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Vol. 34. Núm. 2.
Páginas 91-93 (Fevereiro 2015)
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Autoanticorpos antitroponina cardíaca em doentes após transplante renal. Um novo alvo para a terapêutica com estatinas?
Autoantibodies to cardiac troponin in patients after renal transplant: A new target for statins?
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João Morais
Centro Hospitalar de Leiria, Leiria, Portugal
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Rev Port Cardiol. 2015;34:85-910.1016/j.repc.2014.08.018
José Pedro L. Nunes, Susana Sampaio, Ana Cerqueira, Ziya Kaya, Nuno Pardal Oliveira
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A resposta imunitária em situações de agressão ao músculo cardíaco é uma matéria pouco estudada e de resultados práticos pouco relevantes. Mesmo na situação do enfarte do miocárdio, o paradigma da agressão ao miocárdio por razões não infecciosas ou inflamatórias, o impacto clínico dessa investigação é muito reduzido.

Um exemplo do que se pode esperar deste tipo de investigação, com potencial reflexo para a atividade clínica, é a recente publicação de um interessante trabalho de Savukoski et al. procurando ensaiar um novo teste laboratorial para determinação de troponina, o qual possa ser livre da interferência de eventuais autoanticorpos antitroponina que possam estar presentes em circulação1.

A presença destes autoanticorpos específicos foi investigada por este mesmo grupo, o qual demonstrou, numa série de 510 doentes com suspeita de enfarte do miocárdio, a presença de autoanticorpos em 9,2% dos casos, sem contudo se encontrar qualquer reflexo sobre o prognóstico a 12 meses2.

O aspeto prático desta observação reside no facto de que a presença destes anticorpos pode conduzir a valores falsamente negativos de troponina no soro de doentes com enfarte do miocárdio e desse modo pode contribuir para o atraso no diagnóstico.

A sua presença em indivíduos aparentemente saudáveis também foi relatada. Há alguns anos atrás Adamczyk et al.3 reportaram uma prevalência de 12,7% de autoanticorpos em indivíduos saudáveis, dadores de sangue, sem diferenças significativas no que respeita às isoformas T ou I.

Esta resposta imunitária pode ser parcialmente neutralizada, através da administração por via nasal das três subunidades de troponina (C, I e T) e essa neutralização/vacinação pode ter efeito na redução do tamanho do enfarte, quando a referida administração se processa uma hora antes do fenómeno isquemia/reperfusão4.

Um outro campo de interesse e que igualmente tem despertado algum interesse dos investigadores é a presença do mesmo tipo de autoanticorpos em doentes com miocardiopatia dilatada. A distrofia muscular de Emery‐Dreifuss é um bom exemplo.

Tratando‐se de uma doença rara, em alguns casos a doença é detetada através da presença de um quadro de miocardiopatia dilatada, casos estes em que o envolvimento do músculo cardíaco precede o envolvimento dos músculos esqueléticos. Num estudo de dez doentes, avaliados em comparação com um grupo de controlo emparelhado para algumas características, foi possível perceber que não há uma relação clara entre níveis de anticorpos e sintomatologia cardíaca, se bem que os autores admitam que a sua deteção pode representar um marcador de previsão de estádios precoces de miocardiopatia dilatada5.

A autoimunidade tem o seu lugar na patogénese de algumas entidades como sejam a miocardiopatia dilatada, as miocardites, a febre reumática e mesmo a doença aterosclerótica. Contudo, a relação causal com a miocardiopatia dilatada mantém‐se ambígua6.

Num trabalho de Shmilovich et al.7 três grupos de indivíduos foram testados, dois deles com miocardiopatia dilatada (de etiologia isquémica em 33 casos e não isquémica em 32) e um deles composto por 42 indivíduos saudáveis. A presença de autoanticorpos IgG antitroponina I foi encontrada em 18,2% dos casos de natureza isquémica e 15,6% nos casos de etiologia não isquémica, sem que se identificassem em qualquer caso de indivíduos normais. Contudo, a tentativa de ligar estes anticorpos a culturas de cardiomiócitos, bem como a sua influência sobre as correntes de cálcio, falhou completamente, deixando em aberto o problema da eventual relação causal.

Nunes et al.8 estudaram uma população de doentes com doença de Chagas, não tendo encontrado qualquer correlação com o valor da fração de ejeção. No entanto, quando agrupados os doentes de acordo com o seu nível de produção de anticorpos e divididos em alto e baixo, no grupo de doentes com níveis mais altos de anticorpos antitroponina T verificou‐se que a fração de ejeção era mais baixa (p=0,042). Na mesma pesquisa os autores analisaram também o comportamento dos anticorpos antimiosina, sendo a correlação, do ponto de vista estatístico, ainda mais forte (p=0,013). Com base neste resultado os autores, nas suas conclusões finais, exprimem a possibilidade de um dia se poderem vir a estabelecer marcadores que ajudem na deteção precoce das formas evolutivas da doença, o que naturalmente teria grande impacto clínico.

No trabalho que Nunes et al.9 publicam no presente número da Revista Portuguesa de Cardiologia, uma nova abordagem é dada a esta temática, focando os autores numa população de doentes com fase terminal de doença renal crónica e sujeitos a transplantação renal. Em 2013 este mesmo grupo relatou um caso clínico de uma doente de género feminino com miocardiopatia dilatada e fração de ejeção de 30%, a qual, após transplantação renal, evidenciou uma recuperação da função ventricular, apesar de não ter regredido o seu volume telediastólico10. Nesta doente foram ainda encontrados valores muito elevados de anticorpos antitroponina I (IgG 1:640 e IgM 1:80), o que provavelmente terá estimulado a continuidade da investigação.

No trabalho agora publicado, uma série de 48 doentes sujeitos a transplantação renal e a imunossupressão farmacológica foram estudados, tendo‐se detetado autoanticorpos antitroponina I em baixa titulação (1:40) na maioria dos doentes (em 30 casos), encontrando‐se apenas em oito deles níveis de IgG >1:80 e em apenas um caso um nível de 1:160. Olhando de forma combinada as IgG e IgM, em apenas um caso se encontraram títulos >1:80. A doença cardíaca esteve presente em nove doentes, sem qualquer associação com os níveis encontrados de anticorpos. De forma surpreendente os autores encontraram uma curiosa correlação com o uso de estatinas, sugerindo que a resposta imunitária seja atenuada nos doentes sob aquela terapêutica. Os níveis elevados de anticorpos estavam presentes em apenas três dos 26 doentes medicados com estatinas e em dez dos 22 sem aquela terapêutica (p=0,008 [χ2]).

Os efeitos não lipídicos das estatinas têm sido motivo de intensa investigação ao longo das últimas duas décadas, levando a discussões apaixonadas entre defensores e opositores. Contudo, independentemente desta controvérsia, o efeito «anti‐inflamatório» é o mais consensualmente aceite e com evidência demonstrada11.

Mais recentemente, na longa história da investigação sobre os efeitos clínicos das estatinas, encontramos o marcado impacto destas moléculas na redução do risco de nefropatia induzida pelos agentes de contraste, benefício este que chega aos 46% de redução no risco relativo, como se demonstra em meta‐análise já este ano publicada (RR 0,54, IC 95% 0,38‐0,78; p=0,001)12.

Os mecanismos para explicar estes efeitos são múltiplos, mas tudo aquilo que se pode dizer não deixa de ser especulativo. Uma vez mais o efeito anti‐inflamatório é invocado, mas outras hipóteses se podem levantar como sejam a proteção contra os efeitos citotóxicos dos agentes de contraste. Uma subanálise do estudo The Novel Approaches for Preventing or Limiting Events (NAPLES II)13 mostrou que altas doses de atorvastatina in vitro reduzem a ativação das vias de apoptose intrínseca, mecanismo presente em condições extremas de desequilíbrio metabólico ou hemodinâmico.

Os autores do presente trabalho consideram algumas dessas hipóteses na discussão dos seus resultados, mantendo sempre a discussão no nível das hipóteses. Não deixa de ser desafiante a ideia de que os doentes transplantados renais deveriam ser sujeitos a terapêutica crónica com estatinas. Contudo, se o benefício das estatinas em doentes renais crónicos, ainda não hemodialisados, é bem claro, com redução da mortalidade na ordem dos 20%14, nos doentes sob terapêutica dialítica esse benefício é controverso. Uma meta‐análise recentemente publicada, analisando estudos realizados em doentes transplantados, não é conclusiva15 devido à variabilidade de metodologias nos estudos considerados.

Contudo e até uma prova sustentada, a grave doença vascular que os doentes em estado terminal de doença renal normalmente apresentam, com risco acrescido de ocorrência de enfarte do miocárdio, são razão suficiente para que, a meu ver, se deva considerar a instituição desta terapêutica.

Se a redução dos níveis de autoanticorpos pode constituir um mecanismo protetor adicional, só mesmo um estudo adequado o pode provar. Ficamos a aguardar que os autores do presente trabalho no futuro se possam dedicar à procura destas respostas.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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