A etiologia das miocardites pode ser muito diversa, contudo, a etiologia viral continua a ser a mais comummente presumida. Nesta revisão sistemática da Cochrane Collaboration os autores avaliaram a eficácia da terapêutica com corticosteroides nestes doentes. Foram incluídos para análise oito ensaios controlados e aleatorizados com 719 doentes (dois ensaios clínicos em populações pediátricas). De acordo com os resultados da meta‐análise, não se verificaram diferenças em termos de mortalidade com o uso de corticosteroides. Os doentes sob terapêutica com corticosteroides apresentaram estimativas de fração de ejeção do ventrículo esquerdo significativamente superiores após terapêutica. Estes resultados são limitados pela heterogeneidade significativa associada aos resultados dos ensaios clínicos. A melhor evidência disponível não suporta, portanto, a utilização de corticosteroides por rotina em doentes com miocardite viral.
The causes of myocarditis are diverse, but a viral etiology is the most common. In this systematic review by the Cochrane Collaboration, the authors assessed the efficacy of corticosteroid therapy in patients with viral myocarditis. Eight randomized controlled trials with 719 patients (two trials in pediatric populations) were included for analysis. Pooled results did not show significant differences in mortality with the use of corticosteroids. Patients on corticosteroid therapy had significantly higher post‐treatment left ventricular ejection fraction values compared to control. These results are limited by the significant heterogeneity associated with clinical trials. The best available evidence does not support the routine use of corticosteroids in patients with viral myocarditis.
Qual o papel da terapêutica com corticosteroides no prognóstico dos doentes com miocardite de etiologia viral1?
ObjetivosAvaliar o impacto da terapêutica com corticosteroides em doentes com miocardite de etiologia viral1, em termos de: 1) mortalidade; 2) função sistólica (fração de ejeção [FEVE]) e dilatação ventricular esquerda (volume telesistólico); 3) biomarcadores de lesão miocárdica.
Tipo e descrição do estudoRevisão sistemática de ensaios clínicos controlados e aleatorizados (RCT) que avaliaram doentes (crianças ou adultos) com miocardite viral (aguda ou crónica; sem a obrigatoriedade de diagnóstico definitivo por biópsia miocárdica, tal como acontece no mundo real2), aleatorizados para terapêutica com corticosteroides ou para um dos seguintes grupos controlo: placebo, terapêutica de suporte, ausência de tratamento, terapêutica antiviral ou terapêutica convencional1.
Foram pesquisadas as bases de dados de ensaios clínicos da Cochrane Library (CENTRAL, julho de 2012), MEDLINE (1946‐2012), EMBASE (1980‐2012), BIOSIS Previews (1969‐2012), Web of Science (1970‐2012), LILACS, registo chinês Biomed, CNKI e base de dados de WANFANG.
A extração e avaliação dos dados foram realizadas independentemente por dois autores.
Os resultados dos estudos foram agregados em meta‐análises.
ResultadosForam incluídos para análise oito RCT com 719 doentes com miocardite viral (a pesquisa de vírus foi realizada em 38% dos doentes, sendo positiva em 56% destes). Dois dos RCT incluídos avaliaram populações pediátricas. No global, a qualidade metodológica dos ensaios foi baixa.
A terapêutica com corticosteroides não reduziu de forma significativa o risco de morte nem o risco de morte ou transplante cardíaco (Figura 1A). Ao fim de 1‐3 meses verificaram‐se diferenças significativas na função sistólica ventricular esquerda, avaliada pela FEVE, entre os grupos tratados com corticosteroides e controlo. A corticoterapia esteve associada a um valor relativo 7% superior da FEVE (Figura 1B);, contudo, os resultados desta meta‐análise são limitados pela significativa heterogeneidade entre os resultados dos ensaios (I2=56%) atribuída às diferenças (clínicas e metodológicas) entre os estudos incluídos. Apenas um estudo avaliou o impacto a longo termo (um ano de seguimento), reportando um um valor relativo 13% superior da FEVE (Figura 1B).
A: resultados da meta‐análise em relação à mortalidade; B: resultados da meta‐análise em relação à função ventricular esquerda na população global e na população pediátrica. Adaptado de Chen et al.1
FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; IC 95%: intervalo de confiança de 95%.
A corticoterapia não teve impacto no diâmetro telessistólico do ventrículo esquerdo ou na melhoria global dos sintomas avaliados pela classe funcional New York Heart Association (NYHA).
A corticoterapia diminuiu de forma significativa os níveis séricos dos biomarcadores de lesão miocárdica, nomeadamente a creatina‐cinase (CK), a sua isoenzima MB (CK‐MB) e α‐hidroxibutirato desidrogenase (α‐HBDH).
ConclusõesA terapêutica com corticosteroides não reduziu a mortalidade nos doentes com miocardite viral. Estes fármacos podem melhorar (ou não agravar) a função sistólica ventricular esquerda, contudo, estes resultados são incertos dada a dimensão dos estudos incluídos e a sua baixa qualidade metodológica com importantes riscos de vieses.
ComentárioA miocardite é uma patologia com expressão clínica heterogénea (desde a toracalgia pauci‐sintomática até às disritmias ventriculares ou choque cardiogénico), sendo uma entidade desafiante sob o ponto de vista diagnóstico e terapêutico. A etiologia das miocardites pode ser muito diversa, contudo, a etiologia viral continua a ser o protótipo para a avaliação desta patologia. Embora o diagnóstico definitivo seja histológico, imunológico e/ou imuno‐histológico, e portanto com necessidade de biópsia endomiocárdica, na prática clínica a execução deste procedimento não é frequente2. Desta forma a maioria dos diagnósticos é presumida com base na clínica, biomarcadores de lesão miocárdica e meios complementares de diagnóstico imagiológico (como a ressonância magnética). Trata‐se de uma inflamação do miocárdio com uma primeira fase de lesão infecciosa direta ou indireta seguida de um processo frequentemente caracterizado por lesão autoimune3. Desta forma, a utilização de corticosteroides poderia ter impacto no processo fisiopatológico. Nesta revisão sistemática não se verificou um impacto da terapêutica corticosteroide na mortalidade1. O potencial benefício encontrado na melhoria da função ventricular esquerda – ou não‐progressão da disfunção – baseia‐se em estudos pequenos e com qualidade metodológica baixa (todos os estudos foram realizados sem ocultação).
O documento de consenso do Working Group de Doenças do Miocárdio e Pericárdio da Sociedade Europeia de Cardiologia4 recomenda o uso de terapêutica imunossupressora, entre os quais os corticosteroides, apenas após a exclusão de infeção ativa pelo método histológico (biópsia endomiocárdica), em miocardite autoimunes, eosinofílica, tóxica ou sarcoidose cardíaca com disritmias ventriculares ou disfunção ventricular/insuficiência cardíaca, particularmente se refratária à terapêutica standard4.
Implicações para a práticaO tratamento com corticosteroides em doentes (adultos ou crianças) com miocardite viral não mostrou ter impacto na mortalidade. O eventual impacto clínico do efeito dos corticosteroides na função sistólica ventricular esquerda necessita de ser avaliado em ensaios clínicos robustos em termos de poder estatístico e qualidade metodológica. A melhor evidência disponível não suporta portanto a utilização de corticosteroides por rotina em doentes com miocardite viral.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.