O objetivo deste registo foi caracterizar a prática clínica em Portugal no que respeita à utilização de dispositivos eletrónicos na terapêutica dos doentes com insuficiência cardíaca (IC) e fração de ejeção ventricular esquerda (FEVE) diminuída.
MétodosO estudo Síncrone é um registo observacional, multicêntrico e prospetivo que foi conduzido em 16 centros portugueses de 2006 a 2014. Incluiu doentes adultos com diagnóstico de IC, FEVE<35% e indicação para implantação de dispositivos de desfibrilhação (CDI) e/ou ressincronização (CRT), de acordo com as recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia em vigor aquando do início do estudo. Os doentes foram seguidos durante um ano, de acordo com a prática de cada centro.
ResultadosNo total, foram incluídos 486 doentes, dos quais metade implantou CDI e a outra metade CRT‐P ou CRT‐D. A idade média foi de 65±12 anos e as etiologias mais frequentes foram a isquémica (47%) e a miocardiopatia dilatada idiopática (28%). A mortalidade global ao ano foi 3,6% e a taxa de reinternamento 11%, sendo significativamente maior nos doentes que implantaram CRT‐D/CRT‐P em relação aos que implantaram CDI (17% versus 5,6% p<0,001). Nos doentes submetidos a CRT observou‐se redução significativa da duração do QRS (160±21ms versus 141±24ms, p<0,001), bem como melhoria da classe funcional New York Heart Association.
ConclusãoO estudo Síncrone mostra que a utilização dos dispositivos implantáveis na IC com FEVE diminuída está de acordo com as recomendações internacionais, tendo os doentes apresentado melhoria funcional e reduzida mortalidade ao ano.
The aim of this study was to document clinical practice in Portugal regarding the use of electronic cardiac devices in patients with heart failure (HF) and reduced left ventricular ejection fraction (LVEF).
MethodsThe Síncrone study was an observational prospective multicenter registry conducted in 16 centers in Portugal between 2006 and 2014. It included adult patients with a diagnosis of HF, LVEF <35% and indication for implantable cardioverter‐defibrillator (ICD) and/or cardiac resynchronization therapy (CRT) devices, according to the recommendations of the European Society of Cardiology at the beginning of the study. Patients were followed for one year according to the practice of each center.
ResultsA total of 486 patients were included in the registry, half of whom received an ICD and the other half a CRT pacemaker (CRT‐P) or CRT defibrillator (CRT‐D). Mean age was 65±12 years and the most frequent causes of HF were ischemic (47%) and idiopathic dilated cardiomyopathy (28%). Overall mortality at one year was 3.6% and the hospitalization rate was 11%, significantly higher in patients with CRT‐P/CRT‐D than with ICD (17% vs. 5.6%, p<0.001). Patients who received CRT‐P/CRT‐D experienced significant reductions in QRS duration (160±21 vs. 141±24 ms, p<0.001) as well as improvement in New York Heart Association functional class.
ConclusionThe Síncrone study shows that the use of implantable devices in HF with reduced LVEF in Portugal is in accordance with international recommendations and that patients presented functional improvement and reduced one‐year mortality.
Apesar dos avanços ocorridos na terapêutica farmacológica dos doentes com insuficiência cardíaca (IC) e fração de ejeção ventricular esquerda (FEVE) diminuída entre o final da década de 1980 e o início dos anos 2000, a IC apresenta ainda elevada morbilidade e mortalidade, continuando a sua prevalência a aumentar1. A procura de modalidades terapêuticas não farmacológicas nos últimos 15 anos evidenciou o interesse crescente dos dispositivos implantáveis: cardioversor‐desfibrilhador implantável (CDI) e sistemas de ressincronização cardíaca (CRT), com CDI (CRT‐D) ou sem o mesmo (CRT‐P).
A utilização do CDI em doentes com FEVE diminuída e manifestações de insuficiência cardíaca é uma recomendação da classe 2, tendo‐se comprovado melhoria da sobrevida, sendo, no entanto, subutilizada entre nós3,4. Diversos estudos avaliaram o impacto do CRT na morbilidade e mortalidade desta população, comprovando‐se redução significativa do risco de morte ou hospitalização5,6, possibilitando a obtenção nesta população de uma melhoria dos sintomas, capacidade funcional, qualidade de vida e sobrevida.
A presença de complexos QRS com duração ≥120ms e padrão de bloqueio completo de ramo esquerdo, apesar de apresentar limitações, tem sido o critério mais utilizado para identificar os doentes com dessincronia da contração ventricular, que poderão beneficiar da terapêutica de ressincronização cardíaca2; no entanto, cerca de um terço não responde a esta terapêutica7, o que é atribuído a fatores como a localização dos eletrocateteres, as características do miocárdio (presença de fibrose e viabilidade nas zonas de contração tardia) e ausência de dessincronia mecânica.
Alguns estudos sugeriram que outros métodos, nomeadamente a ecocardiografia, poderiam adicionar marcadores de dessincronia ventricular8 especulando‐se na altura em que este estudo foi iniciado, que os parâmetros de ecocardiografia poderiam, por si só, identificar os candidatos a CRT. A incerteza nesta área traduziu‐se em sucessivas revisões das recomendações internacionais ao longo dos anos, mantendo‐se a procura de critérios sensíveis e específicos para seleção dos doentes que mais poderão beneficiar do CRT9 e o debate quanto à utilidade dos parâmetros ecocardiográficos nesta seleção.
Decidimos assim, através de um estudo observacional, colher dados da prática clínica em Portugal e avaliar os resultados da utilização de dispositivos eletrónicos na terapêutica dos doentes com IC e FEVE < 35%.
MétodosDesenho do estudoO estudo Síncrone é um registo observacional, prospetivo, multicêntrico, conduzido em 16 centros nacionais. Teve como promotor o Instituto Português do Ritmo Cardíaco (IPRC), integrando o seu steering‐committee elementos desta instituição assim como outros provenientes dos Grupos de Estudo de Ecocardiografia e da Insuficiência Cardíaca da Sociedade Portuguesa de Cardiologia.
Após a elaboração do protocolo foram convidados a participar os centros nacionais que reunissem capacidade, meios técnicos e recursos humanos dos três setores da cardiologia que lidam com esta patologia – área da insuficiência cardíaca, para avaliação dos doentes do ponto de vista clínico, garantia de otimização da terapêutica farmacológica e referenciação de doentes; área da ecocardiografia, na seleção dos doentes com FEVE < 35% e avaliação dos parâmetros que se poderão relacionar com dessincronia; área da arritmologia, para avaliação dos doentes do ponto de vista do risco arrítmico e indicação para implantação dos dispositivos (ver material suplementar on line 1).
Nos centros que aceitaram participar, o protocolo do estudo foi submetido à Comissão de Ética e ao Conselho de Administração do respetivo hospital, só se iniciando o recrutamento dos doentes após a aceitação por estas duas entidades.
Todos os doentes forneceram por escrito o seu consentimento informado para participação no estudo e utilização dos dados recolhidos para fins científicos.
População e seguimentoEram elegíveis para o estudo doentes de ambos os sexos, com idade igual ou superior a 18 anos, com diagnóstico de insuficiência cardíaca e FEVE < 35%, com indicação para implantação de dispositivos de desfibrilhação e/ou ressincronização. Os dados foram introduzidos pelos investigadores de cada centro num registo informatizado, acessível através da Internet, tendo a base de dados sido centralizada no IPRC. Foram definidos cinco momentos de avaliação dos doentes: antes da implantação do dispositivo, na alta hospitalar e aos 3, 6 e 12 meses (±1 mês) de seguimento, o qual foi realizado de acordo com a prática de cada centro, tendo a duração total de um ano.
Em cada avaliação estavam disponíveis para preenchimento, dados demográficos, clínicos, laboratoriais, terapêuticos, radiológicos, ecocardiográficos, arritmológicos e eletrofisiológicos. Os parâmetros do ecocardiograma definidos para avaliação estavam de acordo com as recomendações conjuntas da Sociedade Americana de Ecocardiografia e Associação Europeia de Ecocardiografia, incluindo os critérios de dessincronia auriculoventricular, interventricular e intraventricular10(ver material suplementar on line 1).
No desenho inicial do estudo estava previsto o recrutamento dos doentes durante um ano, a partir da primeira inclusão em cada centro. A constatação da dificuldade de alguns centros na inclusão de doentes levou ao alargamento desse período, até ter sido decidido pelo steering‐committee que o estudo terminaria ao ser atingido o número de 500 doentes incluídos.
Objetivos do estudoDefiniu‐se como objetivo principal para o estudo Síncrone a determinação da taxa de mortalidade e reinternamento por qualquer causa até um ano após o procedimento.
Para objetivos secundários consideraram‐se: a taxa de mortalidade e hospitalização por insuficiência cardíaca, a caracterização dos doentes sob o ponto de vista clínico, eletrofisiológico e ecocardiográfico, a avaliação dos fatores preditores de resposta à terapêutica de ressincronização, as complicações intra e extra‐hospitalares e respetivos preditores e a avaliação da prática clínica em Portugal no respeitante à implantação de CRT e CDI.
Análise estatísticaAs variáveis contínuas foram descritas pela média ± desvio‐padrão (DP) e para a sua comparação foi efetuado o teste t‐student (ou o equivalente não paramétrico, teste de Mann Whitney); o teste Kolmogorov‐Smirnov foi utilizado para testar a distribuição normal das variáveis.
As variáveis categóricas foram representadas em valor absoluto e em percentagem (%) e a sua comparação realizada com o teste de Qui‐quadrado e/ou Teste Exato de Fisher.
Foram utilizados modelos de regressão logística para estimar o odds ratio dos preditores dos resultados clínicos, com intervalo de confiança de 95%; as variáveis incluídas no modelo apresentaram p < 0,01 na análise univariada.
As variáveis incluídas no modelo da análise multivariada, que avaliou a dessincronia como preditor de melhoria clínica, foram a diabetes mellitus, dissincronia intraventricular e duração do QRS (p < 0,01 na análise univariada).
Os valores p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos. A análise estatística foi realizada com recurso ao software SPSS versão 22.0.
ResultadosEntre Novembro de 2008 e Maio de 2014 foram introduzidos no registo 515 doentes. Destes, foram considerados 486 doentes para a avaliação basal, tendo sido excluídos 29, que não tinham a maioria das características preenchidas no CRF (case report form), e 419 doentes no seguimento (perda de 67 doentes nesta fase do estudo) (figura 1).
Características basaisA tabela 1 reflete as características clínicas basais. A idade média foi de 65±12 anos; 77% eram homens e as principais etiologias da IC foram a isquémica (47%) e a miocardiopatia dilatada idiopática (28%). A terapêutica farmacológica para a IC encontrava‐se otimizada, correspondendo à máxima tolerada pelo doente: 76% dos doentes estava medicado com inibidores da enzima de conversão da angiotensina ou antagonistas dos recetores da angiotensina II (IECA/ARA), 77% fazia um bloqueador beta‐adrenérgico e 34% um antagonista da aldosterona (tabela 1).
Características clínicas basais da população
N = 486 | CDI (n = 243) | CRT (n = 243) | Valor P | |
---|---|---|---|---|
Idade | 65±12 | 63±13 | 68±11 | < 0,001 |
Sexo Masculino | 358 (77%) | 198 (84%) | 160 (70%) | < 0,001 |
IMC | 27±5 | 27±5 | 27±4 | 0,66 |
Fatores de risco cardiovascular | ||||
Hipertensão Arterial | 291 (60%) | 139 (57%) | 152 (63%) | 0,23 |
Diabetes | 140 (29%) | 58 (24%) | 82 (34%) | 0,01 |
Dislipidemia | 246 (51%) | 123 (51%) | 123 (51%) | 1,0 |
Etiologia da cardiopatia | ||||
Isquémica | 229 (47%) | 144 (59%) | 85 (35%) | < 0,001 |
Dilatada Idiopática | 135 (28%) | 35 (14%) | 100 (41%) | < 0,001 |
Hipertrófica dilatada | 32 (6.6%) | 31 (13%) | 1 (0,4%) | < 0,001 |
Hipertensiva | 51 (11%) | 27 (11%) | 24 (10%) | 0,77 |
Alcoólica | 22 (4,5%) | 10 (4,1%) | 12 (4,9%) | 0,66 |
Outras | 56 (12%) | 21 (8,6%) | 35 (14%) | 0,047 |
Doença Renal Crónica | 58 (12%) | 20 (8,2%) | 38 (16%) | 0,01 |
Anemia | 41 (8.4%) | 15 (6.2%) | 26 (11%) | 0,07 |
FA prévia | 111 (23%) | 53 (22%) | 58 (24%) | 0,59 |
TV/FV prévia | 109 (22%) | 80 (33%) | 29 (12%) | < 0,001 |
Internamentos no último ano | 69 (14%) | 28 (12%) | 41 (17%) | 0,09 |
Classe NYHA (n = 414) | n =184 | n = 230 | ||
I | 55 (13%) | 41 (22%) | 14 (6,1%) | < 0,001 |
II | 212 (51%) | 115 (63%) | 97 (42%) | < 0,001 |
III | 140 (34%) | 27 (15%) | 113 (49%) | < 0,001 |
IV | 7 (1,7%) | 1 (0,5%) | 6 (2,6%) | 0,11 |
Medicação (n = 349) | n =157 | n =192 | ||
IECA/ARA | 266 (76%) | 108 (69%) | 158 (82%) | 0,003 |
Beta‐bloqueante | 267 (77%) | 114 (73%) | 153 (80%) | 0,12 |
Antagonista aldosterona | 119 (34%) | 36 (23%) | 83 (43%) | < 0,001 |
Outros diuréticos | 252 (72%) | 93 (59%) | 159 (83%) | < 0,001 |
Estatina | 212 (61%) | 102 (65%) | 110 (57%) | 0,14 |
Anticoagulante | 118 (34%) | 49 (31%) | 69 (36%) | 0,35 |
Antiplaquetar | 198 (57%) | 101 (64%) | 97 (50%) | 0,01 |
Antiarrítmico | 72 (21%) | 33 (21%) | 39 (20%) | 0,87 |
CDI: desfibrilhador cardioversor implantável; CRT: terapêutica de ressincronização cardíaca; IECA/ARA: inibidores da enzima de conversão da angiotensina/antoganistas do recetor da angiotensina II; IMC: índice de massa corporal; NYHA: New York Heart Association; TV/FV: taquicardia ventricular/fibrilhação ventricular.
Cerca de 14% dos doentes tinha tido pelo menos um internamento hospitalar no último ano e 22% tinha documentado um episódio de taquicardia/fibrilhação ventricular prévia (implantação do dispositivo em contexto de prevenção secundária de morte súbita).
Dos doentes incluídos na avaliação basal, metade (n = 243) implantou um CDI e a outra metade CRT‐D (n = 208) ou CRT‐P (n = 35); os que implantaram CDI, tinham, em comparação com o grupo com CRT‐D/CRT‐P, idade mais jovem, predomínio do sexo masculino e menor proporção de comorbilidades, como diabetes ou doença renal crónica. A maior parte dos doentes que implantaram CDI (85%) estava em classe I‐II da New York Heart Association (NYHA), enquanto a maioria com CRT‐D/CRT‐P (91%) se encontrava em classe funcional II‐III da NYHA.
Em média, a FEVE era de 28,7±8,5%, estando a função sistólica do ventrículo direito preservada na maioria dos casos. Os doentes que implantaram CRT‐D/CRT‐P tinham volumes ventriculares esquerdos maiores e fração de ejeção mais baixa (tabela 2).
Características ecocardiográficas basais da população
N = 486 | CDI (n = 243) | CRT (n = 243) | Valor P | |
---|---|---|---|---|
Fração de ejeção (%) | 28,7±8,5 | 30,6±9,6 | 27,3±7,4 | 0,002 |
Dimensão telediastólica (mm) | 65,9±9,8 | 62,9±9,7 | 67,9±9,3 | < 0,001 |
Dimensão telessistólica (mm) | 53,9±13,0 | 51,2±13,3 | 55,9±12,4 | 0,01 |
Volume telediastólico indexado (ml/m2) | 103,9±32,2 | 94,6±20,9 | 113,9±43,4 | < 0,001 |
Volume telessistólico indexado (ml/m2) | 74,1±30,5 | 66,5±19,7 | 78,4±33,9 | 0,08 |
Razão E/E’ | 15,7±11,0 | 14,8±5,2 | 16,2±13,2 | 0,50 |
Pressão sistólica da artéria pulmonar (mmHg) | 41,6±12,0 | 40,7±12,2 | 42,1±11,9 | 0,55 |
TAPSE (mm) | 18,3±4,6 | 18,2±4,6 | 18,4±4,7 | 0,58 |
CDI: desfibrilhador cardioversor implantável; CRT: terapêutica de ressincronização cardíaca; TAPSE: excursão sistólica do plano do anel tricúspide.
Nos doentes que implantaram ressincronizadores, a duração média do QRS foi de 160±21ms, sendo que 73% tinha QRS ≥ 150ms, 89% apresentavam um padrão de bloqueio completo de ramo esquerdo e 24% (n = 58) tinham fibrilhação auricular (ver material suplementar on line 2 e 3).
Resultados clínicosA mortalidade global a um ano, objetivo primário do estudo, foi de 3,6% (15 doentes) e o reinternamento por todas as causas de 11% (46 doentes) (tabela 3). A mortalidade de causa cardiovascular foi de 1,9% e a principal causa de reinternamento a um ano foi IC (4,5%), seguida de complicações relacionadas com o procedimento (2,6%) e arritmias (1,4%). Os doentes que implantaram CRT‐D/CRT‐P apresentaram mortalidade cardiovascular mais elevada que os com CDI (3,4% versus 0,5%, p = 0,028) e maior número de reinternamentos (17% versus 5,6%, p < 0,001). Verificou‐se por fim uma tendência para maior mortalidade global nos doentes isquémicos (5,4% versus 1,9%, p = 0,05) (tabela 3).
Mortalidade e internamento
N = 419 | CDI (n = 214) | CRT (n = 205) | p | Isquémicos (n = 203) | Não isquémicos(n = 216) | p | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Mortalidade global | 15 (3,6%) | 5 (2,3%) | 10 (4,9%) | 0,162 | 11 (5,4%) | 4 (1,9%) | 0,050 |
Mortalidade CV | 8 (1,9%) | 1 (0,5%) | 7 (3,4%) | 0,028 | 6 (3,0%) | 2 (0,9%) | 0,129 |
Internamento global | 46 (11,0%) | 12 (5,6%) | 34 (17%) | <0,001 | 28 (14%) | 18 (8,3%) | 0,074 |
Internamento por IC | 19 (4,5%) | 5 (2,3%) | 14 (6,8%) | 0,027 | 13 (6,4%) | 6 (2,8%) | 0,075 |
CDI: desfibrilhador cardioversor implantável; CRT: terapêutica de ressincronização cardíaca; CV: cardiovascular; IC: insuficiência cardíaca.
Os preditores independentes do endpoint composto «mortalidade global ou reinternamento por causa cardiovascular» foram a existência de, pelo menos, um internamento no último ano (RR 5,20; IC 95%, 1,99‐13,6; p = 0,001) e um índice de massa corporal (IMC) mais elevado (RR 1,14; IC 95%, 1,02‐1,26; p = 0,02) (figura 2).
As complicações intra‐hospitalares relacionadas com a implantação do dispositivo foram raras (4,1%; n = 17), ocorrendo sobretudo nos doentes que implantaram CRT (n = 16), sendo as principais a disseção do seio coronário (n = 8), hemorragias significativas (n = 5) e deslocação de elétrodos (n = 3). No seguimento a um ano, as complicações relacionadas com o dispositivo ocorreram em 8,6% dos doentes, tendo‐se destacado problemas relacionados com o posicionamento/avaria de elétrodos (n = 17), estimulação do nervo frénico (n = 7) e infeção da loca (n = 4). Os preditores destas complicações foram a utilização de dispositivos de ressincronização (RR 3,35; IC 95%, 1,26‐8,90; p = 0,02) e o sexo feminino (RR 3,35; IC 95%, 1,42‐7,93; p = 0,01).
Dos doentes que implantaram desfibrilhadores (CDI e CRT‐D), 71 tiveram choques (18,1%), na sua maioria apropriados (77%).
Os doentes submetidos a ressincronização apresentaram redução significativa da duração do QRS durante o seguimento (QRS basal: 160±21ms versus QRS seguimento: 141±24ms, p < 0,001), assim como, em 62% dos doentes, melhoria significativa da classe funcional de IC da NYHA (figura 3). Não houve diferença significativa na percentagem de doentes que apresentaram melhoria da classe funcional de IC da NYHA, de acordo com a duração do QRS (QRS≥ 150ms: 69% versus QRS 130‐149ms: 67%, p = 0,85) (ver material suplementar on line 4).
Nos doentes com avaliação basal completa por ecocardiograma (n = 82), apenas a existência de dessincronia intraventricular ecocardiográfica foi um preditor de melhoria da classe funcional NYHA (RR 5,23; IC 95%, 1,13‐24,3; p = 0,035) (ver material suplementar on line 3 e 4).
DiscussãoApesar de no estudo Síncrone a inclusão dos doentes se ter estendido por vários anos, durante os quais se registaram avanços na abordagem deste tipo de doentes, queremos salientar que os dados e conclusões deste estudo são particularmente atuais. Assim, a terapêutica farmacológica prescrita estava genericamente de acordo com os padrões internacionais em uso e definidos pelas guidelines mais recentes11, podendo ser considerada como a terapêutica otimizada caso a caso (76% IECA/ARA; 77% bloqueadores beta‐adrenérgicos; 34% antagonista aldosterona). Também as indicações para colocação de dispositivos estão de acordo com os critérios atuais, sobretudo a opção na grande maioria dos casos pelo CRT‐D6,12,13. A maioria dos doentes que implantou CRT tinha bloqueio completo de ramo esquerdo, com QRS alargado, de duração ≥ 130ms (87%), sugerindo que em Portugal, seguimos indicações de classe I para estes dispositivos11. Existe no entanto uma pequena percentagem de implantações que correspondem a recomendações de nível II, o que não nos parece ser atribuível a condicionamentos financeiros mas a deficiências na organização dos cuidados de insuficiência cardíaca, na definição dos fluxos dos doentes ou na sua referenciação14. Torna‐se assim necessária maior colaboração entre as diversas áreas de tratamento da insuficiência cardíaca, com a criação de protocolos de referenciação e de equipas multidisciplinares entre os vários níveis de cuidados de insuficiência cardíaca em Portugal.
A qualidade do esquema de tratamento farmacológico, da indicação, implantação de dispositivos e seguimento dos doentes com insuficiência cardíaca, nos centros nacionais, pode‐se ter traduzido na baixa mortalidade encontrada (apenas 3,6% no seguimento ao ano) assim como no número de reinternamentos no mesmo período (11%). O registo europeu de insuficiência cardíaca, ESC‐HF‐LT (European Society of Cardiology Heart Failure Long‐Term) Registry, mostrou taxas de mortalidade ao ano mais elevadas (6,4%) e mais hospitalizações por IC ao ano (9,9%), numa população de doentes com IC crónica seguidos em ambulatório com FEVE média de 37 e 75% em classe NYHA I‐II15,16. A menor mortalidade no nosso estudo poderá estar em parte relacionada com a perda de seguimento de alguns dos doentes, que poderão eventualmente ter falecido. Por outro lado, as populações dos dois registos são totalmente diferentes, uma vez que a do nosso estudo incluiu apenas doentes com dispositivos e disfunção ventricular esquerda grave enquanto no ESC‐HF‐LT Registry foram incluídos todos os tipos de IC crónica e, apesar do elevado número de doentes com FEVE deprimida, a taxa de CRT e CDI foi inferior ao expetável. Verificando‐se uma taxa de implantação de CRT/CDI muito menor que no nosso estudo, é coerente que o ESC‐HF‐LT Registry, ao abordar uma população indiscriminada com IC, apresente mortalidade e reinternamento significativamente superiores.
Como seria de esperar, verificou‐se tendência para maior mortalidade e número de reinternamentos nos doentes isquémicos relativamente aos não‐isquémicos. Também foi coerente que a ocorrência de internamento no último ano identificasse os doentes mais graves, tendo sido preditor independente de mortalidade e de reinternamento cardiovascular. O outro preditor independente de morte ao ano, o IMC, questiona o debate sobre o fenómeno do efeito paradoxal da obesidade na IC e no risco da mortalidade global e cardiovascular17‐19.
O procedimento mais complexo da implantação dos CRT explica o maior número de complicações e de reintervenção nos doentes com ressincronizadores, à semelhança de estudos anteriores20. Para além disso, o sexo feminino foi também um preditor de complicações relacionadas com o dispositivo, atribuíveis a razões como a diferente anatomia e a menor superfície corporal21,22.
Os resultados da implantação de CRT podem ser considerados bons a nível funcional, tendo‐se observado melhoria da classe da NYHA em 62% dos doentes, independentemente da etiologia isquémica. Estes resultados foram sobreponíveis a outros estudos que mostraram uma melhoria da classe NYHA entre 60‐70% com o uso de CRT quando comparado com o uso de terapêutica médica6,23.
Em contraste com os estudos aleatorizados publicados anteriormente24,25, o Síncrone sugere que a ecocardiografia, através da avaliação da dessincronia intraventricular, pode desempenhar algum papel como preditor da resposta dos doentes à implantação de CRT. É de notar que os nossos resultados se aplicam a uma população em que a maioria tem padrão de bloqueio de ramo esquerdo com complexos QRS muito alargados, diferente, portanto da do estudo Echo‐CRT24. Por outro lado, ao contrário do verificado no estudo PROSPECT25, em que a resposta ao CRT foi avaliada por um score clínico e pela redução do volume telesistólico do ventrículo esquerdo, no Síncrone foi apenas utilizado como preditor de resposta a melhoria da classe funcional NYHA. Este achado poderá resultar de uma maior consciencialização dos ecocardiografistas (após os resultados do estudo PROSPECT) para a necessidade de maior precisão nas medições efetuadas e de uma mais rigorosa seleção dos parâmetros de dessincronia utilizados.
A corroborar este conceito, vários estudos recentes têm vindo a mostrar mais‐valia da ecocardiografia como preditor de melhoria clínica destes doentes26‐28.
Limitações do estudoO estudo Síncrone apresenta diversas limitações, nomeadamente o facto de ter sido puramente observacional, não interferindo nas práticas clínicas dos diversos centros, as quais podem não ter sido uniformes, com eventual influência nos resultados finais.
A distribuição assimétrica dos doentes incluídos pelos diversos centros, embora corresponda à realidade nacional, pode ter condicionado algum enviesamento dos resultados, dado o predomínio de alguns centros. O período de inclusão dos doentes foi prolongado em relação ao estipulado inicialmente e houve perda do seguimento de 67 doentes, o que constituiu uma limitação, no entanto, os resultados obtidos correspondem certamente a uma prática clínica qualificada, coerente com os avanços que se foram verificando na forma de abordar os doentes com insuficiência cardíaca.
Temos de levar em conta que se trata de um registo com uma participação voluntária e não remunerada dos Centros. Foi sempre reiterado o comprometimento dos Centros e a maturidade demonstrada na participação neste registo foi independente da sua dimensão. Os dados devem ser analisados de uma forma global e mostram a importância dos sistemas implantados no tratamento de doentes com disfunção ventricular esquerda, sendo concordantes com os de outros estudos multicêntricos.
Em relação à ecocardiografia, o reduzido número de doentes com avaliação basal ecocardiográfica completa e a simplicidade e subjetividade do endpoint, constituem limitações do trabalho.
ConclusõesSendo um estudo observacional, os dados recolhidos pelo Síncrone permitem concluir que, nos centros nacionais que tratam os doentes com insuficiência cardíaca e FEVE diminuída com recurso a dispositivos eletrónicos implantáveis, quer a terapêutica farmacológica quer as indicações para a implantação de dispositivos estão de acordo com os mais exigentes padrões internacionais, refletidos nas recomendações europeias, destacando‐se a opção na grande maioria dos casos pela utilização do CRT‐D.
Também os resultados das implantações dos CRT podem ser considerados sobreponíveis aos da literatura internacional, com melhoria significativa da classe funcional, independentemente de a etiologia ser ou não isquémica. Refletindo a qualidade do trabalho clínico desses Centros, observou‐se uma mortalidade global inferior à dos registos internacionais.
Por fim, um dado interessante e controverso do estudo foi a observação de que a presença de dessincronia intraventricular no ecocardiograma foi preditor da resposta à terapêutica de ressincronização, contrariando a tendência, verificada após o estudo PROSPECT25, para desvalorização deste método como meio de previsão da resposta dos doentes à implantação de ressincronizadores.
FinanciamentoO estudo Síncrone beneficiou de uma bolsa de investigação (não condicionada) atribuída pela firma Boston Scientific Portugal ‐ Dispositivos Médicos, Lda. que não teve qualquer interferência na definição do protocolo do estudo, na colheita e análise dos dados ou na elaboração do manuscrito.
Conflitos de interesseOs autores declaram não ter existido qualquer conflito de interesses a nível da sua participação no estudo Síncrone.
Os autores agradecem aos Investigadores principais e colaboradores dos Centros participantes (ver lista nomaterial suplementar on line 5), à firma de dispositivos médicos Boston Scientific Portugal pela concessão de uma bolsa de investigação (não condicionada) para a realização do estudo; à KeyPoint, Consultoria Científica Lda, pelo apoio a nível da elaboração do protocolo, tratamento dos dados e monitorização do estudo e à Infortucano pelo apoio informático na criação da base de dados centralizada, acessível aos Centros através da Internet.