Informação da revista
Vol. 40. Núm. 8.
Páginas 525-536 (Agosto 2021)
Visitas
3911
Vol. 40. Núm. 8.
Páginas 525-536 (Agosto 2021)
Artigo Original
Open Access
Impacto prognóstico do défice de ferro nas síndromes coronárias agudas
Prognostic impact of iron deficiency in acute coronary syndromes
Visitas
3911
Carina Silvaa, Juliana Martinsb, Isabel Camposb, Carina Arantesb, Carlos Galvão Bragab, Nuno Saloméb, António Gasparb, Pedro Azevedob, Miguel Álvares Pereirab, Jorge Marquesb, Catarina Vieirab,
Autor para correspondência
Katarinafvieira@gmail.com

Autor para correspondência.
a Serviço de Medicina Interna, Hospital Santa Maria Maior, Barcelos, Portugal
b Serviço de Cardiologia, Hospital de Braga, Braga, Portugal
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Resume
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Figuras (4)
Mostrar maisMostrar menos
Tabelas (7)
Tabela 1. Diferenças nas características basais entre os doentes incluídos e excluídos
Tabela 2. Comparação das características basais entre os dois grupos
Tabela 3. Comparação da apresentação clínica entre os grupos
Tabela 4. Dados angiográficos e ecocardiográficos por grupos
Tabela 5. Comparação de evolução intra‐hospitalar entre os grupos
Tabela 6. Comparação dos eventos ocorridos no follow‐up entre os grupos
Tabela 7. Fatores preditores independentes de morte/IC grave
Mostrar maisMostrar menos
Resumo
Introdução

O défice de ferro (DeF) é uma condição prevalente em doentes com patologia cardíaca. Naqueles com insuficiência cardíaca (IC) demonstrou‐se que esse défice se associa a pior prognóstico. Existem poucos dados na literatura relativamente ao impacto prognóstico do DeF nas síndromes coronárias agudas (SCA), sendo este o principal objetivo deste estudo.

Métodos

Estudo observacional retrospetivo que incluiu 817 doentes admitidos por SCA. Definiram‐se dois grupos de acordo com a presença (n = 298) ou ausência de DeF (n = 519) à admissão. O evento clínico estudado foi a ocorrência de morte ou IC grave em longo prazo. Calcularam‐se os preditores independentes de prognóstico com base na análise de regressão logística.

Resultados

Verificou‐se que 36% dos doentes tinham DeF. Estes doentes apresentaram maior taxa de mortalidade (p = 0,004) e de IC (p = 0,011) durante o follow‐up, bem como maior taxa de readmissões hospitalares (p = 0,048).

O DeF foi preditor independente de morte ou IC grave no follow‐up, a par da anemia, da disfunção do ventrículo esquerdo, da disfunção renal e da ausência de revascularização.

Além disso, o DeF permitiu estratificar adicionalmente o prognóstico dos doentes sem anemia em termos de ocorrência de morte ou IC grave e aqueles com classes de Killip mais baixas (≤ 2) em termos da ocorrência de morte.

Conclusão

O DeF foi um fator preditor independente de morte ou IC grave nos doentes admitidos com SCA e permitiu estratificar adicionalmente aqueles sem anemia ou com classes de Killip ≤ 2 à admissão.

Palavras‐chave:
Défice de ferro
Síndromes coronárias agudas
Prognóstico
Abreviaturas:
AI
AVC
BAV
CCS
CTFF
CV
DeF
EAM
EAMcSST
EAMsSST
FA
FC
FEVE
FRCV
IC
IDef
NYHA
SCA
ST
TAD
TAS
TFG
VD
VE
Abstract
Background

Iron deficiency (IDef) is a prevalent condition in patients with heart disease and in those with heart failure (HF). Evidence has shown that this deficit is associated with a worse prognosis. There is only a small amount of data in the literature regarding the prognostic impact of IDef in acute coronary syndromes (ACS), which is the main objective of this study.

Methods

Observational, retrospective study which included 817 patients admitted for ACS. Two groups were defined according to the presence (n = 298) or absence of IDeF (n = 519) on admission. The clinical event under study was the occurrence of death or severe HF in long term. Independent predictors of prognosis were determined with logistic regression analysis.

Results

36% of patients had IDef. These patients had a higher mortality rate (p = 0.004), higher incidence of HF (p = 0.011) during follow‐up and a higher rate of hospital readmissions (p = 0.048).

IDef was an independent predictor of death or severe HF in follow‐up, along with anemia, left ventricular dysfunction, renal dysfunction and the absence of revascularization.

Besides, IDef also enabled us to further stratify the prognosis of patients without anemia based on the occurrence of death or severe HF and those with lower Killip classes (≤2) based on the occurrence of death.

Conclusion

IDef was an independent predictor of death or severe HF in patients admitted with ACS and enabled additional stratification for those without anemia on admission and in those with Killip classes ≤2.

Keywords:
Iron deficiency
Acute coronary syndrome
Prognosis
Texto Completo
Introdução

O ferro é um micronutriente essencial em múltiplas funções celulares. Além do seu papel crítico na eritropoiese, intervém também no transporte de oxigénio, na resposta celular imunológica, adquirindo ainda particular importância ao nível mitocondrial, catalisando reações enzimáticas e regulando o metabolismo oxidativo1–6. A homeostasia do metabolismo do ferro está dependente de diversos mecanismos, sendo este obtido de duas fontes principais, a dieta e a reciclagem de eritrócitos senescentes7.

O ferro obtido pela dieta é absorvido ao nível do jejuno através de um transportador específico1,3,8. Quando o organismo necessita de ferro, este é exportado para a circulação através da ferroportina, ligando‐se à transferrina de forma a poder ser transportado no plasma1,3,8. O ferro não utilizado é armazenado no fígado, baço e na medula óssea sob a forma de ferritina1,3,8.

A ferritina está envolvida em diversos processos celulares, tanto fisiológicos como patológicos, é utilizada frequentemente como marcador sérico das reservas de ferro e, em situações de deficiência do ferro, tem um papel importante tanto no diagnóstico como no seguimento9–12.

A hepcidina é um regulador hormonal da homeostasia do ferro, é capaz de inibir a ferroportina, diminuindo a absorção do ferro ao nível gastrointestinal e, como consequência, este deixa de ser libertado pelos macrófagos e hepatócitos, o que conduz à diminuição da sua concentração no sangue e da disponibilidade para o metabolismo celular1,5,7,11,13.

O DeF é uma condição comum, podendo ser classificada como absoluta ou funcional1,5,13. O DeF absoluto é causado pela depleção dos depósitos de ferro, tem como possíveis causas a insuficiente ingestão, a má absorção gastrointestinal e/ou hemorragias; traduzindo‐se em níveis de ferritina inferiores a 100 ug/L[10,8,13]. O DeF funcional é resultado da diminuição da biodisponibilidade do ferro face à demanda, apesar de reservas com níveis adequados, devido ao aumento de produção de hepcidina1,5,8,13. Normalmente traduz‐se em níveis de ferritina entre 100‐299 ug/L e saturação de transferrina (ST) inferior a 20%1,8. A anemia pode ser resultado da depleção das reservas de ferro. No entanto, em inúmeras situações, apesar da diminuição daquelas reservas, os valores de hemoglobina encontram‐se em níveis considerados normais3. É necessária uma grande diminuição das reservas de ferro para que os níveis de hemoglobina atinjam níveis compatíveis com anemia3.

Níveis adequados de ferro adquiriram particular importância quando se verificou que tanto o seu défice como o seu excesso alteram as funções intracelulares, principalmente no nível das mitocôndrias, conduzindo a um maior stress oxidativo e a um desarranjo do metabolismo energético4,8,11.

As células com elevadas necessidades energéticas, como é o caso dos cardiomiócitos, possuem vias de sinalização adicionais em relação às células de armazenamento, aumentando a reabsorção de ferro e diminuindo o seu fluxo extracelular aquando da presença de défice1,3,4.

A fisiopatologia associada ao remodeling cardíaco no contexto de DeF ainda não está bem definida. No entanto, verificou‐se que, em ratinhos com DeF, há um aumento das dimensões do ventrículo esquerdo (VE) associado a alterações mitocondriais e da organização dos sarcómeros14,15. Além disso, a anemia com DeF causa hipoxia e fibrose cardíacas, fatores que também contribuem para a disfunção cardíaca14.

Os distúrbios do metabolismo do ferro são comuns em doentes com patologias cardíacas4,16,17. Dessas, a mais amplamente fundamentada é a insuficiência cardíaca crónica (ICC) e, nestes doentes, a causa mais comum de anemia é o DeF14,16,18,19. Segundo as recomendações atuais, todos estes doentes devem realizar estudo analítico que inclua o ferro sérico, transferrina sérica, ST e ferritina, independentemente da presença ou ausência de anemia, visto que o DeF pode estar presente muito anos antes do desenvolvimento desta4,5,20,21. O papel do ferro nesta patologia tem sido amplamente estudado nos últimos anos, estando já descrito que, quanto maior for o défice deste, mais comuns e mais graves são os eventos cardiovasculares adversos5,22.

A suplementação de ferro endovenosa está indicada aos doentes com ICC com fração de ejeção reduzida que apresentem défice de ferro tanto absoluto como funcional5,18,21,23. Apesar de poder ser considerada a suplementação de ferro por via oral, sobretudo se a condição não for aguda, instável ou sintomática, foi demonstrada a superioridade da suplementação endovenosa em relação à oral5,6,22. Esta superioridade prende‐se sobretudo com a interferência da inflamação da ICC na absorção do ferro oral (pela alteração provocada nas ações da hepcidina e ferroportina). Já foi comprovado que nos paciente com ICC com fração de ejeção reduzida, independentemente da presença de anemia, beneficiavam com a administração de carboximaltose férrica, apresentando melhoria da classe funcional NYHA e da capacidade de exercício2,8,18,21,23,24.

As síndromes coronárias agudas (SCA) fazem parte das mais frequentes causas de morte em todo o mundo25. São situações com um quadro clínico agudo compatível com isquemia miocárdica, podendo resultar em necrose dos cardiomiócitos26. A sua apresentação pode assumir várias formas; enfarte agudo do miocárdio com ou sem supradesnivelamento do segmento ST (EAMcSST ou EAMsSST) ou angina instável (AI). No entanto, todas potencialmente fatais27,28.

Ao contrário do que se tem verificado relativamente à ICC, são poucos os dados na literatura relativamente ao papel do DeF no contexto das SCA. Tendo em conta a prevalência desta entidade e a morbimortalidade a ela associada, torna‐se relevante avaliar até que ponto os distúrbios no metabolismo do ferro têm implicações prognósticas nestes doentes16,29.

O objetivo principal deste projeto de investigação foi determinar a prevalência e o impacto prognóstico do DeF nos doentes com síndromes coronárias agudas avaliando a ocorrência de morte ou desenvolvimento de IC grave. Pretendeu‐se ainda avaliar se o DeF acrescenta poder preditivo adicional na estratificação de risco dos doentes com SCA independentemente da presença de anemia.

Métodos

Foi realizado um estudo observacional, de desenho longitudinal, com colheita de dados retrospetiva. Tem um componente descritivo e um componente analítico.

População e amostra em estudo

A população do estudo incluiu todos os doentes internados numa unidade coronária com o diagnóstico de SCA admitidos entre julho de 2013 e junho de 2015.

Foram excluídos deste projeto todos os doentes portadores de: doença inflamatória crónica, patologia hepática crónica, doença renal crónica (DRC) terminal (estadio V da Classificação da Kidney Disease Outcomes Initiative), tumores malignos e/ou a realizar suplementação de ferro ou de eritropoetina. Estes critérios foram utilizados devido às alterações que estas condições provocam ao nível da ferritina e da eritropoiese15,30. Foram ainda excluídos os doentes sem dados analíticos relativamente aos níveis de ferro sérico, ferritina e capacidade total de fixação do ferro (CTFF).

Recolha de dados

Os doentes foram identificados através do número de processo, constituído por um código numérico. Posteriormente foi‐lhes atribuído um novo código de modo a garantir o anonimato.

A informação clínica recolhida incluiu dados demográficos e antropométricos, antecedentes pessoais (nomeadamente fatores de risco cardiovascular [FRCV], patologia cardiovascular [CV] prévia, cirurgia cardíaca prévia e/ou cateterismo de intervenção, patologia renal ou hepática, neoplasia, doença inflamatória crónica), medicação habitual (antiagregantes plaquetários, hipocoagulantes, anti‐hipertensores, antidislipidémicos, antianginosos), avaliação clínica (sinais e sintomas), dados analíticos (hemograma, leucograma, bioquímica, parâmetros inflamatórios, função renal, parâmetros da cinética do ferro), outros métodos complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT) (cateterismo cardíaco e ecocardiograma), tratamento realizado (terapêutica instituída e procedimentos realizados), evolução clínica durante o período de internamento e durante o período de follow‐up (nomeadamente eventos cardiovasculares major). Não foi feita avaliação da terapêutica no follow‐up.

Foi realizada a colheita de sangue para determinação dos níveis séricos de ferro, ferritina e CTFF nas primeiras 24 horas de internamento. Para obter a ST, esta foi calculada através da seguinte fórmula: ST = Ferro Sérico/CTFF x10011,19–21.

O DeF foi definido como ferritina < 100μg/l ou ferritina > 100μg/l e < 300μg/l e ST < 20%, estando desta forma contemplado tanto o défice absoluto como o funcional5,23. A anemia foi definida como hemoglobina < 13g/dl para os homens e < 12g/dl para as mulheres3,13,17.

Os dados obtidos foram registados em tabela de EXCEL® Microsoft, tendo sido posteriormente inseridos e processados no software IBM® Statistical Package for the Social Science (SPSS®) versão 22.

Análise de dados

Os doentes incluídos e sem critérios de exclusão foram divididos em dois grupos de acordo com a presença ou ausência de défice de ferro.

Para realizar a caracterização da amostra e comparar os grupos em estudo foi utilizada estatística descritiva. As variáveis categóricas foram expressas como percentagens e as variáveis contínuas como médias ± desvio‐padrão ou mediana, valores máximo e mínimo.

Para avaliar a normalidade foi aplicado o teste de Kolmogorov‐Smirnov. Tendo em conta o número de doentes da amostra e o número de doentes de cada grupo, analisou‐se o coeficiente de achatamento e o enviesamento. Valores de achatamento e enviesamento próximos de 0 permitem assumir uma distribuição normal31.

Para comparar os grupos e avaliar as diferenças entre eles, foi utilizado, para as variáveis contínuas, o teste t de Student para amostras independentes (teste paramétrico) ou o teste de Mann‐Whitney (teste não paramétrico), após se ter verificado que a variável dependente apresentava ou não uma distribuição normal, respetivamente. Como medida de effect size foi utilizado o d de Cohen para o teste de t de Student e r para o teste de Mann‐Whitney. Foi considerado para o d de Cohen um efeito pequeno para valores próximos de 0,2, médio para 0,5 e grande para 0,8. Para o r foi considerado um efeito pequeno para valores próximos de 0,1, médio para 0,3 e grande para 0,5.

De forma a comparar os grupos quanto às variáveis categóricas foi utilizado o teste qui‐quadrado (χ2). Como se tratavam de variáveis dicotómicas, na sua maioria, obtiveram‐se tabelas 2x2. A interpretação dos resultados dependeu do pressuposto – percentagem (%) de células com n < 5. Foram reportados os valores da correção de continuidade nas tabelas 2x2 e o Pearson Chi‐Square nas tabelas superiores a 2x2. Como medida de effect size foi utilizado o coeficiente de Phi (Φ). Valores próximos de 0,1 representam um efeito pequeno, de 0,3 um efeito médio e de 0,5 um efeito grande.

Foi utilizada a regressão logística binária para determinar possíveis fatores preditores de morte ou IC grave. Todos os preditores inseridos no modelo demonstraram relação estatisticamente significativa com o evento morte ou IC grave na análise univariada. O número de variáveis inseridas no modelo teve ainda em conta o número de eventos ocorridos.

Foram utilizadas as curvas de Kaplan‐Meyer para estimar a sobrevivência dos doentes com SCA e o log rank test para avaliar as diferenças entre os grupos.

Foi ainda avaliado se o DeF acrescenta poder preditivo adicional na estratificação de risco (morte total e morte total ou desenvolvimento de IC grave, definida como classes Killip III‐IV no internamento e/ou NYHA III‐IV no follow‐up) dos doentes com SCA com anemia versus sem anemia bem como com classes de Killip mais baixas (≤ 2) versus classes de Killip mais altas (≥3).

Os resultados foram considerados estatisticamente significativos para valores de p < 0,05 e um intervalo de confiança de 95%.

ResultadosCaracterização da amostra

Durante o período de julho de 2013 a junho e 2015 foram admitidos 976 doentes com o diagnóstico de SCA na unidade coronária. Foram excluídos os doentes com doença inflamatória crónica (n = 26), patologia hepática (n = 2), DRC terminal (n = 2), tumores malignos (n = 43) e/ou a realizar suplementação de ferro ou eritropoetina (n = 3) aquando da admissão. Foram ainda excluídos os doentes sem dados analíticos relativamente aos níveis de ferro sérico, ferritina e CTFF (n = 86). Alguns doentes apresentavam mais do que um critério de exclusão, perfazendo 159 excluídos. A comparação das características basais entre os doentes incluídos no estudo e os excluídos encontra‐se sumarizada na Tabela 1.

Tabela 1.

Diferenças nas características basais entre os doentes incluídos e excluídos

  Doentes incluídos(n = 817)  Doentes excluídos(n = 159) 
Demográfico
Idade (anos)  63±13  66±13  0,012 
Sexo Masculino (%)  78,6  80,5  0,662 
FRCV (%)
Diabetes  27,5  34,6  0,089 
Hipertensão arterial  61,2  64,8  0,447 
Dislipidemia  55,3  55,3  1,000 
Fumador ativo  31,7  25,8  0,166 
Ex‐fumador  23,3  26,6  0,426 
História CV (%)
EAM  13,2  17,6  0,181 
Angina  12,7  17,6  0,117 
AVC  7,2  10,7  0,183 
Doença arterial periférica  3,4  8,8  0,004 
Doença carotídea  1,5  0,0  0,253 
ICP  9,9  11,9  0,528 
CABG  4,3  6,3  0,370 
Fibrilhação auricular  4,7  6,3  0,501 
Patologia valvular  2,9  7,5  0,003 
CMD  11,0  13,8  0,558 
DRC  3,7  10,7  <0,001 
Medicação habitual (%)
AAS  23,1  32,7  0,014 
Clopidogrel  8,5  11,9  0,209 
Hipocoagulantes  3,8  4,4  0,890 
IECA/ARA  32,3  41,5  0,031 
Bloqueador‐Beta  23,0  22,0  0,864 
Estatina  36,4  45,3  0,042 
Bloqueador canais cálcio  20,0  20,8  0,902 
Diurético  23,4  32,1  0,027 
Antagonista aldosterona  1,7  1,9  0,879 
Ivabradina  1,8  1,3  0,858 
Nitrato  6,0  6,9  0,793 
Apresentação clínica (%)
EAMcSST  41,5  37,1  0,346 
EAMsSST  53,2  56,0  0,586 
Angina instável  5,3  6,9  0,475 

Foram incluídos 817 doentes, 78,6% do sexo masculino e com uma média de 63 ± 13 anos. O FRCV mais frequente foi a HTA (61,2%), seguida pela dislipidemia (55,3%); 13,2% dos indivíduos da amostra já tinham antecedentes de EAM. A forma de apresentação da SCA mais comum foi EAMsSST (53,2%). É de realçar que as diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos se relacionam maioritariamente de uma forma direta com os critérios de exclusão.

Caracterização dos dois grupos da amostra

O Grupo 1 era constituído por 519 indivíduos (64%) que não apresentavam DeF e o Grupo 2 por 298 indivíduos (36%) que apresentavam DeF. Relativamente aos doentes com DeF, em 165 (55%) este era absoluto e em 133 (45%) funcional. A comparação relativamente às características demográficas, a presença de FRCV, a história CV e a medicação habitual entre os dois grupos encontra‐se na Tabela 2.

Tabela 2.

Comparação das características basais entre os dois grupos

  Doentes sem défice de ferro (n = 519)  Doentes com défice de ferro (n = 298) 
Demográfico
Idade (anos)  62±13  65±13  0,002 
Sexo masculino (%)  86,5  64,8  <0,001 
FRCV (%)
Diabetes  22,0  37,2  <0,001 
Hipertensão arterial  57,6  67,4  0,007 
Dislipidemia  54,5  57,1  0,525 
Fumador ativo  35,8  24,5  0,001 
Ex‐fumador  23,8  22,3  0,707 
História CV (%)
EAM  11,4  16,4  0,051 
Angina  11,6  14,8  0,225 
AVC  5,8  9,7  0,051 
Doença arterial Periférica  2,5  5,0  0,087 
Doença carotídea  2,2  0,3  0,081 
ICP  8,9  11,7  0,228 
CABG  2,9  6,7  0,016 
Fibrilhação auricular  4,0  5,7  0,362 
Patologia valvular  1,7  5,0  0,082 
CMD  8,7  15,5  0,051 
DRC  3,3  4,4  0,547 
Medicação habitual (%)
AAS  20,2  28,5  0,009 
Clopidogrel  6,9  11,1  0,053 
Hipocoagulantes  2,3  6,4  0,006 
IECA/ARA  27,2  41,6  <0,001 
Bloqueador‐Beta  21,0  26,5  0,086 
Estatina  35,3  38,6  0,381 
Bloqueador canais cálcio  19,1  21,8  0,396 
Diurético  19,7  30,2  0,001 
Antagonista aldosterona  1,2  2,7  0,180 
Ivabradina  1,3  2,7  0,272 
Nitrato  4,6  8,7  0,028 

A população do Grupo 1 apresentava uma média de 62 ± 13 anos, a população do Grupo 2 era significativamente mais envelhecida, apresentando uma média de 65 ± 13 anos (t(816)=‐3,141, p = 0,002 d = ‐0,230). No Grupo 1 eram mais frequentemente do sexo masculino (χ2(1, n = 817) = 51,908, p < 0,001, Φ=‐0,255).

O FRCV mais comum foi a hipertensão arterial (HTA) em ambos os grupos, 57,6% no Grupo 1 e 67,4% no 2. Observou‐se uma maior prevalência de HTA e diabetes no grupo 2 relativamente ao grupo 1 (χ2(1, n = 817) = 7,309, p = 0,007, Φ=0,097 e χ2(1, n = 817) = 21,398, p < 0,001, Φ=0,165, respetivamente). O Grupo 1 apresentou maior prevalência de fumadores ativos (χ2(1, n = 817) = 10,729, p = 0,001, Φ=‐0,117). Os restantes FRCV foram semelhantes entre os grupos.

A história CV dos doentes de ambos os grupos foi semelhante. No entanto, o Grupo 2 já tinha sido submetido a cirurgia de revascularização miocárdica (CABG) mais frequentemente (χ2(1, n = 817) = 5,842, p = 0,016, Φ=0,091). Os doentes do Grupo 2 estavam medicados mais frequentemente com ácido acetilsalicílico (AAS) (χ2(1, n = 817) = 6,836, p = 0,009, Φ=0,094), hipocoagulantes (χ2(1, n = 817) = 7,487, p = 0,006, Φ=0,102), inibidores da enzima de conversão da angiotensina/antagonistas dos recetores da angiotensina II (IECA/ARA) (χ2(1, n = 817) = 17,366, p < 0,001, Φ=0,149), diurético (χ2(1, n = 817) = 11,037, p = 0,001, Φ=0,119) e nitratos (χ2(1, n = 817) = 4,849, p = 0,028, Φ=0,082).

Apresentação clínica

A comparação dos dados relativos à apresentação clínica dos doentes de ambos os grupos encontra‐se sumarizada na Tabela 3.

Tabela 3.

Comparação da apresentação clínica entre os grupos

  Doentes sem défice de ferro (n = 519)  Doentes com défice de ferro (n = 298) 
Tipo de SCA (%)
EAMcSST  43,9  36,9  0,059 
EAMsSST  50,6  58,1  0,044 
Angina instável  5,5  5,0  0,952 
Sinais vitais
TAS (mmHg)  132 ± 27  130 ± 27  0,358 
TAD (mmHg)  78 ± 16  77 ± 15  0,202 
FC (bpm)  77 ± 18  77 ± 18  0,754 
Killip (%)
Classe II‐IV  12,1  21,8  < 0,001 
Classe III‐IV  2,7  6,4  0,017 
Anemia (%)  8,5  20,1  < 0,001 
TFG < 60ml/min (%)  17,9  30,2  < 0,001 
P‐BNP à admissão  2077,4  3878,8  < 0,001 

A forma mais comum de apresentação da SCA foi EAMsSST, foi mais frequente no grupo 2 (χ2(1, n = 817) = 4,061, p = 0,044, Φ=0,073)

Os dados referentes aos sinais vitais à admissão foram semelhantes entre os grupos; no entanto, os doentes do Grupo 2 apresentaram mais frequentemente classes Killip superiores (χ2(1, n = 817) = 12,685, p < 0,001, Φ=0,128), anemia e taxa de filtração glomerular (TFG) inferior a 60ml/min (χ2(1, n = 817)=22,116, p < 0,001, Φ=0,168 e χ2(1, n = 817) = 15,730, p < 0,001, Φ=0,142).

Resultados MCDTs

Os dados angiográficos e ecocardiográficos estão expostos na Tabela 4.

Tabela 4.

Dados angiográficos e ecocardiográficos por grupos

  Doentes sem défice de ferro(n = 519)  Doentes com défice de ferro (n = 298) 
Cateterismo realizado (%)  99,2  98,7  0,672 
Doença coronária (%)
Sem doença  1,9  1,7  1,000 
1 vaso  57,5  47,4  0,008 
2 vasos  24,9  24,2  0,358 
3 vasos  16,5  26,6  0,001 
>2 vasos  40,4  49,8  0,012 
ICP Primária (%)  55,0  51,8  0,489 
Revascularização (%)  87,7  81,5  0,022 
ICP  81,5  73,7  0,012 
ICP 2° tempo  10,4  10,9  0,902 
CABG  8,7  10,5  0,468 
Ecocardiograma
FEVE (média ± desvio‐padrão)  47,8 ± 8,8  42,9 ± 10,3  < 0,001 
Depressão da função do VE (FEVE < 50%) (%)  60,9  66,4  0,136 
Depressão moderada‐severa do VE (FEVE < 40%) (%)  22,3  34,2  < 0,001 
Alterações da cinética VE (%)  87,5  89,6  0,431 
Função VD (%)  3,1  6,4  0,039 

Não se registaram diferenças significativas relativamente à realização ou não de cateterismo cardíaco nos doentes de ambos os grupos.

Verificou‐se que no Grupo 1 foi mais frequente a doença em apenas 1 vaso (χ2(1, n = 817) = 7,105, p = 0,008, Φ=‐0,097) e no Grupo 2 a doença de 3 vasos (χ2(1, n = 817) = 11,284, p = 0,001, Φ=0,122). Observou‐se ainda que o grupo 1 foi submetido mais frequentemente a procedimentos de revascularização (χ2(1, n = 817) = 5,225, p = 0,022, Φ=‐0,084).

Os doentes com DeF apresentaram mais frequentemente depressão moderada e severa da função do VE (χ2(1, n = 817) = 12,830, p < 0,001, Φ=0,130) e depressão da função do VD (χ2(1, n = 817) = 4,249, p = 0,039, Φ=0,079).

Evolução intra‐hospitalar

Relativamente à terapêutica intra‐hospitalar, verificou‐se uma maior utilização de alguns fármacos no grupo 2, nomeadamente diurético (χ2(1, n = 817) = 18,288, p < 0,001, Φ=0,153), antagonistas da aldosterona (χ2(1, n = 817) = 18,097, p < 0,001, Φ=0,152) e nitratos (χ2(1, n = 817) = 4,348, p = 0,037, Φ=0,076). Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas nos restantes fármacos.

Comparativamente, o Grupo 2 atingiu classes de Killip superiores (χ2(1, n = 817) = 19,255, p < 0,001, Φ=0,156). Não se registaram outras diferenças significativas entre os grupos na ocorrência dos restantes eventos intra‐hospitalares.

Todos os dados relativos à terapêutica e à ocorrência de eventos intra‐hospitalares estão apresentados na Tabela 5.

Tabela 5.

Comparação de evolução intra‐hospitalar entre os grupos

  Doentes sem défice de ferro (n = 519)  Doentes com défice de ferro (n = 298) 
Terapêutica intra‐hospitalar
HNF  38,7  33,9  0,193 
HBPM  60,3  66,1  0,116 
Inibidores IIb/IIIa  8,1  6,4  0,447 
AAS  99,2  99,3  1,000 
Clopidogrel  98,3  99,7  0,156 
Bloqueador‐Beta  89,8  89,6  1,000 
IECA/ARA  92,7  93,6  0,713 
Estatina  98,3  99,0  0,596 
Diuréticos  20,4  34,2  <0,001 
Antagonistas Aldosterona  17,1  30,2  <0,001 
Bloqueador canais cálcio  9,2  10,4  0,679 
Nitratos  14,3  20,1  0,037 
Inotrópicos  3,7  4,4  0,756 
Eventos intra‐hospitalares
Classe Killip (%)       
Classe II‐IV  19,3  33,2  < 0,001 
Classe III‐IV  5,4  9,4  0,042 
IC (%)  18,1  32,2  < 0,001 
Angor (%)  2,5  3,7  0,452 
Reenfarte (%)  1,5  0,0  0,074 
Transfusão (%)  1,0  0,7  0,967 
Morte (%)  1,3  1,0  0,922 
Arritmias malignas (%)  5,2  4,4  0,673 
BAV 2.° e 3.° grau (%)  2,9  4,4  0,453 
Infeção respiratória (%)  4,4  5,4  0,642 
Follow‐up

A informação relativa ao follow‐up dos doentes de ambos os grupos está sumarizada na Tabela 6. O follow‐up médio destes doentes foi de 738,77 dias.

Tabela 6.

Comparação dos eventos ocorridos no follow‐up entre os grupos

  Doentes sem défice de ferro (n = 519)  Doentes com défice de ferro (n = 298) 
Morte (%)  6,3  12,6  0,004 
Causa CV  3,2  4,5  0,424 
Causa não CV  1,8  4,5  0,040 
Causa desconhecida  1,4  3,5  0,086 
AVC (%)  0,8  0,7  1,000 
Reenfarte (%)  4,5  3,8  0,777 
Angor (CCS>I) (%)  4,6  7,0  0,197 
IC (NYHA III‐IV) (%)  5,3  10,5  0,011 
Morte total/IC grave (%)  13,8  25,3  < 0,001 
Readmissões hospitalares  9,8  13,7  0,048 

Os doentes do grupo 2 apresentaram maior taxa de eventos no follow‐up, nomeadamente maior taxa de mortalidade (χ2(1, n = 792) = 8,352, p = 0,004, Φ=0,107) e de incidência de IC com NYHA III‐IV (χ2(1, n = 792) = 6,515, p = 0,011, Φ=0,096). A taxa de readmissões hospitalares foi também superior no grupo com DeF (9,8% versus 13,7%, p = 0,048). A ocorrência de reenfarte, angor e AVC foi semelhante entre os grupos.

Avaliação do prognóstico

Os fatores preditores independentes de prognóstico encontram‐se na Tabela 7. A análise dos fatores associados a morte ou desenvolvimento de IC grave encontra‐se no anexo V.

Tabela 7.

Fatores preditores independentes de morte/IC grave

  SE  X2 Wald  HR  95% CI 
Idade > 60 anos  0,233  0,240  0,942  1,262  0,79‐2,02  0,332 
TFG < 60 ml/min  0,854  0,244  12,264  2,349  1,46‐3,79  < 0,001 
Revascularização  ‐0,558  0,266  4,402  0,572  0,34‐0,96  0,036 
Défice de ferro  0,510  0,207  6,090  1,666  1,11‐2,50  0,014 
Anemia  0,729  0,261  7,815  2,072  1,24‐3,45  0,005 
Disfunção VE  1,477  0,275  28,850  4,381  2,56‐7,51  < 0,001 

O DeF foi preditor independente da ocorrência de morte ou desenvolvimento de IC grave. Os restantes preditores independentes destes eventos foram a disfunção renal (TFG < 60ml/min), a ausência de revascularização, a anemia e a disfunção do VE.

Análise da sobrevivência

Neste estudo, foi possível realizar o seguimento de 97% dos doentes da amostra durante pelo menos um ano. Obtiveram‐se as curvas de sobrevivência de Kaplan‐Meyer dos dois grupos estudados, que se podem observar na Figura 1. Verificou‐se que houve diferença significativa entre os dois grupos estudados relativamente ao tempo de sobrevivência após o evento SCA, foi maior naqueles que não apresentavam DeF (Log‐Rank Test,p = 0,003).

Figura 1.

Curvas de sobrevivência de Kaplan‐Meyer dos dois grupos.

(0,12MB).
Estratificação de risco

A partir da Figura 2, apesar de se ter observado uma maior incidência de morte nos doentes com DeF independentemente da presença ou ausência de anemia, esta diferença não foi estatisticamente significativa.

Figura 2.

Estratificação do risco de mortalidade de acordo com a ausência ou presença de anemia e de défice de ferro.

(0,13MB).

Tal como ilustrado na Figura 3, a presença de DeF permitiu estratificar adicionalmente os doentes sem anemia à admissão (χ2(1, n = 693) = 8,805, p = 0,003, Φ=0,117) relativamente à ocorrência de morte ou IC grave. No entanto, naqueles com anemia, a presença ou ausência de DeF não acrescentou poder preditivo adicional.

Figura 3.

Estratificação do risco de morte ou desenvolvimento de IC grave de acordo com a ausência ou presença de anemia e de défice de ferro.

(0,15MB).

De forma semelhante, a presença de DeF permitiu estratificar adicionalmente os doentes com classes de Killip menores (≤ 2); nesses doentes, a ocorrência de morte foi mais frequente naqueles com DeF (χ2(1, n = 739) = 6,762, p = 0,009, Φ=0,101) (Figura 4). Nos doentes com classes de Killip mais altas (≥ 3), apesar de se ter verificado maior mortalidade nos doentes com DeF, essa diferença não atingiu significado estatístico.

Figura 4.

Estratificação de risco de acordo com a classe Killip e a presença ou ausência de défice de ferro.

(0,14MB).
Discussão

O principal achado deste estudo foi que o DeF foi um fator preditor independente de morte ou IC grave numa população de doentes com SCA.

Também importante foi o facto de a presença de DeF ter permitido estratificar adicionalmente o prognóstico dos doentes sem anemia em termos de ocorrência de morte ou IC grave e aqueles com classes de Killip mais baixas (≤ 2) em termos da ocorrência de morte.

Adicionalmente, este estudo mostrou que o DeF é uma condição prevalente numa população de doentes com SCA.

Os resultados deste estudo vão de encontro ao atualmente conhecido na população de doentes com IC, em que o DeF, independentemente da anemia, se associou a maior morbilidade, número de hospitalizações, mortalidade e pior qualidade de vida2,4,5,18.

Por esse facto, as guidelines atuais de IC recomendam a realização de estudo analítico a todos os doentes com IC, de forma a diagnosticar o DeF e proceder à suplementação de ferro naqueles com fração de ejeção reduzida, preferencialmente endovenosa e com carboximaltose, independentemente da presença de anemia3,21,23.

No que concerne ao estudo do DeF na população de doentes com SCA, os dados na literatura são ainda escassos. Um dos primeiros estudos publicados nesta temática demonstrou que o DeF foi um determinante da capacidade funcional e da qualidade de vida relacionada com a saúde 30 dias após uma SCA17. Trata‐se de um estudo com poucos doentes (n = 244), com follow‐up curto (30 dias) e que se centrou na avaliação da capacidade funcional e qualidade de vida. O DeF foi preditor de capacidade funcional e qualidade de vida, mas não de morbimortalidade cardiovascular17. O presente estudo, em contrapartida, incluiu uma amostra de maiores dimensões, com avaliação de prognóstico em curto e longo prazo (seguimento mínimo de um ano) e demonstrou impacto do DeF na ocorrência de morte, tendo sido preditor independente de morte ou insuficiência cardíaca grave, a par com outros preditores amplamente conhecidos nas SCA 25,26,32–34.

No referido estudo, a prevalência de DeF foi de 46%17, ligeiramente superior à reportada no nosso estudo (36%).

Um dos motivos apontados para alta prevalência de DeF em doentes com SCA, podendo ir até 61% num estudo recente, relaciona‐se com as perdas sanguíneas durante os procedimentos invasivos e a terapêutica antitrombótica16,20,29. Já foi demonstrado que quedas de hemoglobina aumentam a mortalidade, assim como diminuições dos níveis do ferro sérico. No entanto, não foi possível demonstrar o DeF como preditor independente de morte16.

A prevalência de anemia no referido estudo foi 4,5%, inferior à constatada no nosso estudo (12,7%). Sabe‐se que a anemia é uma condição bastante comum em doentes internados, é apontada como um fator de mau prognóstico tanto em doentes com SCA como com IC, é um importante fator preditivo de morte16,21,33,35–40. A sua prevalência à admissão em doentes com SCA parece variar entre 17%‐28%, aumentando ao longo do internamento16.

Nos últimos dois anos, foram publicados alguns estudos avaliando o papel do DeF no prognóstico dos doentes internados com SCA39–42.

Um desses estudos, publicado em 2018, incluiu 836 doentes, 29,1% tinham DeF, superior nas mulheres e em pacientes com anemia41. Após um follow‐up médio de quatro anos, o DeF revelou‐se como um forte preditor de EAM não fatal e mortalidade cardiovascular nesta população de doentes. Após os resultados deste estudo e da evidência já disponível na literatura, nomeadamente da eficácia da suplementação de ferro na IC com fração de ejeção reduzida, os mesmos autores iniciaram um estudo multicêntrico randomizado controlado, o ensaio CAYAN (comprehensive management of iron deficiency in myocardial infarction)43. Neste ensaio, os doentes com EAM clinicamente relevante e DeF concomitante são randomizados para receber carboximaltose férrica ou placebo (solução salina). Todos os pacientes são submetidos a ressonância magnética cardíaca na baseline e follow‐up para avaliar o endpoint primário (variação da fração de ejeção ventricular esquerda na baseline e no quarto mês de follow‐up). De referir que os estudos referidos avaliaram o DeF à data da ocorrência do evento como marco para definição dos grupos com e sem DeF e avaliação dos respetivos prognósticos. Tal como no presente estudo, não foi feita análise da suplementação de ferro no follow‐up e da sua eventual correção, bem como da sua influência no prognóstico em longo prazo, pelo que os resultados deste ensaio poderão vir a ser importantes na mudança de atuação relativamente aos doentes com SCA e défice de ferro.

Num outro estudo publicado em 2019, que incluiu 420 doentes com EAMcSST, avaliou‐se a associação de DeF com a mortalidade intra‐hospitalar e classe Killip 3 e 4. Neste estudo, obteve‐se um resultado paradoxal, em que os doentes com DeF tiveram um melhor prognóstico intra‐hospitalar42.

No presente estudo, a anemia também constituiu um fator de mau prognóstico. No sentido de avaliar se a relação do DeF com o prognóstico era independente da anemia, além da análise de regressão logística já descrita previamente, dividiu‐se a amostra em dois grupos (com anemia e sem anemia à admissão) e comparou‐se a incidência de morte em indivíduos com e sem DeF. Verificou‐se que, independentemente da presença de anemia, os doentes com DeF tinham maior taxa de mortalidade do que os doentes sem défice, mas sem diferenças estatisticamente significativas, resultado possivelmente relacionado com o baixo número de mortes ocorridas na amostra. No entanto, na estratificação do risco de morte ou desenvolvimento de IC grave, o grupo sem anemia mas com DeF apresentou maior taxa de eventos do que os sem DeF. Uma possível explicação para este resultado poderá prender‐se com o facto de o ferro não ter importância apenas ao nível da hematopoiese, mas também condicionar o metabolismo celular devido à sua extensa atuação nas mais variadas reações enzimáticas, na indução de stress oxidativo, podendo mesmo provocar alterações estruturais nos cardiomiócitos, afetando o remodeling ventricular e piorando a função do VE, o que, consequentemente, conduz a pior prognóstico4,8,11,14,15. Este resultado vai de encontro ao já recomendado pelas guidelines de IC, em realizar suplementação de ferro aos doentes com DeF mesmo na ausência de anemia. Na estratificação de risco de morte ou IC grave nos doentes com anemia, verificou‐se maior ocorrência de eventos naqueles com DeF, apesar de não ser estatisticamente significativo.

De forma semelhante, no sentido de estudar o papel do DeF na IC das SCA, dividiu‐se a amostra em dois grupos, os doentes com Classe de Killip I‐II e os com Classe de Killip III‐IV. Foi possível observar que naqueles com Classe de Killip I‐II, o DeF permitiu estratificá‐los adicionalmente relativamente ao risco de morte, com maior taxa de mortalidade naqueles com DeF. Uma das possíveis explicações para este resultado poderá prender‐se com a alterações da resposta celular imunológica desencadeadas pelo DeF, para além dos mecanismos de desarranjo do metabolismo energético já descritos1,3,4,8,11. Este resultado salienta a importância no DeF mesmo na ausência de IC ou IC ligeira na população de doentes com SCA. Nos doentes com Classe de Killip III‐IV, apesar de se verificar uma maior mortalidade naqueles com DeF, este resultado não foi estatisticamente significativo, o que poderá dever‐se ao baixo número de doentes incluído neste grupo e/ou ao baixo número de eventos ocorridos.

Ao contrário das guidelines de IC, as de SCA não recomendam ainda o estudo da cinética do ferro a todos os doentes com esta patologia25,26. Tal facto poderá estar relacionado com a necessidade de estudos clínicos publicados nesta área.

Limitações

Trata‐se de um estudo unicêntrico e retrospetivo com todas as limitações inerentes conhecidas. Adicionalmente, foi efetuado apenas um doseamento dos parâmetros da cinética do ferro, impossibilitando a avaliação da evolução destes no longo do tempo. Além disso, não foi feita avaliação da terapêutica no follow‐up, nomeadamente da eventual suplementação de ferro. Por último, alguns doentes foram excluídos pela ausência de parâmetros da cinética ferro o que pode ser encarado como um viés do estudo.

Conclusão

Este estudo mostrou que o DeF é uma condição prevalente numa população de doentes com SCA e que, nesta população, foi um fator preditor independente de morte ou IC grave. Além disso, o DeF permitiu estratificar adicionalmente o prognóstico dos doentes sem anemia à admissão em termos de ocorrência de morte ou IC grave e daqueles com classes de Killip mais baixas (≤ 2) em termos da ocorrência de morte.

Estes resultados poderão vir a ter impacto na prática clínica, sobretudo se estudos adicionais provarem a melhoria do prognóstico destes doentes após a suplementação com ferro.

Conflitos de interesse

O autor declara não haver conflitos de interesse.

Bibliografia
[1]
C. Wong, A. Ng, L. Kritharides, et al.
Iron Deficiency in Heart Failure: Looking Beyond Anemia. Heart.
Lung and Circulation, 25 (2016), pp. 209-216
[2]
C. Enjuanes, J. Bruguera, M. Grau, et al.
Iron Status in Chronic Heart Failure: Impact on Symptoms Functional Class and Submaximal Exercise Capacity.
Revista Española de Cardiologia, 3 (2016), pp. 247-255
[3]
C.-H. Huang, C.-C. Chang, C.-L. Kuo, et al.
Serum Iron Concentration, but Not Hemoglobin, Correlates with TIMI Risk Score and 6‐Month Left Ventricular Performance after Primary Angioplasty for Acute Myocardial Infarction.
[4]
M. Kasztura, M. Dzięgała, K. Kobak, et al.
Both iron excess and iron depletion impair viability of rat H9C2 cardiomyocytes and L6G8C5 myocytes.
Polish Heart Journal, (2016),
[5]
D. Silverberg, D. Wexler, D. Schwartz.
Is Correction of Iron Deficiency a New Addition to the Treatment of the Heart Failure?.
International Journal of Molecular Sciences, 16 (2015), pp. 14056-14074
[6]
H. Wienbergen, O. Pfister, M. Hochadel, et al.
Usefulness of Iron Deficiency Correction in Management of Patients With Heart Failure [from the Registry Analysis of Iron Deficiency‐Heart Failure (RAID‐HF) Registry].
The American Journal of Cardiology, (2016),
[7]
V. Polin, R. Coriat, G. Perkins, et al.
Iron deficiency: From diagnosis to treatment.
Digestive and Liver Disease, 45 (2013), pp. 803-809
[8]
E.A. Jankowska, S. von Haehling, S.D. Anker, et al.
Iron deficiency and heart failure: diagnostic dilemmas and therapeutic perspectives.
European Heart Journal, 34 (2013), pp. 816-826
[9]
A. Dominguez-Rodriguez, M. Tome, C. Hernandez-Garcia, et al.
Serum ferritin and acute coronary syndrome: A strong prognostic factor?.
International Journal of Cardiology, 152 (2011), pp. 129-130
[10]
A. Dominguez-Rodriguez, P. Abreu-Gonzalez.
Quantification of serum ferritin in the acute coronary syndrome: A puzzle still to be resolved?.
International Journal of Cardiology, 154 (2012), pp. 215
[11]
I.T. Klip, A. Voors, D. Swinkels, et al.
Serum ferritin and risk for new‐onset heart failure and cardiovascular events in the community.
European Journal of Heart Failure, (2016),
[12]
S.-A. You, Q. Wang.
Ferritin in atherosclerosis.
Clinica Chimica Acta, 357 (2005), pp. 1-16
[13]
V. Gil, J. Ferreira.
Anemia e deficiência de ferro na insuficiência cardíaca.
Revista Portuguesa de Cardiologia, 33 (2014), pp. 39-44
[14]
J.E. Toblli, F. Gennaro, C. Rivas.
Changes in Echocardiographic Parameters in Iron Deficiency Patients with Heart Failure and Chronic Kidney Disease Treated with Intravenous Iron. Heart.
Lung and Circulation, 24 (2015), pp. 686-695
[15]
M. Nagao, Y. Matsuo, T. Kamitani, et al.
Quantification of Myocardial Iron Deficiency in Nonischemic Heart Failure by Cardiac T2* Magnetic Resonance Imaging.
The American Journal of Cardiology, 113 (2014), pp. 1024-1030
[16]
E. Uscinska, B. Sobkowicz, A. Lisowska, et al.
Predictors of Long‐Term Mortality in Patients Hospitalized in an Intensive Cardiac Care Unit.
International Heart Journal, 57 (2016), pp. 67-72
[17]
O. Meroño, M. Cladellas, N. Ribas-Banquet, et al.
Iron Deficiency Is a Determinant of Functional Capacity and Health‐related Quality of Life 30 Days After an Acute Coronary Syndrome.
Revista Española de Cardiologia, (2016),
[18]
L.B. Vega, A. Francisco, Z.A. Fiestas, et al.
Estudio de la deficiencia de hierro en pacientes con insuficiencia cardiaca congestiva: Una práctica clínica que precisa mayor atención.
Nefrología, 36 (2016), pp. 249-254
[19]
T.J. Yeo, P.S. Yeo, R.C.C. Wong, et al.
Iron de ciency in a multi‐ethnic Asian population with and without heart failure: prevalence, clinical correlates, functional signi cance and prognosis.
European Journal of Heart Failure, 16 (2014), pp. 1125-1132
[20]
E. Uscinska, B. Sobkowicz, R. Sawicki, et al.
Parameters influencing in‐hospital mortality in patients hospitalized in intensive cardiac care unit: is there an influence of anemia and iron deficiency?.
Internal Emergency Medicine, 10 (2015), pp. 337-344
[21]
P. Ponikowski, A.A. Voors, S.D. Anker, et al.
2016 ESC Guidelines for the diagnosis and treatment of acute and chronic heart failure.
European Heart Journal, (2016),
[22]
B.M. Kaminsky, K.T. Pogue, S. Hanigan, et al.
Effects of Total Dose Infusion of Iron Intravenously in Patients With Acute Heart Failure and Anemia (Hemoglobin < 13g/dl).
The American Journal of Cardiology, 117 (2016), pp. 1942-1946
[23]
T. McDonagh, I. Macdougall.
Iron therapy for the treatment of iron de ciency in chronic heart failure: intravenous or oral?.
European Journal of Heart Failure, 17 (2015), pp. 248-262
[24]
S.D. Anker, J.C. Colet, G. Filippatos, et al.
Ferric Carboxymaltose in Patients with Heart Failure and Iron Deficiency.
The New England Journal of Medicine, 361 (2009), pp. 2436-2448
[25]
G. Steg, S.K. James, D. Atar, et al.
ESC Guidelines for the management of acute myocardial infarction in patients presenting with ST‐segment elevation.
European Heart Journal, 33 (2012), pp. 2569-2619
[26]
M. Roffi, C. Patrono, J.-P. Collet, et al.
2015 ESC Guidelines for the management of acute coronary syndromes in patients presenting without persistent ST‐segment elevation.
European Heart Journal, 37 (2016), pp. 267-315
[27]
D.M. Kolansky.
Acute Coronary Syndromes: morbidity, mortality, and pharmacoeconomic burden.
The American Journal of Managed Care, 15 (2009), pp. 36-41
[28]
F. Sanchis-Gomar, C. Perez-Quilis, R. Leischik, et al.
Epidemiology of coronary heart disease and acute coronary syndrome.
Annals of Translational Medicine, 4 (2016), pp. 256
[29]
O. Meroño, M. Cladellas, N. Ribas-Barquet, et al.
Iron Deficiency in Patients With Acute Coronary Syndrome: Prevalence and Predisposing Factors.
Revista Española De Cardiología, 69 (2016), pp. 615-617
[30]
A.V. Mattioli, L. Bonetti, M. Zennaro, et al.
Prognostic value of iron, nutritional status indexes and acute phase protein in acute coronary syndromes.
Italian Heart Journal, 3 (2002), pp. 194-198
[31]
H.-Y. Kim.
Statistical notes for clinical researchers: assessing normal distribution (2) using skewness and kurtosis.
Restorative Dentistry & Endodontics, 38 (2013), pp. 52-54
[32]
K. Tsujita, E. Nikolsky, A.J. Lansky, et al.
Impact of Anemia on Clinical Outcomes of Patients With ST‐Segment Elevation Myocardial Infarction in Relation to Gender and Adjunctive Antithrombotic Therapy (from the HORIZONS‐AMI Trial).
The American Journal of Cardiology, 105 (2010), pp. 1385-1394
[33]
D. Kansagara, E. Dyer, H. Englander, et al.
Treatment of Anemia in Patients With Heart Disease.
Annals of Internal Medicine, 159 (2013), pp. 746-757
[34]
G. Marenzi, A. Cabiati, E. Assanelli.
Chronic kidney disease in acute coronary syndromes.
World Journal of Nephrology, 1 (2012), pp. 134-145
[35]
A. Steinvil, S. Banai, E. Leshem-Rubinow, et al.
The development of anemia of inflammation during acute myocardial infarction.
International Journal of Cardiology, 156 (2012), pp. 160-164
[36]
S.L. Chierchia.
Inflamación y síndrome coronario agudo.
Revista Española de Cardiologia, 54 (2001), pp. 1135-1140
[37]
Goodnough LT, Comin‐Colet J, Leal‐Noval S, et al. (s.d.). Management of Anemia in Patients with Congestive Heart Failure. American Journal of Hematology.
[38]
K.-H. Shi, H. Tao, J.-X. Wu.
Iron deficiency as a good potential prediction of chronic heart failure.
American Heart Journal., 166. (2013),
[39]
Gonzalez-D’Gregorio, G. Miñana, Núñez, et al.
Iron Deficiency and Long‐Term Mortality in Elderly Patients with Acute Coronary Syndrome.
Biomark Med, 12 (2018), pp. 987-999
[40]
T. Duarte, S. Gonçalves, C. Sá, et al.
Prognostic impact of iron metabolism changes in patients with acute coronary syndrome.
Arquivos Brasileiros de Cardiologia, 111 (2018), pp. 144-150
[41]
T. Zeller, C. Waldeyer, F. Ojeda, et al.
Adverse outcome prediction of iron deficiency in patients with acute coronary syndromes.
Biomolecules, 8 (2018), pp. 60
[42]
N. Cosentino, J. Campodonico, G. Pontone, et al.
Iron deficiency in patients with ST‐segment elevation myocardial infarction undergoing primary percutaneous coronary intervention.
International Journal of Cardiology, 300 (2019), pp. 14-19
[43]
European clinical trials database number 2015‐005744‐34.
Copyright © 2021. Sociedade Portuguesa de Cardiologia
Idiomas
Revista Portuguesa de Cardiologia
Opções de artigo
Ferramentas
en pt

Are you a health professional able to prescribe or dispense drugs?

Você é um profissional de saúde habilitado a prescrever ou dispensar medicamentos

Ao assinalar que é «Profissional de Saúde», declara conhecer e aceitar que a responsável pelo tratamento dos dados pessoais dos utilizadores da página de internet da Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC), é esta entidade, com sede no Campo Grande, n.º 28, 13.º, 1700-093 Lisboa, com os telefones 217 970 685 e 217 817 630, fax 217 931 095 e com o endereço de correio eletrónico revista@spc.pt. Declaro para todos os fins, que assumo inteira responsabilidade pela veracidade e exatidão da afirmação aqui fornecida.