A desnervação simpática renal percutânea surgiu como uma importante esperança no tratamento da hipertensão arterial, que permanece como o predominante fator de risco cardiovascular modificável. Os primeiros ensaios relataram reduções de cerca de 30mmHg de pressão sistólica, em doentes com hipertensão arterial resistente1,2. O efeito terapêutico pareceu tão amplo e evidente que a técnica foi rapidamente adotada em muitas áreas geográficas. Mais de 50 sistemas de desnervação simpática renal foram desenvolvidos3. Registos nacionais e internacionais confirmaram a importante descida dos valores tensionais. Contudo, surpreendentemente, o estudo Symplicity HTN‐3 não demonstrou um efeito significativo4. Este foi o maior estudo aleatorizado e o primeiro com ocultação e intervenção placebo no grupo controlo. Assistimos a uma interessante troca de argumentos. Questões étnicas, técnicas e de regime farmacológico concomitante foram apontadas, mas raramente foram discutidas as questões essenciais quanto ao desenho experimental dos estudos prévios e às ameaças à sua validade.
No presente número da revista5, são apresentados os resultados de um registo composto por 31 doentes com hipertensão arterial sistémica resistente, submetidos a desnervação simpática renal percutânea. A população foi selecionada segundo critérios que estão de acordo com os mais relevantes ensaios clínicos desta área de intervenção1,2,4. Os resultados a um ano focam‐se na resposta hemodinâmica e em parâmetros de avaliação da função renal. Os autores reportam uma descida significativa da pressão arterial, na avaliação em consulta e na medição ambulatória de 24 horas. O aspeto diferenciador deste estudo é a redução significativa da relação albumina/creatinina na urina de 25,6mg/g (IQR 8,7‐382,8mg/g) para 15,9mg/g (IQR 4,4‐55,0mg/g), p=0,009 do subgrupo de doentes com redução significativa da pressão arterial, os respondedores5. Este achado é de particular importância, pois, à primeira vista, constitui um argumento a favor da efetividade da terapia em questão. Permite elaborar uma relação causal em cadeia entre a desnervação, a descida da pressão arterial e a reversão ou melhoria da lesão de órgão‐alvo. Num contexto científico de ceticismo quanto ao papel terapêutico da desnervação simpática renal, este resultado poderá surgir como um potencial sinal favorável, a partir da avaliação de um parâmetro objetivo, independente do investigador e não influenciável por efeito placebo. A albuminúria constitui um marcador independente de risco renal e cardiovascular, sugerindo um potencial benefício da desnervação simpática renal além da redução da pressão. Este achado não é inédito, existindo previamente na literatura relato da redução da albuminúria após desnervação simpática renal6. Este efeito parece estar dependente da redução da pressão arterial, pois numa série de 54 doentes com descida modesta da pressão arterial, após desnervação simpática renal, não se observou uma redução significativa na albuminúria7. Achado congruente com o reportado no subgrupo de não respondedores do artigo comentado5.
Contudo, será importante referir a principal limitação do registo apresentado. Dos 65 doentes incluídos entre julho de 2011 e abril de 20158, apenas 31 completaram o processo de avaliação. Isto apesar de terem decorrido mais de 12 meses de seguimento para todos os doentes no momento de submissão do artigo. A razão pela qual mais de metade dos doentes não completaram o protocolo de seguimento não é especificada pelos autores. Este facto pode condicionar a interpretação dos resultados. Os 31 doentes que completaram o protocolo poderão corresponder a um grupo preferencialmente cumpridor do plano de seguimento e da terapia farmacológica. A descida dos valores tensionais e a descida da albuminúria poderiam ocorrer nesta população, independentemente da intervenção percutânea. Um grupo particularmente motivado para a correção do estilo de vida, para a adesão terapêutica e com acesso adicional a um plano de consultas em clínica de hipertensão poderá só por si justificar os resultados. Ou seja, os autores descrevem um benefício que, pelas características do registo e natureza do seguimento, não pode ser interpretado exclusivamente como uma resposta biológica à desnervação renal. Este fenómeno constitui uma importante ameaça à validade interna do estudo e está descrito na literatura como mortalidade diferencial ou mortalidade experimental9 – perda de sujeitos, não necessariamente por morte literal, entre o pré e o pós‐teste. Os sujeitos que permanecem estão mais motivados e são mais cumpridores. Outras ameaças à validade interna são comuns à quase totalidade dos estudos clínicos da desnervação simpática renal10.
A investigação do efeito da desnervação simpática renal no tratamento da hipertensão arterial resistente constitui um interessante caso de estudo quanto ao desenho experimental e às ameaças de validade interna10. Grande parte dos estudos são abertos e não incluem um grupo controlo. A seleção dos doentes é fundamentalmente baseada na medição da pressão arterial, acima de um determinado limite. Devido à natural variabilidade da pressão arterial, este método tende a selecionar indivíduos que num dado momento apresentam valores superiores à sua média de longo prazo. Subsequentemente, no decurso do ensaio, os valores observados irão naturalmente aproximar‐se da média de longo prazo de cada indivíduo. Este efeito denomina‐se regressão para a média11,12. Indivíduos selecionados por características extremas tendem naturalmente a regredir para a média, independentemente da ação terapêutica. Ao longo do ensaio, surge outra ameaça à validade interna que se prende com a metodologia da medição da pressão arterial. Após a instituição de uma terapia hipotensora os profissionais de saúde tendem, na prática clínica, a interpretar como incorretas as medições que não apontam para a descida dos valores tensionais. A sua atitude mais frequente será a repetição da medição e não o registo do valor obtido12. Os valores mais baixos são interpretados como corretos e os mais elevados como resultado de efeito de bata branca ou puro erro de medição, particularmente quando à convicção de que a terapia é eficaz. Se em contexto de registo ou ensaio clínico aberto não são obrigatórios os registos de todas as medições efetuadas, poderá ocorrer uma subestimação não representativa da pressão arterial após a instituição da terapia. Este fenómeno é designado por tratamento assimétrico dos dados12 e constitui uma importante ameaça à validade interna em ensaios de hipertensão, contornada com a instituição de protocolos rigorosos de registo, utilização de esfigmomanómetros digitais que reportam todas as medições efetuadas em cada doente e/ou utilização de registo ambulatório. Outra importante ameaça prende‐se com a possibilidade de uma verdadeira descida dos valores de pressão arterial, mas não atribuível à nova terapia em estudo. Ou seja, a redução da pressão arterial deve‐se a fatores confundentes e não a um efeito biológico decorrente da terapia. Esta redução poderá resultar de uma forte convicção no efeito benéfico da nova terapia, efeito placebo13. Poderá resultar ainda de um efeito psíquico com aumento da motivação, adesão à terapêutica médica e correção do estilo de vida após inclusão num programa de tratamento inovador, com acesso a um maior número de consultas e maior e melhor vigilância. A simples consciência da observação melhora o desempenho – efeito de Hawthorne14.
Numa meta‐análise recente, Howard et al.12 quantificaram elegantemente várias das ameaças à validade interna dos estudos de desnervação renal – regressão à média, tratamento assimétrico de dados e redução da pressão por efeitos confundentes. O efeito de regressão à média foi não significativo. Contudo, dos três elementos analisados, este é o único que pode ser superado pela inclusão de um grupo de controlo aleatorizado num estudo aberto. Os restantes dois elementos resultam num efeito médio estimado em 19mmHg e só poderão ser mitigados com ocultação e realização de procedimento placebo no grupo controlo12. Como exemplo, os autores mencionam uma descida mais acentuada da pressão arterial medida em consulta relativamente à pressão arterial medida em ambulatório, apenas nos estudos abertos. Este fenómeno é também identificável em ensaios abertos que testam fármacos hipotensores15. Contrariamente, em estudos cegos esta diferença não ocorre, inclusive nos ensaios em que se verificou um efeito benéfico da terapêutica farmacológica testada15.
Concluindo, registos e ensaios clínicos abertos, rigorosos e corretamente executados não são suficientes para superar as mais importantes ameaças à validade interna de estudos que testam novas terapias para o tratamento da hipertensão arterial. A melhoria de marcadores de lesão de órgão‐alvo em doentes que apresentaram redução da pressão arterial apenas aumenta a probabilidade desta redução ser real, não resultante de regressão à média ou de tratamento assimétrico dos dados. Contudo, não garante que seja um efeito biológico da terapia inovadora e a variação observada poderá resultar de efeitos confundentes.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.