O gap de género é evidente em várias áreas profissionais e também na área da medicina e em particular na área cardiovascular. Fazemos uma breve revisão sobre o tema e analisamos os dados da Revista Portuguesa de Cardiologia relativamente a autorias do género feminino.
A gender gap is apparent in several professional areas, including in medicine and particularly in the cardiovascular field. We present a brief review of the topic and we analyze data from the Portuguese Journal of Cardiology regarding female authorship..
A medicina é ainda hoje uma área com predomínio do sexo masculino. Contudo, a proporção de mulheres em formação escolar nesta área está já próxima dos 50% nos Estados Unidos da América, com 38% de profissionais do sexo feminino a exercerem1–3. Esta tendência crescente tem sido evidente em praticamente todos os países do mundo, em particular nas últimas décadas. É ainda aparente, no entanto, grande disparidade de género em função das especialidades médicas, envolvendo sobretudo as áreas mais especializadas, como a cardiologia, onde esta proporção não atinge os 20% em alguns países2. Apesar de os dados serem escassos, a representatividade feminina na medicina académica e na prática clínica na Europa parecem ser superiores, incluindo na área cardiovascular. Em Espanha, onde a realidade é habitualmente próxima da portuguesa, 68% dos internos de cardiologia eram mulheres em 2017, um valor muito superior comparativamente com outros países4. Contudo, este aumento nas faixas etárias mais jovens não teve tradução na progressão da carreira e em cargos de direção, sendo a representatividade também mais baixa em algumas subespecialidades, com as mulheres cardiologistas a optarem tendencialmente por subespecialidades menos invasivas4. Num inquérito realizado em Espanha, 40% dos cardiologistas são mulheres, mas com apenas 19% como diretoras de departamento, 11% como diretoras de serviço e 7% como professoras catedráticas, confirmando uma clara falta de paridade, em particular para cargos de maior responsabilidade, claramente condicionado pela menor presença de mulheres nos grupos etários mais avançados4. Verifica‐se assim um gap horizontal na equidade em termos de subespecialidades e um gap vertical na hierarquia profissional.
Dados estatísticos disponíveis em Portugal mostram que em cerca de 20 anos (2000/2019) ocorreu um aumento de 194% de jovens do sexo feminino matriculadas nas faculdades de medicina e de 111% de jovens do sexo masculino, sempre com predomínio do sexo feminino, pelo menos desde 1991 (Tabela 1)5. Também em relação ao número global de médicos, o aumento foi muito mais significativo nas mulheres comparativamente com os homens (104% versus 34%), tendo‐se atingido equidade em termos de distribuição apenas em 2010 (Tabela 1). Na área da cardiologia, salienta‐se uma predominância global de homens, em todos os grupos etários, mais acentuada nos grupos etários acima dos 50 anos (Tabela 2)6. Contudo, nos últimos 20 anos, o aumento global foi também muito mais acentuado nas mulheres (122% versus 21%), verificando‐se inclusive reduções de 13 a 47% de homens nos grupos etários dos 41‐60 anos. Não existem, no entanto, dados específicos por subespecialidade ou sobre o grau de diferenciação e responsabilidade profissional.
Dados nacionais sobre disparidade de géneros nas faculdades de medicina e a exercerem medicina
Alunos matriculados em Medicina | Médicos em Portugal | |||||
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Total | Homens | Mulheres | Total | Homens | Mulheres | |
1991 | 3.362 | 1.464 | 1.898 (56%) | 28.326 | 16.941 | 11.385 (40%) |
2000 | 4.774 | 1.876 | 2.898 (61%) | 32.498 | 17.914 | 14.584 (45%) |
2010 | 10.531 | 3.707 | 6.824 (65%) | 41.431 | 20.652 | 20.779 (50%) |
2019 ou 2018 | 12.498 | 3.965 | 8.533 (68%) | 53.657 | 23.975 | 29.682 (55%) |
Fonte: PORDATA
Número de cardiologistas em Portugal
< 40 anos | 41‐50 anos | 51‐60 anos | > 61 anos | Total | |
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H/M | H/M | H/M | H/M | H/M | |
1996 | 101 / 52 (34%) | 154 / 34 (18%) | 146 / 16 (10%) | 134 / 5 (4%) | 535 / 107 (17%) |
2000 | 81 / 61 (43%) | 165 / 46 (22%) | 148 / 21 (12%) | 166 / 10 (6%) | 560 / 138 (20%) |
2010 | 58 / 47 (45%) | 117 / 77 (40%) | 169 / 48 (22%) | 276 / 30 (10%) | 620 / 202 (24%) |
2019 | 92 / 88 (49%) | 87 / 66 (43%) | 128 / 84 (40%) | 373 / 69 (16%) | 680 / 307 (31%) |
Fonte: Ordem dos Médicos
H: Homens; M: Mulheres
O gap de género enquadra‐se no fenómeno designado por Glass Ceiling Effect, que se define como a presença de uma barreira invisível que impede as mulheres e as minorias de ascenderem aos postos hierárquicos mais elevados de uma empresa. Esta designação metafórica tornou‐se mais popular nas últimas décadas como resultado da observação de que apesar do aumento da presença de mulheres em praticamente todas as áreas tradicionalmente ocupadas primariamente por homens, a sua presença continua muito escassa em posições de liderança, em particular na área empresarial. Este termo foi utilizado pela primeira vez por Marilyn Loden em 1977, num discurso para o Women's Action Alliance. Este fenómeno é suportado por estereótipos conscientes ou inconscientes de incompatibilidade entre vida pessoal/familiar e profissional, falta de políticas organizacionais de apoio ao balanço entre o esforço profissional e pessoal, falta de mentores ou role models para as mulheres com interesse em progressão na carreira e uma escassez de conexões que facilitem esse acesso a mulheres. Com efeito, podem‐se apontar fatores socioeconómicos, culturais, religiosos, ambientais, entre outros, que condicionaram durante décadas, o acesso das mulheres a muitas áreas profissionais e a cargos de responsabilidade, mas esta situação tem sido progressivamente alterada nos últimos anos nos países desenvolvidos. Muitas sociedades científicas têm criado grupos de trabalho com o principal objetivo de promover a equidade de género, incluindo na área da cardiologia, tais como o Women in ESC e o Women in Cardiology (ACC), e algumas delas com objetivos mais alargados de promoção do conhecimento das doenças cardiovasculares nas mulheres (Go Red for Women da WHF).
Esta reduzida representatividade profissional e académica tem uma clara tradução nas autorias de artigos científicos, em particular como primeiro autor, representando o envolvimento ativo em investigação científica. Também o último autor, ou autor sénior, é significativo, pois está associado a atividade de mentor ou posição de liderança na unidade onde foi realizada a investigação. Uma baixa representatividade nas autorias de publicações tem um impacto significativo que poderá em parte explicar a disparidade em termos de liderança. Com efeito, uma das métricas de progressão profissional ou académica é a produção de investigação e esta pode ser analisada em função da publicação em jornais com revisão por pares e o fator de impacto desses mesmos jornais. Por outro lado, a posição sénior reflete a capacidade de organização e liderança de projetos de investigação.
Para analisar a situação da equidade de género na investigação em Portugal, na área da cardiologia, foi realizada uma análise das autorias na Revista Portuguesa de Cardiologia em 2013 e 2018. Incluíram‐se todos os artigos originais, editoriais e artigos de revisão publicados nesses anos. Foram excluídos artigos cuja origem ou autorias não fossem de Portugal. Estes resultados foram comparados com os dados publicados recentemente por Asghar et al. com análise em seis revistas com elevado fator de impacto na área clínica cardiovascular (Journal of American College of Cardiology, Circulation, American Journal of Cardiology, European Heart Journal, BMJ Heart e Clinical Cardiology) 1. Este estudo analisou dados dos últimos 20 anos e encontrou apenas 16,5% e 9,1% de mulheres como primeira autora e autora sénior, respetivamente. Em 2016, último ano analisado, encontraram 21% como primeiras autoras e 12% como sénior, valores estes substancialmente inferiores quando comparados com jornais de elevado fator de impacto em outras áreas da medicina. Durante o período de análise, confirmou‐se a tendência crescente nas autorias femininas, com incremento de 9,5% e 6,6%. Esta tendência registou‐se para todas as revistas, com exceção do European Heart Journal, onde houve uma redução de mulheres na posição sénior. Este aumento não foi também significativo relativamente a artigos multinacionais e nos artigos de revisão. Outro achado interessante foi a constatação de que a mediana de citações foi superior para artigos com autoria de mulheres, indicando um maior impacto desses artigos. Nessa análise, a proporção de mulheres nos corpos editoriais das revistas e o fator de impacto das revistas não tiveram qualquer influência na proporção de mulheres autoras, mas uma mulher autora sénior associou‐se positivamente com primeira autora do sexo feminino. Outros autores encontraram dados semelhantes e encontraram outro facto relevante7. Numa análise do top 100 dos autores mais prolíficos nessas publicações, apenas 5% eram mulheres e o número de publicações dos autores femininos é também inferior em análise comparativa (4 versus 2,3 publicações por autor)7.
Em jornais dedicados a investigação básica ou pré‐clínica cardiovascular, encontram‐se 41% de primeiras autorias e 21% para autorias seniores femininas, mas com um incremento menos claro ao longo dos anos8. O efeito de acompanhamento/mentoria preferencial para o mesmo sexo, juntamente com a menor proporção de mulheres mentoras, contribui para a persistência da baixa representatividade feminina. Contudo, o envolvimento de mulheres em investigação básica associa‐se positivamente ao reconhecimento do sexo como variável biológica, permitindo assim avanços no conhecimento e promoção na saúde das mulheres. O sexo não demonstrou também qualquer associação com o rigor experimental ou com o impacto da investigação.
Na análise dos dados da Revista Portuguesa de Cardiologia, verificou‐se uma redução global de primeiras autorias e autorias sénior femininas de 2013 para 2018, em particular no respeitante à posição sénior (Tabela 3). Contudo, esta redução tem como explicação o maior número de editoriais nos números de 2018, onde o peso feminino é baixo, com consequências importantes na percentagem global. Analisando especificamente o tipo de artigo, constata‐se que para os artigos originais, temos globalmente cerca de 50% de autorias por mulheres, sem variação valorizável entre os dois anos, com aumento substancial nos artigos de revisão. Por outro lado, a autoria sénior feminina diminuiu muito, quer em termos globais, quer nos artigos originais, o que poderá refletir uma redução de mulheres em cargos de liderança nacionais. Estes dados estão em linha com as proporções reportadas de mulheres na área da cardiologia em Portugal nos grupos etários mais jovens, correspondendo na sua maioria a internos da especialidade ou jovens cardiologistas, que são a maioria dos primeiros autores de artigos originais publicados na revista, bem como com as proporções nos grupos etários mais avançados, para a qualidade de autor sénior. Quando comparado com o global das revistas internacionais conforme analisado por Asghar, temos valores muito mais expressivos na Revista Portuguesa de Cardiologia de mulheres em artigos originais e de revisão, sobretudo no respeitante à primeira autoria1. Estes resultados mostram claramente uma maior representatividade feminina na cardiologia portuguesa. Mesmo comparativamente com as revistas com base europeia, a melhor representatividade em Portugal é notória. Assim, para o European Heart Journal, em 2016 estão reportadas percentagens de 20,3% e 6,6% para autorias principais e sénior e para o BMJ Heart de 27,8% e 19,6% respetivamente. Estes dados permitem também especular que poderá haver uma maior dificuldade de aceitação de trabalhos de autores do sexo feminino em revistas de elevado fator de impacto.
Percentagem de primeiras autorias e autoria sénior na Revista Portuguesa Cardiologia em 2013 (n = 62 publicações) e 2018 (n = 114 publicações) e comparativamente com estudo de Asghar1, em revistas da área da cardiologia internacionais com elevado fator de impacto
(1ª autoria/sénior)(%) | 2013 | 2018 | 2016(revistas internacionais) |
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Total | 45,2 / 19,3 | 38,6 / 7,9 | 20,8 / 12,3 |
Artigos originais | 51,2 / 21,9 | 50,0 / 12,0 | 23,1 / 14,9 |
Editoriais | 18,2 / 0 | 20,4 / 0 | 18,7 / 9,7 |
Artigos Revisão | 50,0 / 30,0 | 80,0 / 30,0 | 16,6 / 11,6 |
De uma forma geral, as mulheres são também sub‐representadas como editoras e revisoras. Globalmente, as mulheres são avaliadas de forma menos favorável como investigadoras principais, sem que existam diferenças na qualidade das propostas de investigação9,10. Existe também um fenómeno de homofilia, com maior afinidade entre pessoas do mesmo sexo, nos processos de peer‐review11. Com efeito, quer os editores, quer os revisores, mostram uma maior preferência pelos trabalhos do mesmo sexo. A baixa proporção de mulheres nestes cargos dificulta ainda mais a posição da mulher. Por isso, é fortemente sugerido como medida global para ultrapassar este gap de género o recurso à revisão cega e à abordagem editorial automática. Na Revista Portuguesa, tal efeito não é evidente, uma vez que relativamente aos editores principais ou associados são todos do sexo masculino, quer em 2013, quer em 2018. Sobre os revisores, as proporções são de 36% em 2013 e 35% em 2018.
Em conclusão, em nível internacional, a diferença de género está presente também na área da medicina, incluindo a cardiologia. Contudo, esse efeito é menos significativo em Portugal, com cerca de 50% das primeiras autorias dos artigos originais publicados na Revista Portuguesa de Cardiologia por mulheres. Contudo, relativamente à posição sénior, temos dados muito mais desfavoráveis comparativamente com as outras revistas, traduzindo o conhecido efeito de Glass Ceiling, com números reduzidos de mulheres em cargos de topo na medicina cardiovascular em Portugal. A solução passará por uma mudança de política organizacional, mas também de uma modificação da perceção do papel da mulher na área da medicina.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflito de interesses.