O fator VIII é um cofator procoagulante, que desempenha um papel crucial na cascata da coagulação intrínseca. Níveis elevados podem ser encontrados em cerca de 11% da população geral adulta. Vários estudos têm evidenciado, de forma consistente, que o seu aumento parece ser um fator de risco para tromboembolismo venoso; alguns estudos relatam também uma provável associação com a trombose arterial, nomeadamente a doença arterial coronária e o acidente vascular cerebral.
Os autores apresentam um caso de um doente do género masculino, de 36 anos, com fatores de risco cardiovascular conhecidos, nomeadamente obesidade, tabagismo e dislipidemia mista e com antecedentes pessoais de enfarte agudo do miocárdio aos 26 anos. Internado num serviço de cardiologia por enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST. A coronariografia evidenciou a presença de trombo oclusivo no segmento distal da artéria obtusa marginal, o qual foi aspirado, tendo‐se verificado posteriormente a ocorrência de no reflow. O estudo analítico realizado posteriormente revelou uma elevação dos níveis de fator VIII; sem outras alterações no estudo de trombofilias.
No caso clínico descrito embora o doente apresente vários fatores de risco cardiovascular realça‐se a necessidade de se efetuarem mais estudos sobre o papel do fator VIII na formação de trombo responsável por síndroma coronária aguda e sobre a necessidade de efetuar o seu doseamento perante a evidência de trombo formado. Outra questão pertinente que se levanta é o papel da anticoagulação nestes doentes como parte integrante da terapêutica em contexto de síndroma coronária aguda.
Factor VIII is a clotting factor that plays a crucial role in the coagulation cascade. Above‐normal levels are found in 11% of the general adult population. Various studies have established a causal association between elevated factor VIII and venous thrombosis; some studies also suggest a relation with arterial thrombosis, particularly myocardial infarction and stroke.
We report the case of a 36‐year‐old man with obesity, smoking and dyslipidemia as cardiovascular risk factors and a history of acute myocardial infarction at age 26. He was admitted to the coronary care unit with a diagnosis of ST‐elevation myocardial infarction. Coronary angiography showed a thrombus in the distal segment of the first obtuse marginal artery, which was causing the obstruction. The thrombus was aspirated but there was no reflow. A coagulation study revealed elevated factor VIII; other parameters were normal.
Even though this patient presented several cardiovascular risk factors, we highlight the need for more studies on the effect of elevated factor VIII on thrombus formation leading to acute coronary syndrome. Another important question is the use of oral anticoagulation in these patients as an integral part of the management of acute coronary syndrome.
O equilíbrio entre a formação de fibrina e o processo de fibrinólise é regulado por uma tríade: o fluxo sanguíneo, as alterações na parede vascular e estados de hipercoagulabilidade. Uma alteração num dos fatores pode alterar o equilíbrio, resultando num aumento da formação de fibrina e na formação de trombos oclusivos1.
O fator VIII é um cofator procoagulante, que desempenha um papel crucial na cascata da coagulação intrínseca2. Ele forma um complexo com o fator de Von Willebrand, que o protege da proteólise e o concentra no local da hemostase. Após ativação, o fator VIII dissocia‐se do fator de Von Willebrand e o fator VIIIa gerado liga‐se ao fator IXa, formando um complexo enzimático na superfície membranar que leva à conversão do fator X em fator Xa3 (Figura 1).
Já foi estabelecida uma associação causal entre a elevação do fator VIII e o tromboembolismo venoso em diversas publicações nos últimos anos1,2,4–8. Embora careça ainda de mais estudos, alguns autores parecem evidenciar igualmente um aumento do risco de trombose arterial, nomeadamente de doença arterial coronária e acidente vascular cerebral1,5,9–12.
Caso clínicoOs autores apresentam um caso de um doente do género masculino, de 36 anos, com fatores de risco cardiovascular conhecidos nomeadamente obesidade (índice de massa corporal de 30,5kg/m2), tabagismo e dislipidemia mista e com antecedentes pessoais de enfarte agudo do miocárdio aos 26 anos, com lesão evidenciada por coronariografia no ramo póstero‐lateral direito, tratada por angioplastia de balão (sem colocação de stent).
Recorreu ao serviço de urgência por quadro de dor precordial intensa súbita, com duas horas de evolução, de início após o almoço, com alívio completo dos sintomas após terapêutica com antiagregantes plaquetários, nitratos e morfina. Ao exame objetivo apresentava‐se hemodinamicamente estável e sem alterações relevantes. O eletrocardiograma de 12 derivações evidenciava ritmo sinusal, frequência cardíaca de 60 batimentos por minuto, má progressão das ondas R, supradesnivelamento do segmento ST em V5, V6, DI, DII e avL, onda q em DIII (Figura 2). A avaliação analítica revelou Hb 16,3g/dL, leucócitos 10.100×106/L, plaquetas 207.000x106/L, creatinina 0,9mg/dL, ureia 35,2mg/dL, ionograma sem alterações, troponina I inicial de 0,04ng/mL com posterior elevação para valores >50ng/mL. O ecocardiograma transtorácico evidenciou uma boa função sistólica global ventricular, sem alterações segmentares e sem outras alterações identificadas.
Neste contexto o doente foi internado na unidade coronária com o diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST. Realizada coronariografia que evidenciou a presença de trombo oclusivo no segmento distal da artéria 1.a obtusa marginal, trombo esse que foi aspirado, verificando‐se a presença de no reflow. Não foi colocado stent. A lesão previamente abordada no ramo póstero‐lateral direito não mostrava evidência de reestenose (Figura 3).
O doente manteve‐se clinicamente assintomático durante o internamento. Foi efetuado estudo analítico complementar que revelou ausência de alterações da função tiroideia, uma dislipidemia mista (colesterol total 264mg/dL; HDL 41mg/dL; LDL 180mg/dL; triglicéridos 214mg/dL), homocisteína dentro dos valores da normalidade (13umol/L); no estudo de trombofilias realizado apenas se destacou uma elevação dos níveis de fator VIII (236%).
Discussão/conclusõesNíveis elevados de fator VIII (>150IU/dL) podem ser encontrados em cerca de 11% da população geral adulta6. Tem sido discutido ao longo do tempo o papel do fator VIII como agente trombótico versus marcador de inflamação. Embora o fator VIII possa estar aumentado em doenças que induzem uma resposta de fase aguda, incluindo o enfarte agudo do miocárdio, cirurgias e sépsis, a sua associação com a trombose venosa e arterial parece refletir, segundo alguns autores, não apenas um processo inflamatório protrombótico, mas uma etiologia causal direta no mecanismo de trombose, podendo ser, portanto, um alvo terapêutico13. Este efeito trombogénico, considerado numa relação não linear com o nível de elevação do fator2, parece depender igualmente do grau de lesão vascular13.
A regulação dos níveis plasmáticos do fator VIII parece ser complexa. Parecem haver fatores genéticos e adquiridos que contribuem para essa regulação. Neste sentido, os níveis parecem ser mais elevados em indivíduos do género feminino, de raça negra, com grupo sanguíneo não zero, índice de massa corporal elevado, na presença de diabetes mellitus ou hipertrigliceridemia, bem como noutras situações clínicas como gravidez, cirurgias, inflamação crónica, neoplasias, doença hepática, hipertiroidismo, hemólise intravascular e doença renal. Em muitas dessas condições há um aumento concordante de fator VIII e fator de Von Willebrand1. Assim, um problema que se coloca frequentemente na prática clínica é o timing para a mensuração do fator VIII, uma vez que pode estar elevado em reações de fase aguda, podendo um valor basal não ser obtido antes de vários meses1.
No que diz respeito ao seu doseamento, mais comummente o fator VIII é medido como fator VIII:C através de modificações do APTT, o que é mais simples, mas pode originar maior número de falsos positivos, devido à ativação do sistema de coagulação durante os procedimentos de colheita de sangue ou armazenamento. Outra técnica é a medição do fator VIII:Ag por técnicas de ELISA, mais morosa, mas sem aumento da suscetibilidade à ativação do sistema de coagulação1. A anticoagulação com varfarina não parece afetar o doseamento dos níveis de fator VIII6,8.
A apresentação deste caso clínico pretende realçar o papel do fator VIII como possível etiologia da formação de trombos responsáveis por trombose arterial, nomeadamente síndroma coronária aguda. Outros casos já têm sido descritos na literatura de doentes com síndroma coronária aguda e com aumento do fator VIII (sem outros fatores de risco cardiovasculares conhecidos ou doença ateromatosa significativa diagnosticada)9,11. Embora neste caso descrito o doente tenha outros fatores de risco cardiovasculares, fica a questão do papel do fator VIII e da sua preponderância no evento trombótico arterial ocorrido, sobretudo na ausência de outras lesões angiográficas documentadas. Permanece também a questão do grau de fiabilidade de um único doseamento, uma vez que existem vários fatores como o evento coronário agudo, bem como o índice de massa corporal elevado e a hipertrigliceridemia, presentes neste caso, que o pudessem condicionar; contudo, realça‐se o facto de ser um valor elevado, bastante superior ao valor de referência. De forma a obter um valor basal do doente, o doseamento deveria ser repetido algum tempo após o evento agudo e na ausência de outras intercorrências.
A relação do fator VIII com o tromboembolismo venoso já se encontra bem documentada, contudo, uma questão importante é se os doentes com trombose venosa devem ser rastreados quanto aos níveis de fator VIII. Níveis elevados de fator VIII são um fator de risco para um primeiro evento trombótico, mas também aumentam o risco de recorrências1,14, o que indica que a anticoagulação sustentada pode ser necessária nesses doentes6. O risco de recorrência aproxima‐se de cerca de 30% dois anos após a descontinuação da anticoagulação7. Contudo, ainda não se encontra bem estabelecido o período de tempo de anticoagulação que um indivíduo com níveis elevados de fator VIII deve fazer7.
Já no contexto da trombose arterial a definição de uma estratégia diagnóstica e terapêutica é ainda menos clara, nomeadamente a necessidade de doseamento do fator VIII perante um episódio trombótico arterial, bem como o início e duração da terapêutica anticoagulante perante a sua elevação documentada. Já existem casos descritos na literatura de doentes com síndroma coronária aguda, com elevação do fator VIII e sem outros fatores de risco cardiovasculares conhecidos, que efetuaram terapêutica anticoagulante durante um período de seis meses11.
A questão do estudo das trombofilias torna‐se mais pertinente em faixas etárias mais jovens. Hoje em dia reconhece‐se que 5‐10% dos enfartes agudos do miocárdio ocorrem em doentes com idade inferior a 45 anos, não possuindo estes, muitas vezes, os fatores de risco aterotrombóticos habituais12. Nestes doentes a ocorrência de fenómenos trombóticos, não explicados por mecanismos convencionais, deve motivar um estudo dirigido das trombofilias, no qual poderá ser importante incluir o fator VIII face aquilo que tem sido publicado nos últimos anos.
É necessário ainda não esquecer que muitos dos parentes de doentes com alterações trombofílicas necessitam de aconselhamento e avaliação de risco. No caso do fator VIII é necessário mais estudos para perceber a necessidade desta avaliação de parentes de doentes com níveis elevados de fator VIII e com fenómenos trombóticos5.
Este artigo pretende assim alertar para um possível fator de risco para síndroma coronária aguda, que tem vindo a ser alvo de cada vez maior número de estudos ao longo dos anos, mas o qual ainda carece de mais investigação. Eventualmente a elevação do fator VIII pode ser causa de número significativo de estados de hipercoagulabilidade idiopáticos ou inclusive ser fator aditivo para a ocorrência de tromboses.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de doentes e que todos os doentes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos doentes e/ou sujeitos mencionados no artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.