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Vol. 38. Núm. 2.
Páginas 97-101 (fevereiro 2019)
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Vol. 38. Núm. 2.
Páginas 97-101 (fevereiro 2019)
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Pericardite – apresentação e características numa população pediátrica
Pericarditis – Clinical presentation and characteristics of a pediatric population
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Catarina Perez‐Brandão
Autor para correspondência
catarinaspbrandao@gmail.com

Autor para correspondência.
, Conceição Trigo, Fátima F. Pinto
Serviço de Cardiologia Pediátrica, Hospital de Santa Marta, Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE, Lisboa, Portugal
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Rev Port Cardiol. 2019;38:103-410.1016/j.repc.2019.02.003
José Carlos Areias
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Resumo
Introdução e objetivo

A pericardite é uma doença inflamatória que ocorre de forma isolada ou em contexto de doença sistémica. Neste trabalho pretende‐se caracterizar a forma de apresentação, orientação diagnóstica e terapêutica, e o seguimento dos doentes internados com este diagnóstico.

Métodos

Análise descritiva retrospetiva de doentes internados num único Serviço de Cardiologia Pediátrica, com o diagnóstico de pericardite, entre 2003 e 2015. As características da população são expressas em frequência e percentagem nas variáveis categóricas e em mediana e percentis nas variáveis contínuas.

Resultados

Identificaram‐se cinquenta doentes, sendo predominante o sexo masculino (80%) e com uma mediana de idades de 14 anos. A pericardite aguda foi o diagnóstico mais frequente (80%). Na avaliação inicial, 35 doentes (70%) apresentaram toracalgia e 13 (26%) relataram febre. Em 11 doentes (22%) verificou‐se cardiomegália na radiografia do tórax, em 30 (60%) registaram‐se alterações do ECG e em 44 (88%) observaram‐se alterações no ecocardiograma transtorácico. Em 17 casos (34%) foi diagnosticada miopericardite. A etiologia mais comum foi a infeciosa (48%), com agente identificado em metade dos casos. Houve cinco casos de Síndrome Pós‐Pericardiotomia. A primeira linha terapêutica foi o ácido acetilsalicílico (50%). Em 12 doentes (24%) realizou‐se pericardiocentese. A duração do internamento teve uma mediana de nove dias. Em sete crianças (14%) houve recorrência dos sintomas após o episódio inaugural.

Conclusões

Nesta casuística verificou‐se que a causa mais frequente de pericardite foi a infeciosa. Em um terço dos doentes decorreu com componente de miocardite e a recidiva não é desprezível com a terapêutica clássica.

Palavras‐chave:
Pericardite
Pericárdio
Criança
Adolescente
Agentes anti‐inflamatórios
Abstract
Introduction

Pericarditis is an inflammation of the pericardium. It may be infectious or secondary to a systemic disease. The aim of this study was to analyze the clinical findings, course, treatment and follow‐up of children diagnosed with pericarditis at our center.

Methods

We performed a retrospective analysis of all children admitted to our pediatric cardiology unit with pericarditis between 2003 and 2015. Patient characteristics were summarized using frequencies and percentages for categorical variables and medians with percentiles for continuous variables.

Results

Fifty patients were analyzed (40 male, 10 female) with a median age of 14 years. The most common diagnosis was acute pericarditis (80%). Thirty‐five patients (70%) presented with chest pain and 26% reported fever. Cardiomegaly was identified on chest X‐ray in 11 patients (22%), 30 patients (60%) had an abnormal ECG and 44 patients (80%) had alterations on the transthoracic echocardiogram. In 17 cases (34%) there was myocardial involvement. Forty‐eight percent of patients presented with infectious pericarditis and the pathologic agent was identified in half of them. Postpericardiotomy syndrome was diagnosed in five cases. The first‐line therapy was aspirin in 50% of cases. Pericardiocentesis was performed in 12 patients. The median length of stay was nine days. There was symptom recurrence in seven children.

Conclusions

In this study, acute infectious pericarditis was the most common presentation and about one third of patients also had myocarditis. The symptom recurrence rate was not negligible and is probably related to the type of therapy employed.

Keywords:
Pericarditis
Pericardium
Child
Adolescent
Anti‐inflammatory agents
Texto Completo
Introdução

O pericárdio é constituído por uma dupla membrana que envolve o coração e a raiz dos grandes vasos e tem como funções a fixação do coração ao mediastino e a proteção no contexto de infeção1,2. A pericardite corresponde ao processo inflamatório que envolve o pericárdio, podendo ocorrer com a formação de derrame pericárdico. É uma entidade pouco frequente em idade pediátrica e corresponde a cerca de 5% das queixas de dor torácica observadas no serviço de urgência1,3. Alguns episódios podem ser autolimitados, pelo que a verdadeira incidência é desconhecida. Assim, é importante haver um alto índice de suspeição de pericardite nas crianças, já que os sintomas podem, também, ser inespecíficos4.

Com este estudo pretende‐se caracterizar a população de crianças referenciadas a um Serviço de Cardiologia Pediátrica e internadas com o diagnóstico de pericardite.

Métodos

Estudo observacional que reporta uma análise descritiva e retrospetiva dos dados de todos os doentes internados com o diagnóstico de pericardite (ICD 9), no período compreendido entre 1 de janeiro de 2003 e 31 de dezembro de 2015, no Serviço de Cardiologia Pediátrica de um hospital terciário. Foram analisados dados demográficos, manifestações clínicas, exames complementares de diagnóstico, bem como terapêutica instituída e seguimento subsequente, obtidos através dos registos que constam do processo clínico dos doentes selecionados. Procedeu‐se à análise descritiva das variáveis. As variáveis categóricas são expressas em frequência e percentagem e as variáveis contínuas são expressas em mediana e percentis.

Resultados

Foram admitidos 50 doentes no período descrito, nove através do ambulatório, 14 através do serviço de urgência pediátrica do nosso centro hospitalar e os restantes foram transferidos de hospitais abrangidos na área de referenciação do nosso hospital. Quarenta doentes (80%) eram do sexo masculino e 10 (20%) do sexo feminino. A mediana de idades calculada foi de 14 anos, com uma amplitude interquartil entre os 9 e os 15 anos. Dos antecedentes pessoais relevantes, destacam‐se as cardiopatias congénitas, presentes em sete (14%) casos, a patologia imunológica, presente em seis (12%) casos, a patologia metabólica e genética, ambas com três (6%) casos e um doente com patologia neoplásica (tabela 1).

Tabela 1.

Antecedentes pessoais

Patologia  Diagnóstico 
Cardiopatia congénitaAtrésia da pulmonar com septo intacto 
Comunicação interauricular 
Coração univentricular tipo direito 
Comunicação interventricular 
Canal arterial patente 
Estenose subvalvular aórtica 
ImunológicaVIH 2 
Asma 
MetabólicaMixedema 
Uremia (lesão renal crónica) 
Anorexia 
Neoplásica  Linfoma de Hodgkin 
GenéticaSíndrome polimalformativo 
Síndrome Kleine‐Levin 
Síndrome de Greig 

A forma de apresentação mais frequente foi a dor torácica em 35 doentes (75%), seguida da febre em 13 casos (26%), do cansaço em nove casos (18%) e da dispneia em seis casos (12%). Prostração e sintomas gastrointestinais, como recusa alimentar e vómitos foram relatados pontualmente.

Os resultados dos exames complementares realizados para orientação diagnóstica encontram‐se apresentados nas tabelas 2, 3 e 4.

Tabela 2.

Radiografia de tórax

Resultado  n (%) 
Normal  34 (68%) 
Cardiomegália  11 (22%) 
Derrame pleural  7 (14%) 
Calcificações  1 (2%) 
Tabela 3.

Eletrocardiograma de 12 derivações

Resultado  n (%) 
Normal  20 (40%) 
Alterações da repolarização  27 (54%) 
Complexos QRS de baixa voltagem  3 (6%) 
Tabela 4.

Ecocardiograma transtorácico

Resultado  n (%) 
Normal  6 (12%) 
Derrame pericárdico  35 (70%) 
Hiperecogenicidade do pericárdio  13 (26%) 

Na avaliação laboratorial, 36 doentes (72%) tinham elevação dos parâmetros de infeção/inflamação e em 17 casos (35%) houve aumento dos marcadores de lesão miocárdica (troponina I e CK), indicando o envolvimento concomitante do miocárdio no processo patológico.

Da pesquisa etiológica, foi atribuída uma causa infeciosa em 24 casos (48%), tanto através de uma anamnese detalhada com história de infeção respiratória ou gastrointestinal recente, bem como através da identificação do microrganismo associado, por exames laboratoriais (tabela 5). Em oito doentes (16%) foi encontrada uma etiologia não infeciosa, sendo que em cinco crianças foi diagnosticada Síndrome Pós‐Pericardiotomia, duas crianças tinham causas metabólicas subjacentes e em uma criança a etiologia foi atribuída à doença neoplásica. Em 18 doentes (36%) foi considerado apresentarem uma doença idiopática.

Tabela 5.

Etiologia infeciosa

Microrganismos identificados 
Enterovírus 
Vírus Parainfluenza 
Vírus Epstein‐Barr 
Mycobacterium tuberculosis 
Neisseria meningitidis 

Quanto às complicações, oito doentes (16%) apresentaram tamponamento cardíaco, quatro doentes (8%) evoluíram com constrição pericárdica e em sete casos (14%) houve recorrência dos sintomas após o episódio inaugural.

A terapêutica médica instituída centrou‐se no uso de fármacos com efeito anti‐inflamatório, nomeadamente o ácido acetilsalicílico em 25 casos (50%) e o ibuprofeno em 21 casos (42%). Em casos selecionados, utilizou‐se terapêutica com corticoides (quatro doentes) e com colchicina (dois doentes).

Em 14 doentes (28%) houve necessidade de recorrer a terapêutica cirúrgica, nos quais foram efetuadas 12 pericardiocenteses e duas pericardiectomias.

O diagnóstico de pericardite aguda foi feito na maioria dos doentes, 40 (80%), com base na avaliação global. No decorrer do seguimento dos doentes a longo prazo, foi estabelecido o diagnóstico definitivo, listado na tabela 6.

Tabela 6.

Diagnósticos

Diagnóstico  n (%) 
Pericardite aguda  40 (80%) 
Pericardite crónica  3 (6%) 
Pericardite recorrente  7 (14%) 
Miopericardite  17 (34%) 
Discussão

A pericardite pode ter uma causa infeciosa, sendo a etiologia viral a mais frequente em idade pediátrica1. Neste estudo, 42% das crianças tiveram o diagnóstico de pericardite viral, com identificação do agente infecioso em mais de um quarto dos doentes. Os agentes bacterianos são etiologias menos comuns de pericardite1. Nesta série verificaram‐se dois casos de pericardite tuberculosa, sendo que um ocorreu em contexto de imunodeficiência secundária por infeção VIH 2. A pericardite tuberculosa apresenta uma forte associação com a infeção por VIH, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento, sendo que a evolução para constrição é menos comum no grupo de doentes imunodeprimidos5. Apesar de em ambos os casos ter ocorrido derrame pericárdico com necessidade de pericardiocentese, nenhum evoluiu com pericardite constritiva.

Em 36% dos casos não foi possível atribuir uma causa, estando de acordo com os dados de Shakti, et al.6, em que cerca de 37‐68% dos doentes são considerados de causa idiopática.

Na nossa série, a pericardite viral ou idiopática foi a etiologia mais frequente durante o período da adolescência, com predominância do sexo masculino, sendo estas, também, as causas relatadas como mais frequentes por diversos autores6,7.

A pericardite pode, ainda, ocorrer em contexto não infecioso, subjacente a uma doença sistémica2 ou em doentes com cardiopatia submetidos a cirurgia cardíaca6,8. Dos sete doentes com cardiopatia congénita, cinco tiveram o diagnóstico de Síndrome Pós‐Pericardiotomia no pós‐operatório. Em idade pediátrica, existe uma prevalência maior desta entidade relativamente à idade adulta, particularmente nos casos de encerramento de defeitos do septo interauricular8,9, o que se verificou em dois casos deste estudo. A probabilidade de recorrência é, também, superior nestas situações8,10, mas no grupo estudado apenas um doente desenvolveu cronicidade.

A miopericardite ocorre quando existe algum grau de envolvimento do miocárdio no processo inflamatório subjacente à pericardite, uma vez que ambas as entidades partilham agentes etiológicos comuns, nomeadamente os vírus cardiotrópicos, como os enterovírus1,11. O quadro caracteriza‐se pelos critérios clínicos da pericardite, com aumento dos marcadores de lesão cardíaca (Ex. troponina I)1,12. A incidência de miopericardite neste estudo foi de 34%, superior ao descrito por Imazio, et al.13 que refere uma incidência de 10‐15%, o que pode estar relacionado com o aumento da sensibilidade da análise da troponina I de alta sensibilidade1, ou com enviesamento de referenciação de doentes para um centro terciário de cardiologia pediátrica.

A taxa de complicações não foi desprezível, com 30% das crianças a desenvolverem algum tipo de evolução desfavorável. A maioria dos casos recorrentes ocorreu no contexto de pericardite idiopática. A incidência de complicações varia consoante a etiologia da pericardite e existem parâmetros clínicos que predizem pior prognóstico, como a temperatura superior a 38°C, início subagudo da doença, presença de tamponamento cardíaco e ausência de resposta aos anti‐inflamatórios não esteroides, após uma semana de terapêutica14.

A abordagem terapêutica assenta na causa subjacente de pericardite. Nos casos de etiologia viral, idiopática e não complicada, o tratamento é sintomático e consiste na administração de anti‐inflamatórios não esteroides como fármacos de primeira linha1. Durante o período que compreendeu este estudo, o ácido acetilsalicílico e o ibuprofeno foram prescritos em percentagens muito semelhantes e como primeira linha terapêutica. Dos casos em que foi prescrito corticoide sistémico, dois foram em contexto de pericardite aguda e dois no contexto de pericardite recorrente. A colchicina foi usada num caso de pericardite recorrente e num caso de pericardite crónica, sem efeito significativo. Parece haver evidência de que a colchicina, como terapêutica adjuvante aos anti‐inflamatórios, diminui a persistência de sintomas a curto‐prazo e diminui o risco de recidiva, nos doentes com pericardite aguda ou recorrente15. As últimas recomendações pediátricas1 sugerem o uso de ibuprofeno em detrimento do ácido acetilsalicílico para o tratamento de primeira linha em idade pediátrica, bem como a prescrição de colchicina, como agente adjuvante, nos casos refratários ou recorrentes1,2. Apesar das recomendações, a falta de consistência nos resultados relativamente ao uso da colchicina demonstra a necessidade de estudos controlados e aleatorizados16. A corticoterapia deverá ser evitada em crianças, pelos efeitos secundários, nomeadamente as alterações no crescimento, ficando restrita aos casos associados a patologia autoimune1. Como nova opção terapêutica, o anakinra, um antagonista do recetor humano da interleucina‐1, tem demonstrado eficácia em casos de pericardite recorrente e dependente de corticoide1,17.

Nos casos complicados com tamponamento cardíaco ou constrição miocárdica, é necessária uma abordagem cirúrgica para controlo dos sintomas. Os casos de tamponamento habitualmente resolvem com a realização de pericardiocentese. Relativamente à pericardite constritiva, está preconizada a pericardiectomia como único tratamento definitivo18.

Conclusões

A pericardite é uma entidade pouco frequente em crianças, sendo escassos os estudos publicados em idade pediátrica, pelo que é necessário um elevado índice de suspeição para fazer o diagnóstico.

O envolvimento do miocárdio e a avaliação do grau de persistência das lesões serão importantes para definir um valor prognóstico nos casos de miopericardite.

A introdução das novas opções terapêuticas poderá ter um impacto significativo na recorrência dos episódios.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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