A hipertensão arterial sistémica – que na linguagem corrente designamos simplesmente por hipertensão – é considerada o principal (e o mais comum) fator de risco de morte e incapacidade nas doenças não transmissíveis.1,2 A sua prevalência na Europa varia entre 30 e 45%.3 Nos Estados Unidos, dois terços dos adultos com mais de 60 anos são hipertensos.4 No sul da Ásia e na África subsaariana, a hipertensão tem crescido rapidamente.5 Recentemente, a prevalência mundial da hipertensão foi estimada em 31%.6
Nas últimas três décadas têm surgido muitos fármacos eficazes e seguros para o tratamento dos hipertensos. No entanto, apesar de se saber que a redução da pressão arterial em apenas 10mmHg nesses doentes pode, ao longo da vida, reduzir o risco de morte cardiovascular e acidente vascular cerebral entre 25 e 40%,7 subsiste a controvérsia sobre qual o valor limiar ou valor alvo a conseguir nos adultos hipertensos em geral e nos idosos em particular. Além disso, muitos doentes, apesar de tratados, permanecem mal controlados, não se atingindo os valores alvos das Recomendações das ESC/ESH3 ou os sugeridos como resultado do estudo Sprint.8
Estão publicadas muitas Guidelines/Recomendações para o diagnóstico e tratamento da hipertensão, quer por sociedades científicas quer por outros organismos públicos, internacionais e nacionais, mas nem nessas há um consenso absoluto. Entre os valores para a pressão arterial sistólica originalmente propostos pelo 5th Joint National Committee (< 140mmHg)9 e os que emergiram com o estudo Sprint (< 120mmHg), há uma faixa de indecisão/decisão e, embora se acredite que «menor pressão é melhor» para a generalidade dos doentes, é aos clínicos que compete decidir.
As recomendações em medicina, originalmente guias de prática clínica que sugerem uma abordagem para o tratamento de situações clínicas difíceis, deixavam aos clínicos a liberdade de ajustar a terapêutica de acordo com a especificidade do paciente. Por exemplo, no caso da hipertensão, poderiam decidir‐se por uma maior «agressividade» terapêutica em doentes mais jovens, mesmo se assintomáticos, e serem mais conservadores (se admitirmos valores de pressão arterial sistólica mais altos) em idosos, supostamente – o que ainda é matéria de discussão – mais susceptíveis de terem complicações decorrentes do próprio tratamento.
Essa flexibilidade terapêutica inicial tem‐se vindo a esbater, ainda que não de forma explícita. As recomendações, escritas e editadas com base em estudos por vezes diversos do mundo real, passaram a definir o que os clínicos devem fazer em cada circunstância, sob pena de a sua atuação poder ser considerada má prática clínica. Em suma, as «Recomendações» passaram a ser «Diretrizes» e a mudança semântica na língua portuguesa diz muito.
Não será, pois, descabido relembrar que ao médico assistente caberá sempre, consideradas as características do seu doente – risco cardiovascular, bem‐estar geral, fragilidades e opções – e ponderados os inconvenientes resultantes de eventuais efeitos adversos do tratamento, tomar as melhores decisões.
É nesse panorama que foram criadas as diretrizes que hoje se publicam, destinadas ao espaço da cardiologia de língua portuguesa e sua federação. A Federação das Sociedades de Cardiologia de Língua Portuguesa (FSCLP – www.fsclp.org) foi criada em 2014 com o objetivo principal de «promover o desenvolvimento da cardiologia ao serviço da população dos países e territórios onde a língua portuguesa é oficial» – (estatutos, artigo 4.°). Precedendo a sua fundação, foram feitas Jornadas Lusófonas de Cardiologia em Cabo Verde (2009) e em Moçambique (2011). O I Congresso da FSCLP teve lugar em Portugal (2016); o II Congresso vai ocorrer no Brasil, em novembro de 2017.
Nos estatutos já referidos são enunciadas, de forma sucinta, as vias para a concretização do objetivo principal, marcando como prioritários: o estímulo ao estudo e à investigação de problemas científicos das doenças cardiovasculares; a análise dos aspetos sociais das cardiopatias e da prevenção e assistência aos doentes; e a promoção do estreitamento das relações entre os médicos das sociedades e comunidades de língua portuguesa, que se dedicam à cardiologia. Numa palavra, trata‐se de desenvolver a lusofonia cardiológica.
Criar para a FSCLP e seu espaço mais umas diretrizes10, que não repitam o que já está escrito, afigurava‐se um desafio impossível. E no entanto estas diretrizes para “Cuidados Primários em Hipertensão nos Países de Língua Portuguesa” surgem virtuosas. Primeiramente, retratam fielmente a realidade do espaço lusófono, com suas similitudes e diferenças. Em segundo lugar, evitando considerandos excessivos, não têm omissões dos aspetos essenciais de que tratam. Em terceiro lugar – e de forma decisiva – acentuam muito bem a importância da prevenção e do tratamento da hipertensão nos cuidados primários de saúde, afinal o seu objetivo. Por último, têm em conta as características médicas, sociais e económicas do espaço a que se destinam.
Há ainda um outro mérito muito significativo nesse documento: essas diretrizes,10 aqui publicadas, constituem o primeiro trabalho científico e pedagógico produzido pela FSCLP e isso deve ser relevado. Com ele, pretende‐se cumprir objetivos da FSCLP e no caso específico dar um poderoso passo para o início de um «processo continuado, envolvendo fundamentalmente ações de educação, de mudanças de estilo de vida e garantia de acesso aos medicamentos» na área da hipertensão, como é afirmado no próprio documento.
Os autores dessas diretrizes delinearam com arte o que parecia impossível.