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Vol. 32. Núm. 9.
Páginas 681-686 (setembro 2013)
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Vol. 32. Núm. 9.
Páginas 681-686 (setembro 2013)
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A prescrição fora das indicações aprovadas (off-label): prática e problemas
Off-label prescription: Practice and problems
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António Vaz Carneiro
Autor para correspondência
avc@fm.ul.pt

Autor para correspondência.
, João Costa
Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal
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Tabela 1. Medicamentos frequentemente prescritos em off-label20
Resumo

O processo de aprovação de medicamentos para uso clínico implica a produção de provas de eficácia e segurança através da submissão de resultados de ensaios clínicos, em que a nova molécula é comparada habitualmente ao placebo (ou a um comparador ativo) para um conjunto de resultados nos quais se baseará a determinação das indicações. As indicações são absolutamente cruciais, porque os fármacos são aprovados segundo o perfil de benefício/risco que apresentam para tratamento de patologias específicas, bem definidas e - um aspeto muito importante - apenas para estas. Uma vez estando o medicamento disponível para ser utilizado em dezenas ou centenas de milhares de doentes, acontece por vezes que, no decurso do seu uso regular e rotineiro, chega ao conhecimento dos médicos que certas moléculas podem ser eficazes em situações para as quais não foram aprovadas, isto é, em que não foram apresentados estudos de suporte às autoridades regulamentares e que portanto não estão legalmente aprovadas para essas indicações. Convictos dos benefícios para os seus doentes, alguns médicos vão receitar medicamentos para indicações não aprovadas - a chamada prescrição off-label.

Neste artigo discute-se a prevalência da prescrição off-label, assim como as suas vantagens e inconvenientes.

Palavras-chave:
Prescrição off-label
Eficácia e segurança de medicamentos
Indicações medicamentosas
Processos regulamentares de aprovação de medicamentos
Abstract

Approval of a drug for clinical use requires production of data on efficacy and safety through submission of results from randomized controlled trials (RCTs), in which the new molecule is usually compared with placebo (or an active comparator) for a set of outcomes that will serve as the basis for the drug's indications. These indications are crucial, because drugs are approved on the basis of their net clinical benefit for specific and well-defined diseases and – importantly – only for these. Once the drug is available for use in tens or hundreds of thousands of patients, physicians may realize that some medications can be effective in diseases for which they were not approved, i.e., no studies have been presented to the regulatory authorities, and therefore they are not formally approved for those indications. Convinced of the benefits for their patients, some physicians prescribe them for unapproved indications – off-label prescription.

In this paper we discuss the prevalence of off-label prescription, and its advantages and problems.

Keywords:
Off-label prescription
Drug efficacy and safety
Drug indications
Drug regulatory approval processes
Texto Completo
Introdução

A utilização de um medicamento na prática clínica é possível após um processo complexo de investigação e desenvolvimento, durando em média 12-15 anos.

A autorização de introdução no mercado (AIM) constitui o penúltimo passo e é concedida de forma centralizada pela Agência Europeia do Medicamento, para todos os estados-membros na Europa. Nesta fase é necessária a produção de prova de eficácia e segurança, através da submissão de resultados de ensaios clínicos ditos de registo (Randomized Clinical Trials - RCT - fases três), em que a nova molécula é comparada habitualmente ao placebo (ou a um comparador ativo).

O último passo é, na maior parte das vezes, o da comparticipação do medicamento pelas autoridades nacionais, quer no caso de medicamentos de ambulatório quer nos de uso hospitalar. Este passo é efetivamente aquele que, com raras exceções, garante a acessibilidade ao medicamento por parte dos doentes.

Esta decisão é tomada após avaliação positiva pelas autoridades nacionais (Infarmed no caso português) do valor terapêutico acrescentado do novo medicamento e/ou da sua vantagem económica (através de estudos de avaliação económica), comparativamente à alternativa terapêutica de referência utilizada nas indicações clínicas para a doença em causa. Apenas no caso deste novo medicamento constituir uma inovação terapêutica - preenchendo uma lacuna terapêutica numa comparação feita contra placebo, ausência de tratamento ou melhor tratamento de suporte – é que pode ser comparticipado. Uma substância, só porque é nova, pode não constituir necessariamente uma inovação terapêutica1.

Central a todo este processo de decisão está a definição das indicações do medicamento em causa. As indicações são absolutamente cruciais porque os fármacos são aprovados (ou não) segundo o perfil de benefício/risco que apresentam para tratamento de patologias específicas, bem definidas e - um aspeto muito importante - apenas para estas.

Uma vez que o medicamento tenha AIM, a empresa farmacêutica só pode promovê-lo para a(s) indicação aprovada(s), sendo estritamente ilegal sugerir ou promover direta ou indiretamente a sua utilização para outras doenças ou em outros tipos de doentes (embora por vezes isto aconteça2). Apesar das empresas farmacêuticas poderem sempre adicionar novas indicações às já aprovadas, raramente o fazem porque os ensaios clínicos necessários para tal são muito longos e dispendiosos e o estímulo para os realizar é pequeno (afinal o medicamento já se encontra disponível no mercado...). Mais frequentemente surgem extensões das indicações aprovadas (p. ex. a outros grupos etários ou a outros subtipos de doentes com a patologia). Mesmo a indústria de genéricos não se tem perfilado para realizar os RCT necessários a novas aprovações, pela mesma razão financeira.

Uma vez estando o medicamento disponível para ser utilizado em dezenas ou centenas de milhares de doentes, acontece por vezes que, no decurso do seu uso regular e rotineiro chega ao conhecimento dos médicos que certas moléculas podem ser eficazes em situações para as quais não foram aprovadas, isto é, em que não foram apresentados estudos de suporte às autoridades reguladoras, e que portanto não estão legalmente aprovadas para essas indicações. Convictos dos benefícios para os seus doentes, alguns médicos vão receitar medicamentos para indicações não aprovadas - a chamada prescrição off-label.

A prescrição off-label define-se portanto como a prescrição para uma indicação/doença/doente fora das indicações aprovadas ou efetuada em populações não estudadas (p. ex. pediátricas) ou, ainda, utilizando vias de administração e dosagem não aprovadas3. Este tipo de prescrição é admitida baseada no conceito de que as agências oficiais não regulam a prática da medicina e os médicos têm liberdade de decisão em relação ao que acham melhor para os seus doentes.

Na prática, existem dois tipos de prescrição off-label:

  • primeiro envolve a utilização de um fármaco com indicação para uma patologia específica numa outra patologia completamente diferente. Um exemplo é a utilização de um antiepilético no tratamento da dor neuropática;

  • segundo é a utilização do medicamento na indicação, mas fora das especificações aprovadas (p. ex. o caso do sildenafil, aprovado para a disfunção erétil mas utilizado por pacientes sem este problema para aumento da performance sexual).

O espectro de prescrição off-label inclui desde recomendações por normas de orientação clínica (aspirina como profilático da doença coronária em diabéticos), a terapêuticas de última linha (tacrolimus em doenças autoimunes, como adjuvante da transplantação) ou mesmo de 1.a linha (gabapentina para a neuropatia diabética).

Existem padrões de prescrição off-label que levantam particulares preocupações e que, portanto, devem ser escrutinadas com particular cuidado4:

  • em primeiro lugar, o uso de medicamentos recentemente introduzidos no mercado. Isto constitui um problema especial porque não só a potencial evidência de benefício é virtualmente inexistente como dados de segurança (farmacovigilância) serão também escassos, complicando claramente a sua utilização;

  • um segundo exemplo é o uso off-label totalmente novo, isto é, diferente do que habitualmente se verifica na prática clínica. Esta prática tem problemas idênticos em relação aos dados de efetividade e, claro, de segurança (habitualmente só ao fim de 3-5 anos de utilização é que se tem um perfil de benefício/risco aceitável dum novo fármaco);

  • um terceiro padrão problemático de prescrição off-label é o que se acompanha de uma taxa de efeitos acessórios graves ou muito frequentes (isto deve fazer refletir sobre o padrão de segurança nos doentes em que a molécula está a ser utilizada);

  • finalmente, a prescrição dos medicamentos mais dispendiosos em off-label levanta por si só questões próprias, já que a penalização financeira obriga a uma reflexão prática particular.

Neste artigo iremos discutir alguns aspetos formais e práticos da prescrição off-label de medicamentos, desde a sua frequência, às suas vantagens e desvantagens, apontando ainda a natureza da evidência científica de suporte para esta prática.

A prescrição off-label é frequente?

Enquanto os medicamentos prescritos off-label forem seguros, bem tolerados e pouco dispendiosos não existem habitualmente problemas de maior. Como já foi dito, estes colocam-se com os medicamentos muito dispendiosos para patologias específicas, em que o caso mais claro é tratamento do cancro com os novos medicamentos biológicos: em certos estudos, a administração off-label destes fármacos atinge os 75%5.

De qualquer maneira, quando se analisa a prescrição ambulatória ou hospitalar, verifica-se que quase todas as classes farmacológicas estão sujeitas ao off-label, com especial incidência nalgumas moléculas (Tabela 1).

Tabela 1.

Medicamentos frequentemente prescritos em off-label20

Classe farmacológica  Exemplos de utilização «off-label» 
Antiepiléticos  Enxaqueca, depressão, dor neuropática 
Antipsicóticos  D. Alzheimer, autismo, demência, ADHD20 
Antidepressivos  Dor crónica, ADHD20, doença bipolar 
Anti-histamínicos  Constipações, asma, otites, indução do sono 
Antibióticos  Infeções virais (constipações, gripe) 
Ansiolíticos  «Calmantes», indução do sono 
Inibidores da bomba de protões  Dispepsia ocasional, indigestão, síndrome cólon irritável 
Betabloqueantes  Enxaqueca, arritmias variadas, ansiedade 
Medicamentos para a ADHDa  Aumento da concentração e performance em pacientes sem AHDH20 
Medicamentos hipnóticos  Insónia ocasional, relacionada com a depressão ou ansiedade 
Analgésicos narcóticos  Dor leve, ocasional 
   
Fármaco específico  Exemplos de utilização «off-label» 
Aripiprazol (antipsicótico)  D. Alzheimer, demência 
Albuterol (anti-asmático)  Tosse crónica 
Lamictal (antiepiléptico)  Depressão, d. bipolar, estabilização do humor 
Tiagabina (antiepiléptico)  Depressão, estabilização do humor 
Gabapentina (antiepiléptico)  Depressão, dor neuropática, enxaqueca 
Topiramato (antiepiléptico)  Enxaqueca, depressão, dor neuropática, enxaqueca 
Risperidona (antipsicótico)  D. Alzheimer, demência, doenças do comportamento alimentar 
Lidoderm (penso cutâneo para o herpes zóster)  Lombalgia, dor muscular, cotovelo do tenista 
Trazodona (antidepressivo)  Insónia 
Propranolol (anti-hipertensivo e anti-arrítimico)  Ansiedade 
Modafinil (sonolência excessiva)  Aumento da atenção 
Sildenafil, vardenafil, tadalafil (disfunção eréctil)  Aumento da performance sexual em indivíduos sem disfunção eréctil 
Bevacizumab  Degenerescência macular da idade 

a Síndrome de hiperactividade e défice de atenção.

Em cardiologia, uma situação típica é a da utilização dos novos anticoagulantes - dabigratano, rivaroxabano, apixabano - em situações em que está indicada a varfine como fármaco de 1.a linha. Uma análise recente demonstra este uso off-label de medicamentos cardiológicos, nos quais se incluem os inibidores da trombina e do fator XA6. Também a utilização de aspirina como medida profilática em cardiologia para diabéticos e de betabloqueantes para o tremor essencial, são exemplos de outras situações frequentes de prescrição off-label.

É claro que existem fármacos com evidência científica de boa qualidade para determinadas patologias (p. ex. o caso anterior dos betabloqueantes para o tremor essencial7) que, no entanto, não possuem indicação formal aprovada para essas doenças (é importante lembrar aqui que apenas o detentor de AIM é que tem a possibilidade legal de alterar ou adicionar novas indicações ao seu medicamento, as autoridades não o podem fazer).

Um dos casos mais mediáticos da existência de evidência para uma indicação não aprovada é o da utilização do bevacizumab (Avastin®) na degenerescência macular da idade, quando o único medicamento com indicação formal para esta patologia é o ranibizumab (Lucentis®). Existe mesmo um ensaio clínico de não inferioridade - entre outros - comparando os dois (o ensaio CATT), em que os autores concluem que ranibizumab e bevacizumab têm efeitos equivalentes na acuidade visual ao fim de um ano8, chamando também a atenção de que as diferenças encontradas na incidência de efeitos adversos graves devem ser melhor definidas.

Outro exemplo de uso off-label é a utilização de fator recombinante VIIa9. Inicialmente aprovado apenas para o tratamento da hemofilia (especialmente os doentes que desenvolvem inibidores de fator VII), está a ser utilizado como pró-coagulante em cirurgia cardíaca, trauma e hemorragia intracraniana, de modo que em apenas 3% dos casos a prescrição foi para a indicações aprovadas10!

A frequência de prescrição off-label não tem sido estudada com o detalhe que o problema merece. Na literatura mundial adiantam-se vários números, entre os quais que são em off-label 201150% das prescrições nos EUA (Pharmaceutical Executive 2012), 60% em certos hospitais australianos (Discussion Paper Working Group of NSW TAG, 2003), 30% em ambulatório no Reino Unido (NICE 2012) e 23% na Europa12. O estudo globalmente mais citado13 foi realizado numa base de dados americana de prescrição ambulatória e determinou uma taxa de off-label global de 21%, mas sendo na terapêutica cardiológica de 46% (excluindo antidislipidémicos e anti-hipertensivos), o mesmo valor encontrado na terapêutica anticonvulsiva. Neste estudo, os dois medicamentos com taxas mais elevadas de off-label foram a gabapentina (83%) e a amitriptilina (81%). A grande maioria das situações (73%) não tinha qualquer base científica que justificasse a utilização dos medicamentos em causa fora das indicações aprovadas.

Em resumo, a prescrição off-label é muito frequente e as classes medicamentosas mais envolvidas são, em geral, também das mais complexas.

Quais são as vantagens da prescrição off-label?

A utilização de medicamentos off-label pode ter origem em diversos contextos justificativos6:

  • 1.

    conceito de efeito de classe, isto é, medicamentos da mesma classe farmacológica terem potencialmente efeitos semelhantes para a mesma patologia (p. ex. utilizar uma estatina, que apenas foi estudada em prevenção secundária, em prevenção primária);

  • 2.

    extensão para quadros clínicos menos graves de terapêuticas estudadas em situações mais graves: p. ex. o uso de espironolactona em doentes com insuficiência cardíaca classe I e II NYHA, quando foi estudada em doentes classes III e IV14,15,

  • 3.

    alargamento para patologias clinicamente relacionadas (p. ex. o uso do antiasmático montelukast na DPOC);

  • 4.

    utilização em patologias com base fisiopatológicas análogas (p. ex. uso do antidiabético metformina na síndrome do ovário poliquístico);

  • 5.

    tratamento de sintomas semelhantes aos das indicações aprovadas, em que se acredita que a terapêutica off-label seja igualmente eficaz (gabapentina em síndromes álgicas não neuropáticas).

Para além destas justificações de utilização, existem presentemente vários argumentos para a utilização de medicamentos off-label6,11: um deles é a descoberta prática de novas indicações, particularmente no caso em que os tratamentos aprovados falharam. Outro é a potencial dispensa do longo e dispendioso processo de aprovação de medicamentos pelas agências oficiais, permitindo uma utilização mais precoce destes fármacos, com adoção de práticas novas baseadas em evidência recente (isto permitiria que os médicos gerassem evidência prévia à aprovação oficial). Uma terceira é o facto de não existir um tratamento eficaz aprovado para muitas doenças menos frequentes, pelo que a experiência com um novo fármaco poder justificar-se neste contexto.

De resto, existem algumas circunstâncias em que não há outra hipótese que não seja a prescrição de medicamentos em off-label. Uma delas é o caso - paradigmático - da pediatria. Nas situações pediátricas, porque existe um número muito reduzido de ensaios clínicos em crianças, a maioria dos medicamentos é utilizado neste grupo etário sem indicações aprovadas. Também em certas doenças raras, por vezes sem tratamentos aprovados por impossibilidade de realização de ensaios clínicos eficazes, a única hipótese de tratamento é mesmo a utilização de medicamentos aprovados para outras condições. Mas também em situações prevalentes a prescrição off-label faz parte da parte clínica: por exemplo, a utilização de betabloqueantes para a insuficiência cardíaca congestiva iniciou-se antes de existirem ensaios clínicos de suporte a essa indicação.

Quais são os problemas da prescrição off-label?

Dado o complexo e cuidadoso processo de aprovação e introdução no mercado de novos medicamentos - que se destina acima de tudo a garantir a eficácia, mas também a segurança dos fármacos - qualquer utilização fora das indicações para as quais aqueles foram estudados levanta naturalmente questões específicas de grande relevância.

Para o clínico individual, a responsabilidade do uso de uma medicação fora das indicações aprovadas faz com que a sua responsabilidade civil/criminal seja mais marcada do que no uso dentro das indicações. Existem até recomendações sugerindo a obrigatoriedade de, em certos casos, o clínico providenciar informação aos doentes dos riscos deste tipo de prescrição, com necessidade de anuência formal por parte deles (tipo consentimento informado)11. Em tempos de maiores constrangimentos económicos esta questão pode ainda assumir um outro tipo de contornos, na medida em que as autoridades - sejam elas locais (hospital, USF), regionais (ARS) ou nacionais (Infarmed, DGS, etc.) - estão mais pressionadas a auditar e monitorizar a prescrição medicamentosa e a tomar medidas (individuais e coletivas) que visem a sua racionalização.

Por outro lado, e ao contrário dos clínicos, a responsabilidade legal da indústria farmacêutica perante o uso off-label de um seu medicamento está diminuída, já que ela só pode ser responsabilizada por algum problema que possa advir da utilização do seu produto estritamente dentro das indicações aprovadas. De resto, a prescrição off-label pode, de uma determinada maneira, diminuir a disponibilidade da indústria farmacêutica (IF) em promover ensaios clínicos para novas indicações (ou alterações das já existentes) - diminuindo deste modo as perspetivas do público no rigor do processo de avaliação de medicamentos - promover o uso cada vez mais generalizado em populações específicas não estudadas (crianças, idosos, etc.) e, no caso de medicamentos dispendiosos, aumentar naturalmente as despesas em saúde.

Um dos problemas mais importantes do uso off-label de medicamentos é impedir uma farmacovigilância eficaz (por baixo nível de reporting) e, deste modo, ocultar problemas de segurança dos medicamentos. É fundamental recordar que medicamentos com bons perfis de segurança numa utilização específica (na indicação e nos doentes estudados) podem perdê-lo completamente em utilização não aprovadas, em doentes não previamente estudados.

Um exemplo disto mesmo é o já referido estudo CATT, que comparou o ranibizumab com o bevacizumab para a terapêutica da degenerescência macular senil. Verificaram-se algumas diferenças no perfil de efeitos adversos (essencialmente graves) entre o bevacizumab (o medicamento não aprovado) e o ranibizumab (medicamento aprovado)8,16. Apesar das diferenças encontradas não permitirem conclusões sólidas, os autores concluíram que a segurança das intervenções (nomeadamente do bevacizumab) deveria ser melhor caracterizada. Isto conseguiu-se com a publicação recente de uma revisão sistemática que incluiu vários ensaios e que avaliou a segurança do uso off-label de bevacizumab versus ranibizumab nas mesmas indicações17. Nesta revisão, os resultados das comparações diretas (três RCT - um deles o ensaio CATT - e um total de 1333 doentes) mostram que o bevacizumab tem uma taxa de efeitos adversos oculares significativamente superior (RR=2,8; IC 95% 1,2-6,5), assim como infeções graves e problemas gastrointestinais (RR=1,3; IC 95% 1,0-1,7). Em comparações indiretas contra controlos variados (5 RCT, 4054 doentes) e baseados em resultados aos dois anos de três RCT de maior importância, foi determinado um aumento do risco de efeitos adversos com o uso de bevacizumab (RR=3,1; IC 95% 1,1-8,9), ainda que o risco absoluto de base destes doentes fosse de modesta dimensão (2,1%). Por outro lado, o ranibizumab apresentou uma taxa superior de hemorragia não-ocular (RR= 1,7; IC 95% 1,1-2,7), não tendo sido detetada diferença na incidência de eventos arteriais tromboembólicos.

Para além de permitir caracterizar melhor o perfil de segurança da utilização off-label de bevacizumab, esta revisão sistemática, ao incluir vários estudos, aumentou o poder de encontrar diferenças entre as duas intervenções, ultrapassando, parcialmente, as limitações individuais dos ensaios clínicos quanto à identificação de problemas de segurança. As consequências neste caso em concreto foram a alteração do RCM do bevacizumab (que inclui agora, no capítulo das «Advertências e precauções especiais de utilização», o risco de afeções oculares com a utilização não aprovada de bevacizumab) (http://www.ema.europa.eu/docs/pt_PT/document_library/EPAR_-_Product_Information/human/000582/WC500029271.pdf, acedido em 31 outubro 2012).

Para além deste potencial problema de segurança da utilização off-label do bevacizumab, os resultados do estudo CATT são mais um dos paradigmáticos exemplos de como os ensaios clínicos têm limitações na sua capacidade de caracterizar a segurança e tolerabilidade das intervenções farmacológicas, nomeadamente nos casos de efeitos adversos pouco frequentes (mesmo que muito graves) e/ou que ocorram tardiamente, uma vez que o número de doentes avaliados nos ensaios clínicos e a sua duração são limitados. Um dos exemplos mais mediáticos nos últimos anos foi o risco cardiovascular dos inibidores da ciclooxigenase18. Atualmente, a maior parte dos ensaios clínicos de registo têm extensões em aberto em que os doentes são tratados com o novo medicamento durante um determinado período de tempo (habitualmente até o novo medicamento estar licenciado). O principal objetivo destas extensões é caracterizar a segurança e tolerabilidade.

Que base de evidência científica para prescrição off-label?

Como já foi dito, a evidência científica produzida pela investigação original destina-se essencialmente à aprovação de novos medicamentos para sua introdução ulterior no mercado.

Mas pode existir evidência científica que sirva potencialmente de base ao seu uso fora das indicações aprovadas. Por outras palavras, a questão que se coloca é a de saber se, caso exista evidência de boa qualidade que suporte uma prescrição off-label, poderá o clínico justificar esta prática?

Na nossa opinião, a utilização rotineira de medicamentos off-label pode ser justificada se existir evidência de alta qualidade que suporte a sua efetividade (mundo real), a sua segurança e que sugira num contexto determinado um rácio global aceitável de benefício-risco (p. ex. dados de utilização de longo termo em doenças crónicas)3.

Uma das classificações possíveis da evidência de suporte para uma eventual prescrição off-label poderia estratificá-la em evidência suportada (certeza de benefício moderada a elevada), evidência suposta (baixo nível de certeza de benefício) e evidência investigacional (nível de benefício desconhecido)4.

Um dos problemas mais delicados sobre a evidência científica que possa servir de base à prescrição off-label é que esta pode ser apresentada de diversas maneiras, algumas muito pouco rigorosas. Num recente estudo sobre um conjunto de compêndios de tratamento em oncologia19, verificou-se que as recomendações off-label para tratamento para diversos cancros baseavam-se em evidência de fraca qualidade, escassamente citada, de data de publicação menos recente e analisadas de maneira absolutamente aleatória. Das 14 recomendações estudadas para off-label, não se detetou qualquer sobreposição de agentes e de patologias, com ausência de consistência de recomendações para terapêuticas específicas.

Em resumo, a utilização off-label de um medicamento poderá justificar-se se existir evidência de boa qualidade que suporte este uso, tendo em atenção que os resultados esperados podem ser bem diferentes dos que se obtêm com o uso nas indicações aprovadas.

Conclusões

A utilização off-label de medicamentos constitui uma realidade incontornável nos sistemas de saúde modernos.

Neste artigo procurámos definir a necessidade de obtenção de evidência científica de suporte para utilização de medicamentos fora das indicações aprovadas e, portanto, promover uma prescrição racional e baseada na evidência. Esta utilização deve revestir sempre um carácter excecional para reduzir a utilização inapropriada e garantir a segurança dos doentes.

O clínico prescritor deverá estar particularmente atento aos efeitos secundários dos medicamentos prescritos em off-label e deverá, tanto quanto possível, obter a evidência de suporte para esta prática.

Reconhecendo que existem áreas onde o off-label é inevitável - p. ex. pediatria e oncologia - defendemos que esta prática deverá ser sempre uma exceção e, quando assumida, deverá ter evidência de suporte de boa qualidade que o clínico prescritor tem a obrigação de saber explicar.

Responsabilidades éticasProteção dos seres humanos e animais

Os autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com os da Associação Médica Mundial e da Declaração de Helsinki.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.

Direito à privacidade e consentimento escrito

Os autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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