A Sociedade Portuguesa de Cardiologia perdeu recentemente, na véspera do Natal de 2018, uma das suas mais ilustres personalidades, o Prof. Ricardo Seabra Gomes. A Revista Portuguesa de Cardiologia não poderia ficar indiferente à perda de um dos seus Editores Delegados e por isso decidi escrever este pequeno texto evocatório. As minhas primeiras palavras são de agradecimento à família do Prof. Ricardo Seabra Gomes, na pessoa da sua esposa Senhora Drª Conceição por nos ter facultado a fotografia anexa e por ter permitido a evocação e a homenagem à memória do seu marido.
A morte, na sua inexorável marcha, não nos tem dado tréguas e tem levado consigo ao longo dos anos figuras ilustres da Cardiologia portuguesa. Chegou agora a vez do Prof. Ricardo Seabra Gomes nos abandonar precocemente quando tanto havia ainda a esperar da sua sabedoria, da sua ação, do seu entusiasmo e da sua experiência. Felizmente para nós, como um filósofo grego dizia, «o único poder que os deuses não têm é o de apagar o passado». Isso permite‐nos pois, agora, reviver um pouco o passado do Prof. Ricardo Seabra Gomes.
O Prof. Ricardo Seabra Gomes foi um Colega de elevadíssimo mérito o qual, todos nós que privámos de perto com ele, aprendemos a respeitar, pela sua elevada qualidade técnica e científica, mas sobretudo como pessoa humana e como líder. Mesmo depois de reformado ele sempre constituiu um modelo de serenidade, de bom senso, de elegância e de elevação intelectual expressa oralmente por inúmeras vezes em discursos públicos, outras vezes por escrito. O primeiro contacto que tive com o Prof. Ricardo Seabra Gomes marcou‐me profundamente para o resto da vida, nunca mais me esquecendo desse momento. Foi no Congresso Português de Cardiologia, em Matosinhos, em 1993, quando ele me interpelou no corredor, após eu terminar a apresentação das minhas comunicações orais e me sugeriu várias acções de melhoria. Foi uma surpresa para mim porque nada fazia esperar que uma personalidade como ele, com o seu estatuto, se preocupasse a ajudar um jovem especialista desconhecido de Coimbra, com o qual não tinha qualquer relacionamento prévio. Ainda mais surpreendido fiquei quando em 2000 me endereçou um convite para ser Vice‐Presidente da sua Direção da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, com o pelouro da investigação. Esses dois anos a servir a SPC foram para todos os membros da Direção presidida pelo Prof. Seabra Gomes uma vivência extraordinária e intelectualmente estimulante. Em equipa, cumprimos muitos objetivos e realizámos muitos projetos, nomeadamente o CNCDC, sempre num ambiente de grande tranquilidade e de esclarecida liderança. Uma frase que ilustra bem o tipo de liderança que o Prof. Ricardo Seabra Gomes exercia reflete‐se no que ele dizia por vezes aos membros da sua Direção: «Quando a nossa Direção realizar algo de positivo, o mérito é vosso, quando alguma coisa correr mal, a culpa é minha».
Nos tempos atuais de grande incerteza e de agitação na sociedade humana, as lideranças têm‐se mostrado frequentemente inseguras, sem objetivos definidos, vivendo sobretudo da imagem e do discurso inconsequente. Na comunicação social assistimos a escândalos frequentes e a fenómenos de violência gratuita, não se vislumbrando com a frequência desejada e necessária comportamentos éticos que constituam exemplos a seguir. Fazem falta líderes como o Prof. Ricardo Seabra Gomes para serem referências que nos ajudem a navegar nestas águas inseguras e intranquilas em que nos encontramos. Foi devido ao seu estatuto intelectual, científico e ético inquestionável que o convidei em determinado momento a fazer parte do Corpo Editorial da Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC), na qualidade de Editor Delegado. Recordo‐me de uma forma cristalina, ao olhar nessa altura para os seus olhos azuis, das palavras que ele me disse: «Tens mesmo a certeza? Não sabes que eu estou gravemente doente e que não tenho grande futuro?» Na altura fiquei surpreendido com a sua desconcertante frontalidade. Argumentei então que a (sua) Sociedade Portuguesa de Cardiologia precisava ainda dele e da sua valiosa e esclarecida contribuição. Percebi de que com este argumento o tinha convencido. E assim foi, escreveu um editorial para a RPC, em 2016, um segundo editorial em 2017 e um artigo de opinião em 2018. Este facto reflete outra das suas características fundamentais, a extraordinária capacidade de trabalho e a sua invulgar força de vontade que lhe permitiu nunca desistir e combater a doença incurável de que era portador durante vários anos. Como sempre, nunca fugiu a um desafio, nunca evitou uma responsabilidade e humildemente, como sempre, esteve de alma e coração disponível para servir a sua Sociedade. Um exemplo para todos nós!
Senhor de uma personalidade por vezes controversa e de notável lucidez, o Prof. Ricardo Seabra Gomes foi também um homem de valores, crente, homem de família, amigo de seu amigo, sendo ao mesmo tempo possuidor de uma personalidade vincada e de uma enorme coragem e verticalidade. Era sempre em todas as ocasiões uma pessoa intelectualmente estimulante e sincera, plena de interesse, de conversa fácil, rica de pormenores, por vezes salpicada de um humor tipicamente britânico. Foi um homem exigente, que sempre lutou e defendeu a competência. De facto, Lobo Antunes, seu companheiro e amigo desde a adolescência, numa homenagem dirigida ao Prof. Ricardo Seabra Gomes afirmou que «a competência é simplesmente a ponte entre o conhecimento e a acção. É o mais exigente dos atributos do médico. Toda a vida do Prof. Ricardo Seabra Gomes foi devotada à luta pela competência e fazer dela não só instrumento de progresso individual mas uma espécie de norma coletiva e institucional».
Segundo as palavras de William Nóbrega, “Um homem só é grande quando, após a morte, ainda é lembrado pelos seus feitos.” E foram de facto muitos os feitos alcançados pelo Prof. Ricardo Seabra Gomes ao longo da sua vida profissional. Façamos agora uma breve resenha do seu percurso.
O Prof. Ricardo Seabra Gomes nasceu em Lisboa, em 1944. Licenciou‐se pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em 1968. Foi certificado como especialista em Cardiologia pela Ordem dos Médicos, em 1971. Confessou que teria escolhido ser médico porque o pai já o era e dentro da Medicina a Cardiologia porque com 10 anos de idade assistiu à morte súbita de seu pai durante um jogo de futebol entre o seu Vitória de Setúbal e o seu Sporting. Trabalhou como Resident Medical Officer to the Surgical Unit no National Heart Hospital sob a supervisão do distinto Sir Donald Ross e foi ainda Research Fellow do prestigiado Cardiothoracic Institute (em Londres), sob a orientação do Prof. Peter Harris, entre 1971 e 1978. Neste Instituto mostrou uma faceta desconhecida da esmagadora maioria dos cardiologistas portugueses, a sua capacidade em realizar também investigação translacional muita da qual foi publicada em revistas científicas de topo nessa área ilustrando assim a sua enorme disponibilidade para a inovação e provando que já nessa altura estava muito à frente do seu tempo. Aliás ele reconhece num texto por ele escrito a importância desta experiência translacional como «decisiva para o necessário rigor científico e humildade que me têm acompanhado ao longo dos anos, mesmo na intervenção coronária». Quando esteve no National Heart Hospital trabalhou com vários cardiologistas distintos tais como Aubrey Leatham, R. Emanuel, Edgar Sowton, Raphael Balcon, Derek Gibson, Jane Somerville e cirurgiões como Donald Ross, Magdi Yacoub, Keith Ross, John Parker, entre outros. Dedicou uma atenção especial ao laboratório de hemodinâmica neste hospital onde trabalhava Anthony Rickards. Desta interação resultou o desenvolvimento de um novo método de avaliação da motilidade da parede ventricular a partir de angiogramas ventriculares esquerdos. Após regressar a Portugal ajudou a abrir o Hospital de Santa Cruz onde foi nomeado Diretor do Serviço de Cardiologia, em 1984. Neste projeto trabalhou de perto com o Prof. Machado Macedo com quem desenvolveu uma amizade que se tornou quase filial porque em muitos aspetos o Prof. Machado Macedo foi o pai que ele não tivera. Para além do seu trabalho clínico, o Prof. Seabra Gomes participou em vários ensaios clínicos na qualidade de investigador ou como membro do Steering Committee. No Hospital de Santa Cruz ele desenvolveu, em 1987, o primeiro ensaio clínico comparando a estreptoquinase com o APSAC (anisoylated plasminogen streptokinase activator complex). Para além disso participou ativamente em vários ensaios clínicos de referência como o ISIS IV (com Peter Sleight, Rory Collins e Richard Peto). Também contribuiu para o ensaio CORE, com Salim Yusuf, e nos ensaios EMIP, FRAXIS, FTT. Nos estudos GUSTO e ASSENT teve a oportunidade de estabelecer uma ligação especial com Eric Topol e Frans van de Werf respetivamente.
Em 1984 teve a audácia de introduzir o uso da angioplastia coronária em Portugal. Este trabalho pioneiro no Hospital de Santa Cruz continuou ao longo dos anos com o desenvolvimento de outras técnicas de intervenção tais como a aterectomia (direcional e rotacional), laser e braquiterapia intracoronária e posteriormente o uso de stents. Implantou em Portugal o primeiro stent, em 1990, e o primeiro stent com fármaco (Cypher), em 2002. Esteve envolvido em vários estudos marcantes da cardiologia de intervenção moderna como o TRENDS study, ROSE, CABRI trial, SOS trial, ARTS study, Benestent, e‐Sirius, e Taxus trial. Ao longo destes anos criou uma amizade próxima com Andreas Grüentzig e com Patrick Serruys.
Em 1998, criou o Instituto do Coração, uma instituição privada localizada em Carnaxide.
A experiência com os primeiros 500 doentes submetidos a angioplastia com balão e o respetivo seguimento durante 5 anos serviram de base à sua tese de doutoramento na Universidade do Porto, em 1994.
Recebeu ao longo dos anos várias honras e distinções, acessíveis a poucos, tais como o grau de Comendador da Ordem de Mérito da Nação e de Grã Cruz na Ordem do Infante Dom Henrique, bem como a medalha de Ouro do Ministro da Saúde. Foi ainda agraciado com o Prémio Nunes Correia Verdades de Faria, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Ganhou 27 prémios científicos da Sociedade Portuguesa de Cardiologia.
Foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia entre 2001 e 2003. Reformou‐se da sua vida hospitalar pública em 2005.
Por manifesta incapacidade pessoal, não me foi possível traçar um perfil digno da extraordinária personalidade do Prof. Ricardo Seabra Gomes, não poderei, no entanto, de deixar de sublinhar quanto me enriqueceu e marcou o contacto com a sua Pessoa, a sua serena determinação, a inalterável elegância do trato e o seu profissionalismo irrepreensível.
Não tenho qualquer dúvida de que a sua vida teve todo o sentido pelo impressionante legado que deixou ao longo da sua carreira. Numa reflexão sobre o seu passado um dia ele disse: «Tenho a consciência muito tranquila e não me arrependo do que terei feito». Ele partiu deixando uma enorme responsabilidade sobre os ombros dos que o seguiram para dar continuidade ao seu brilhante trabalho.
Mas chegou o momento de concluir esta curta evocação do Professor que partiu, e eu pretendi trazer – ainda uma vez mais – ao nosso convívio e à vossa lembrança. Lembrança que perdurará na recordação da sua personalidade única, na rememoração dos seus conceitos e modo de estar e, de algum modo, no percurso dos seus discípulos e colaboradores. Tenho consciência de que tudo isto de pouco servirá para mitigar a infindável saudade que todos nós sentimos. À sua gentilíssima esposa e doce companheira de tantos anos, Senhora Drª. Conceição e às suas ilustres filhas e demais família, quero deixar aqui a expressão da nossa mágoa e do nosso desgosto pela irreparável perda que sofreram e a todos nós afeta e atinge.
“In the end, it's not the years in your life that count. It's the life in your years. Abraham Lincoln”