Nos últimos anos assistimos a uma adoção progressiva das técnicas de tomografia computorizada (angioTC) e de ressonância magnética (RM) cardíacas na prática clínica. Este crescimento reflete a impressionante evolução da tecnologia aliada à imagem cardíaca, que as tornou ferramentas robustas na avaliação da doença cardiovascular, bem como a publicação e divulgação dos resultados clínicos decorrentes da sua utilização, nomeadamente na área da doença coronária.
No campo da angioTC cardíaca, cujo desenvolvimento nos últimos dez anos foi mais marcado, esta rápida evolução tecnológica contribuiu para melhorias significativas na sua resolução espacial e temporal, bem como uma progressiva redução da dose de radiação. Estes avanços técnicos contribuíram para a progressiva integração destas modalidades no algoritmo de avaliação do doente com suspeita de doença coronária. O presente trabalho de Ramos et al.1 vem dar um contributo importante para uma melhor compreensão do papel e posicionamento relativo destas técnicas de imagem cardíaca e enquadra‐se numa linha de investigação que o grupo tem vindo a desenvolver nesta área nos últimos anos2,3. Os autores devem ser felicitados pelo desenho do estudo, no qual 101 doentes foram sistematicamente avaliados por um protocolo integrado que incluiu a avaliação anatómica por angioTC cardíaca e a avaliação funcional por RM cardíaca de isquemia, bem como a realização sistemática de coronariografia complementada com avaliação da reserva de fluxo coronário (FFR). Vale a pena realçar que o FFR, para além de ser considerado o gold standard para avaliar o significado fisiológico das estenoses coronárias, permitindo identificar as lesões que condicionam isquemia e beneficiam de revascularização4, tem sobretudo uma validação prognóstica na identificação das lesões nas quais, na ausência de impacto funcional, é seguro não intervir uma vez que a sua evolução com terapêutica médica é relativamente benigna5,6.
No presente trabalho os autores foram avaliar o papel incremental da RM de isquemia à avaliação anatómica da angioTC cardíaca, numa população referenciada para coronariografia invasiva por suspeita de doença coronária.
Como seria de prever, um protocolo integrado de avaliação anatómica por angioTC cardíaca e funcional por RM de isquemia teve o melhor desempenho na identificação de doença coronária significativa. A questão que se coloca é em que casos se justifica este ganho adicional de desempenho em face dos resultados já bastante bons de qualquer um dos exames isoladamente, traduzido por uma área abaixo da curva ROC >0,8, mesmo para a angioTC cardíaca isolada. A prevalência de doença coronária neste estudo foi relativamente alta (44%), bem como a percentagem de doentes com angor típico (25%) e diabetes (39%), tendo em consideração que o perfil de doentes habitualmente avaliados por angioTC cardíaca é de risco mais baixo a intermédio, referenciados para exclusão de doença. Esta maior prevalência de doença poderá justificar a menor especificidade (61%) e respetivo VPP (67%) da angioTC cardíaca, dando uma margem superior para melhoria no protocolo integrado. Para este desempenho mais modesto da angioTC também terá contribuído a inclusão no estudo de doentes com importante calcificação coronária, sendo que 45% dos doentes tinham um score de cálcio >400 e 19% dos doentes >1000 unidades de Agatston, níveis que influenciam negativamente a acuidade diagnóstica do exame.
A opinião atualmente mais consensual é que a seleção do exame mais adequado para avaliação do doente com suspeita de doença coronária deve ter em linha de conta a probabilidade pré‐teste de doença7,8. Se nos doentes com probabilidade mais elevada faz mais sentido privilegiar os exames funcionais, sobretudo porque a resposta que o clínico pretende obter é se pode manter o doente apenas sob medicação preventiva ou se é necessário avançar para coronariografia como ponte para revascularização, já nos casos de probabilidade mais intermédia a baixa o que se pretende é excluir com segurança a presença de doença, sendo aqui o território de eleição para a angioTC cardíaca, explorando o seu elevado valor preditor negativo. Outra vantagem do uso da angioTC cardíaca nesta faixa mais baixa do espectro de probabilidade de doença reside na sua capacidade de identificar a presença de doença coronária não obstrutiva, que não é identificada pelos outros métodos não invasivos baseados na documentação de isquemia9. A identificação de uma carga aterosclerótica coronária elevada pode ter impacto prognóstico mesmo na ausência de doença obstrutiva e ser assim um potencial alvo de medidas mais agressivas de prevenção primária10,11.
Vale a pena realçar ainda mais dois pontos fortes do trabalho de Ramos et al., nomeadamente a preocupação com a avaliação dos eventos no seguimento clínico e a taxa de radiação do protocolo de angioTC cardíaca. Em relação ao primeiro ponto, a inclusão de um seguimento clínico valorizou a análise, permitindo avaliar o desempenho dos diferentes protocolos na taxa de revascularização no seguimento, contribuindo assim de certa forma para a sua validação prognóstica, que se percebe difícil de obter para eventos cardíacos major, dada a reduzida dimensão da população incluída. Em relação à dose de radiação, os autores reportam uma impressionante dose média de 5,5mSv, tendo em consideração que o estudo foi realizado com um aparelho de 64 cortes, considerado atualmente o requisito mínimo para a realização de exames de angioTC cardíaca12. Esta dose compara‐se favoravelmente com resultados publicados na literatura em aparelhos de gerações mais recentes13 e reflete a preocupação do centro na adoção de estratégias de redução da dose de radiação, tanto mais importante nesta população dada a necessidade subsequente de um segundo exame com radiação ionizante na comparação sistemática, por protocolo, com a coronariografia invasiva.
Em face de limitações óbvias na acessibilidade sequencial a estes exames, o cenário ideal seria a obtenção de informação anatómica e funcional no mesmo exame, o que a tornar‐se uma realidade nos próximos anos parece mais exequível por angioTC do que por RM, dado o desempenho ainda modesto da coronariografia por RM por limitações de resolução espacial e protocolos de aquisição morosos. No campo da avaliação funcional por angioTC várias linhas de investigação têm sido seguidas, sendo as mais importantes a perfusão por TC, nomeadamente em aparelhos de 320 cortes14 ou de dupla ampola/dupla energia15 e a avaliação do FFR por angioTC (FFR‐CT)16,17, embora ambas ainda no campo da investigação. Por fim, outra vantagem destas técnicas reside na sua capacidade de avaliação coronária, extracoronária (função ventricular esquerda, patologia do miocárdio, pericárdio...) e extracardíaca (pulmão, mediastino...) num mesmo exame, contribuindo para a sua rentabilidade diagnóstica e tornando‐as verdadeiras one‐stop shop na avaliação do doente com dor torácica.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.