de diarreia e broncospasmo, tendo, nesta ocasião, por síndrome carcinóide, iniciado terapêutica com octreotido, que apesar da ligeira melhoria clínica da sintomatologia, suspendeu em dezembro de 2010 por intolerância (náuseas, vómitos e dor abdominal).
Desde janeiro de 2011 a doente apresenta queixas de cansaço para esforços progressivamente menores e progressão da doença, com agravamento das lesões hepáticas, pelo que inicia quimioterapia oral com capecitabina, que suspendeu após quatro ciclos por intolerância (náuseas, vómitos e diarreia). A doente manteve sintomas de síndrome carcinóide e agravamento das lesões secundárias, mas recusou sempre tratamento dirigido.
Desde junho de 2011 a doente refere o aparecimento de edema dos membros inferiores, aumento do volume abdominal e cansaço de agravamento progressivo, razão pela qual foi internada em setembro de 2011 com a hipótese diagnóstica de insuficiência cardíaca descompensada.
À observação apresentava pele e mucosas desidratadas e descoradas, fígado palpável 4 cm abaixo do rebordo costal direito, sinal de onda líquida positivo e edema dos membros inferiores até à raiz da coxa.
Dos exames complementares de diagnóstico realizados são de destacar o eletrocardiograma na admissão (Fig. 1) que revelava ritmo sinusal, com frequência cardíaca de 70/min, com baixa voltagem do QRS em todas as derivações.
A radiografia do tórax realizada na admissão apresentava apagamento dos seios costofrénicos esquerdo e direito, sendo compatível com derrame pleural bilateral.
Foi submetida a exame de ecocardiograma transtorácico, em que se realizaram imagens com recurso a ecocardiografia tridimensional (Figs. 2 e 3).
Envolvimento carcinóide da válvula tricúspide. A – Apical 4 câmaras, em sístole, que revela dilatação das cavidades direitas, com folhetos da válvula tricúspide espessados, que não coaptam, em posição semiaberta. B – Doppler-cor demonstrando insuficiência tricúspide grave. C – Pormenor em ecocardiografia tridimensional, com comparação das válvulas tricúspide e mitral, observado da face ventricular. C1 – Pormenor de ecocardiografia tridimensional, em diástole, mostrando folhetos da válvula tricúspide fixos, imóveis, espessados quando comparados com os folhetos da válvula mitral. C2 – Pormenor de ecocardiografia tridimensional, em sístole, revelando o encerramento da válvula mitral e o não encerramento da válvula tricúspide. D – Doppler contínuo que revela a insuficiência tricúspide. VT – Válvula tricúspide; VM – Válvula mitral.
Envolvimento carcinóide da válvula pulmonar. A – Trato de saída do ventrículo direito. Folhetos da válvula pulmonar espessados. B – Doppler-cor que mostra fluxo diastólico ligeiramente turbulento de insuficiência pulmonar ligeira. C – Doppler contínuo que revela estenose pulmonar ligeira. RVOT – trato de saída do ventrículo direito; VP – Válvula pulmonar.
O ecocardiograma transtorácico revelou dimensões normais do ventrículo esquerdo e espessura das paredes normais, sem alterações segmentares da contratilidade, com função sistólica global conservada. As cavidades direitas estavam dilatadas (Fig. 2-A), com boa função sistólica global do ventrículo direito (tricuspid annular plane systolic excursion de 22mm), não se detetando gradiente significativo entre o ventrículo direito e a aurícula direita (Fig. 2-D). Era possível observar o espessamento dos folhetos da válvula tricúspide, que não coaptam em sístole, condicionando insuficiência tricúspide grave (Fig. 2-B), pormenor este mais evidente nas imagens de ecocardiografia transtorácica tridimensional (Figuras 2-C1 e 2-C2).
A válvula pulmonar apresentava cúspides espessadas, condicionando estenose pulmonar ligeira (Fig. 3-C) e insuficiência pulmonar também ligeira (Fig. 3-B).
A doente foi medicada com furosemida (40mg/dia), ramipril (10mg/dia) e espironolactona (50mg/dia), mantendo a recusa por quaisquer outras terapêuticas. Tem alta a 28 de outubro de 2011, clinicamente melhorada.
Discussão e conclusõesOs efeitos cardiovasculares da doença carcinóide cardíaca incluem para além de lesões estruturais (espessamento, com deposição de tecido fibroso no endocárdio, classicamente, envolvendo o coração-direito), alterações hemodinâmicas importantes6,7.
Sem intervenção ou terapêutica dirigida, a doença carcinóide cardíaca poderá desenvolver-se progressivamente, causando insuficiência cardíaca direita sintomática, como no caso clínico descrito pelos autores4.
Os autores descrevem um caso clínico em que a doente apresenta no eletrocardiograma realizado na admissão baixa voltagem do QRS. Esta alteração eletrocardiográfica é muito prevalente nos doentes com doença carcinóide cardíaca, podendo ser uma das «chaves» iniciais para o diagnóstico, apesar da sua baixa sensibilidade.
No caso clínico que descrevemos, documentámos as alterações valvulares mais frequentes da doença carcinóide: a insuficiência tricúspide (a válvula tricúspide encontra-se envolvida em praticamente todos os casos de doença carcinóide cardíaca) e a estenose pulmonar.
Em muitos doentes, tal como no caso que apresentamos, os folhetos e o aparelho subvalvular encontram-se espessados, levando à retração dos folhetos, à sua fixação e à não coaptação, permanecendo a válvula, deste modo, em posição semiaberta. Funcionalmente poderá ocorrer uma combinação de insuficiência com estenose valvular, sendo a combinação destas lesões que condiciona o maior compromisso hemodinâmico. Assim, a estenose pulmonar poderá agravar a insuficiência tricúspide, podendo a gravidade da estenose pulmonar ser subestimada devido ao baixo débito cardíaco e ao elevado volume regurgitante tricúspide.
A aurícula direita e o ventrículo direito estão tipicamente dilatados, ocorrendo movimento paradoxal do septo interventricular, devido à sobrecarga de volume ventricular direita. Contudo, a função do ventrículo direito permanece conservada até uma fase tardia no curso da doença carcinóide cardíaca4.
Apesar de o diagnóstico ser frequentemente realizado por ecocardiografia transtorácica, a tomografia computorizada e a ressonância magnética cardíacas podem adicionar informações anatómicas e funcionais relevantes, particularmente na avaliação valvular, da função ventricular direita e do volume das cavidades direitas4,8.
Desde a última década, a cromogranina A (CgA) é um marcador bem estabelecido para o diagnóstico de tumores neuroendócrinos, enquanto o N-terminal do pró-péptido natriurético cerebral (NT-proBNP) é um biomarcador importante de disfunção ventricular. A este respeito Korse et al. avaliaram o valor diagnóstico e prognóstico da CgA e do NT-proBNP em doentes com doença carcinóide cardíaca com insuficiência tricúspide, concluindo que ambos os marcadores eram importantes no diagnóstico e que o seu valor conjunto se associava a um pior prognóstico9.
Com este caso, os autores também pretenderam salientar a importância da ecocardiografia transtorácica bidimensional e, cada vez mais da ecocardiografia tridimensional, no diagnóstico da doença cardíaca carcinóide e na adequada caracterização das lesões valvulares.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.