A Internet é fundamental na divulgação de informação médica. Contudo, a ausência de controlo de qualidade potencia a “desinformação” da população. Pretendemos caraterizar a relevância e qualidade da informação sobre enfarte agudo do miocárdio em língua portuguesa no site YouTube (www.youtube.com).
MétodosAnalisaram‐se 1.000 vídeos correspondentes aos primeiros 100 resultados da pesquisa no YouTube dos termos: “ataque + cardíaco”, “ataque + coração”, “enfarte ‐ cerebral”, “infarto ‐ cerebral”, “enfarte + miocárdio”, “enfarte + agudo + miocárdio”, “infarto + miocárdio”, “infarto + agudo + miocárdio”, “trombose + coração” e “trombose + coronária”. Excluíram‐se vídeos irrelevantes (n = 316), duplicados (n = 345), sem áudio (n = 24) e de língua não portuguesa (n = 106). Os vídeos elegíveis foram analisados quanto a origem, tema, público‐alvo e imprecisões científicas. A qualidade foi avaliada com os scores Health on the Net Code (HONCode, de 0‐8) e DISCERN (0‐5) – quanto maior, melhor a qualidade.
ResultadosIncluíram‐se 242 vídeos, a maioria de formadores independentes (n = 95, 39%) e destinados à população‐geral (n = 202, 83,5%). Um terço (n = 79) apresentou imprecisões; vídeos de sociedades científicas e instituições de saúde/governamentais não apresentaram quaisquer imprecisões. A qualidade média foi baixa/moderada; apenas um vídeo apresentou boa qualidade, sem imprecisões. Instituições de saúde/governamentais foram a fonte com melhor qualidade (HONCode 4±1, DISCERN 2±1).
ConclusõesA informação sobre enfarte agudo do miocárdio em língua portuguesa é irrelevante em um terço dos casos e um terço dos vídeos relevantes é impreciso. A qualidade média da informação é reduzida, sendo importante definir estratégias de controlo de qualidade da informação médica online.
The Internet is a fundamental aspect of health information. However, the absence of quality control encourages misinformation. We aim to assess the relevance and quality of acute myocardial infarction videos shared on YouTube (www.youtube.com) in Portuguese.
MethodsWe analyzed 1,000 videos corresponding to the first 100 search results on YouTube using the following terms (in Portuguese): “cardiac + arrest”; “heart + attack”; “heart + thrombosis”; “coronary + thrombosis”; “infarction – brain”, “myocardial + infarction” and “acute + myocardial + infarction”. Irrelevant (n=316), duplicated (n=345), without audio (n=24) or non‐Portuguese (n=106) videos were excluded. Included videos were assessed according to source, topic, target audience and scientific inaccuracies. Quality of information was assessed using The Health on the Net Code (HONCode from 0 to 8) and DISCERN (from 0 to 5) scores – the higher the score, the better the quality.
Results242 videos were included. The majority were from independent instructors (n=95, 39.0%) and were addressed to the general population (n=202, 83.5%). One third of the videos (n=79) contained inaccuracies while scientific society and governmental/health institution videos had no inaccuracies. The mean video quality was poor or moderate; only one video was good quality without any inaccuracies. Governmental/health institutions were the source with the best quality videos (HONCode 4±1, DISCERN 2±1).
ConclusionsOne third of the videos had irrelevant information and one third of the relevant ones contained inaccuracies. The average video quality was poor; therefore it is important to define strategies to improve the quality of online health information.
A doença isquémica cardíaca, na qual se inclui o enfarte agudo do miocárdio (EAM), constitui a principal causa de morte a nível mundial1. Em 2018, a doença isquémica cardíaca foi responsável por 7.241 mortes em Portugal, apresentando‐se como a segunda causa de morte nacional2. O controlo dos fatores de risco cardiovasculares pode prevenir até 80% das doenças cardiovasculares3 e permitiu reduzir a incidência da doença arterial coronária nas últimas décadas4. Por sua vez, o reconhecimento atempado dos sinais e sintomas de EAM permite iniciar terapêuticas dirigidas mais precocemente e, assim, reduzir a morbimortalidade associada5.
A Internet, que apresenta conceitos de forma fácil e apelativa para o público geral, é uma ferramenta essencial para a divulgação de informação. Nos últimos anos, a Internet tem sido um veículo de informação em saúde utilizado com uma frequência crescente6–8. A facilidade de acesso e a interface intuitiva fazem do YouTube (http://www.youtube.com) uma plataforma de partilha de vídeo popular, na qual se incluem temas de saúde. Este website da multinacional Google LLC é de acesso aberto, podendo os utilizadores registados fazer o upload de conteúdos de vídeo, posteriormente visualizados por outros utilizadores (registados ou não). Em abril de 2020, o YouTube ocupava o segundo lugar do ranking mundial de websites mais visualizados, ultrapassado apenas pelo motor de busca online Google9.
Todavia, não existem ferramentas de controlo de qualidade da informação partilhada, pelo que os utilizadores estão muitas vezes alheios à qualidade da informação exibida10. A apresentação indiscriminada de informação pode culminar na “desinformação”, com eventuais repercussões negativas na perceção da doença pela população11. Este trabalho tem como objetivo descrever a relevância e qualidade da informação clínica e científica sobre EAM disponível no site YouTube, em língua portuguesa.
MétodosPesquisa de vídeosForam realizadas pesquisas na página do YouTube com um computador ligado à Internet em território português, entre 7 de maio e 5 de agosto de 2019, sem login prévio e com os cookies eliminados. A combinação de termos utilizados para a pesquisa foram, sem ordem de importância: “ataque + cardíaco”, “ataque + coração”, “enfarte – cerebral” e “infarto – cerebral” (de forma a excluir vídeos referentes a acidentes vasculares cerebrais), “enfarte + miocárdio”, “enfarte + agudo + miocárdio”, “infarto + miocárdio”, “infarto + agudo + miocárdio”, “trombose + coração” e “trombose + coronária”. Excluíram‐se da pesquisa termos como “supradesnivelamento ST” ou “infradesnivelamento ST”, pois não são frequentemente pesquisados pelo público geral. Excluíram‐se ainda termos como “angina”, “angina + peito” ou “angor”, dado o foco apenas no EAM.
Os resultados da pesquisa de cada termo foram ordenados por relevância, sem aplicação de outros filtros adicionais de pesquisa. Os vídeos apresentados após a posição 100 nos resultados da pesquisa para cada termo foram excluídos por se assumir uma baixa probabilidade de visualização pelos utilizadores a partir deste ponto.
Seleção dos vídeosDa seleção inicial de 1.000 vídeos (10 termos x 100 primeiros vídeos) obtida com os diferentes termos de pesquisa, excluíram‐se: (1) os vídeos assumidos como irrelevantes por não abordarem o tema em estudo (n = 316), (2) os vídeos que não se encontravam em língua portuguesa (n = 106), (3) os vídeos com problemas técnicos ou sem áudio por se admitir uma baixa adesão à sua visualização (n = 24) e (4) vídeos duplicados ou repetidos entre pesquisas (n = 345, neste caso o primeiro resultado foi analisado e os duplicados excluídos). Os vídeos subdivididos em múltiplas partes foram contabilizados como um único vídeo (n = 42). Assim, a nossa pesquisa retornou 242 vídeos elegíveis. A Tabela Suplementar 1 lista os 1000 vídeos avaliados e a Figura 1 resume o diagrama de fluxo de pesquisa e seleção de vídeos.
Colheita de dados e classificação dos vídeosA avaliação dos vídeos elegíveis foi realizada por dois observadores médicos internos de formação específica (IF e DM). Registaram‐se para cada vídeo os seguintes parâmetros: data de upload, número de visualizações, duração do vídeo (em minutos) e opinião dos utilizadores (sob a forma de likes e dislikes). Nos vídeos subdivididos em múltiplas partes foi registada a data de upload do último vídeo e contabilizada a média de visualizações e do rácio like/dislike. Foi ainda documentado se o vídeo fornecia informação em saúde ou não, o público‐alvo (doentes, público geral ou profissionais de saúde) e a tipologia do vídeo (humorístico, musical, animação, publicidade a um fármaco, hospital ou profissional, ou regular – na qual se incluem os restantes vídeos). No caso de identificação de múltiplas tipologias para um mesmo vídeo, chegou‐se a um consenso entre três investigadores (IF, DM e JBA) sobre qual a tipologia principal que melhor representava o vídeo analisado.
Os vídeos foram ainda caracterizados quanto à sua fonte/origem: experiência pessoal, cadeia de notícias, programas televisivos de entretenimento, sociedades científicas, empresas farmacêuticas, faculdades ou centros de instrução, instituições de saúde ou governamentais, formadores individuais sem vínculo institucional ou outros media (vídeos não incluídos nas categorias anteriores).
O conteúdo dos vídeos foi avaliado no que diz respeito ao tema abordado: fisiopatologia, sinais e sintomas, diagnóstico, tratamento, medidas preventivas (incluindo controlo dos fatores de risco cardiovasculares) e complicações associadas. Admitiu‐se a possibilidade de o mesmo vídeo abordar múltiplos tópicos.
A informação foi analisada quanto à presença de imprecisões, anotando‐se o tipo de incorreção clínica/científica. Avaliou‐se ainda a credibilidade e qualidade da informação através dos scores Health on the Net Code (HONCode)12 e DISCERN13, ambos baseados na informação audiovisual de cada vídeo. A Health on the Net é uma organização independente que fornece as guidelines de informação em saúde para os websites, baseando‐se em oito princípios: autoridade, complementaridade, confidencialidade, atributo (origem da informação), justificabilidade (evidência), transparência de autoria, transparência de patrocínio, honestidade editorial e de conflitos de interesse. Avaliámos a adesão dos vídeos elegíveis a cada um dos princípios HONCode, utilizando uma tabela adaptada para vídeos online conforme previamente publicado14, e classificámos a qualidade dos vídeos em baixa (HONCode 0‐2), moderada (HONCode 3‐5) ou alta (HONCode 6‐8). Por sua vez, o score DISCERN constitui um instrumento utilizado na avaliação da qualidade da informação médica escrita, tendo sido adaptado à avaliação dos vídeos conforme previamente publicado14. Em vídeos focados em considerações diagnósticas apenas são aplicáveis os primeiros 8 itens do DISCERN, contrariamente aos vídeos referentes à abordagem terapêutica, nos quais todos os itens do DISCERN são relevantes (Tabela Suplementar 2). Cada item recebe uma pontuação de 1 a 5, em que 5 indica lacunas mínimas ou ausência de lacunas; a qualidade dos vídeos foi classificada em baixa (DISCERN score 1), moderada (DISCERN score 2‐4) ou alta (DISCERN score 5)13.
Análise estatísticaA análise estatística foi realizada com recurso ao software SPSS para Windows, versão 22.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, USA). As variáveis categóricas são apresentadas como frequências absolutas com percentagens. As variáveis contínuas paramétricas (normalmente distribuídas) são apresentadas como média ± desvio‐padrão, caso contrário são apresentadas como mediana e intervalo interquartil. Testou‐se a normalidade da distribuição das variáveis contínuas com recurso ao teste de Kolmogorov‐Smirnov e avaliação visual dos histogramas. As comparações entre os grupos de vídeos foram feitas com recurso a teste de qui‐quadrado ou teste exato de Fisher para variáveis categóricas, conforme apropriado; as variáveis contínuas foram comparadas com recurso ao teste t de Student ou one‐way Anova para variáveis paramétricas; as variáveis contínuas não paramétricas foram avaliadas com o teste U de Mann‐Whitney ou teste de Kruskal‐Wallis, conforme apropriado. Foi avaliada a reprodutibilidade intra‐ e interobservador, com recurso à estatística kappa de Cohen, quanto à audiência‐alvo, fonte, tipologia do vídeo, tema abordado, imprecisões e scores HONCode e DISCERN (Tabela Suplementar 3). Uma amostra aleatória de 25 vídeos elegíveis (10%) foi utilizada para esse efeito. A reprodutibilidade intraobservador foi avaliada com um intervalo temporal superior a um mês entre análises. Todos os testes estatísticos foram bilaterais e com um nível de significância de 5%.
ResultadosCaracterísticas dos vídeosForam incluídos na análise final 242 vídeos (duração média de 9,2 ± 0,8 minutos, mínimo 0,3 e máximo 89,3 minutos), perfazendo 2.226 minutos. A mediana de dias decorridos desde o upload até à análise dos vídeos foi de 823 (384–1.693) dias, a maioria dos quais (75,6%) submetidos há pelo menos um ano. As características gerais dos vídeos incluídos encontram‐se resumidas na Tabela 1. A concordância intra‐ e interobservador na avaliação e classificação dos vídeos foi boa ou excelente (Tabela Suplementar 3). O parâmetro que apresentou menor concordância interobservador foi o tema do vídeo (0,63, 0,39‐0,87) e o que apresentou maior concordância foi a presença de imprecisões clínicas ou científicas (0,84, 0,62‐1,00). Quando identificadas discordâncias a avaliação final resultou de um consenso entre três investigadores (IF, DM e JBA).
Características gerais dos vídeos elegíveis de acordo com as diversas fontes
Formadores sem vínculo institucional | Outros media | Programas televisivos de entretenimento | Escolas, universidades ou centros de instrução | Sociedades científicas | Cadeia de notícias | Instituições de saúde ou governamentais | Empresas farmacêuticas | Experiência pessoal | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N° vídeos, n (%) | 95 (39) | 44 (18) | 37 (15) | 15 (6) | 14 (6) | 13 (5) | 10 (4) | 8(3) | 6 (3) |
Duração, minutos | 5,0 (3,1‐10,5) | 4,2 (3,1‐5,5) | 13,0 (4,0‐21,1) | 7,2 (3,3‐22,3) | 1,6 (0,9‐6,5) | 2,8 (2,3‐4,1) | 1,8 (0,8‐3,4) | 3,1 (1,7‐4,9) | 3,3 (2,6‐4,6) |
N° de visualizações | 5683 (1.326‐33.693) | 18.557 (1.672‐112.806) | 11.396 (1.462‐49.073) | 45.029 (4.114‐257.103) | 234 (58‐12.963) | 291 (15‐1.083) | 2.214 (182‐10.136) | 70 (25‐128) | 63.305 (2.112‐683.598) |
N° de likes | 252 (33‐1.100) | 638 (49‐2.842) | 68 (10‐767) | 1.015 (77‐1.650) | 2 (0‐41) | 2 (1‐19) | 3 (1‐35) | 0 (0‐1) | 1.738 (16‐16.500) |
N° de dislikes | 5 (0‐24) | 18 (1‐88) | 3 (1‐40) | 22 (3‐81) | 0 (0‐1) | 0 (0‐1) | 0 (0‐2) | 0 (0‐0) | 25 (1‐736) |
Rácio like/diskike | 44 (19‐77) | 29 (18‐53) | 20 (14‐25) | 26 (21‐42) | 35 (9‐57) | 19 (15‐22) | 17 (3‐23) | 38 (38‐38) | 26 (21‐171) |
N° comentários | 8 (1‐64) | 7 (1‐90) | 3 (0‐54) | 15 (2‐42) | 0 (0‐0) | 0 (0‐0) | 0 (0‐1) | 0 (0‐0) | 69 (2‐593) |
Tipo de vídeo, n (%) | |||||||||
Regular | 82 (86) | 36 (82) | 34 (92) | 10 (67) | 10 (71) | 12 (92) | 9 (90) | 8 (100) | 6(100) |
Animação | 13 (14) | 8 (18) | 3 (8) | 5 (33) | 4 (29) | 1 (8) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
Música | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
Humor | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
Publicidade | 0 (0) | 0 (2) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 1 (10) | 0 (0) | 0 (0) |
Público‐alvo, n (%) | |||||||||
Doentes | 1 (1) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | 1 (7) | 3 (23) | 0 (0) | 0 (0) | 1 (17) |
Profissionais | 23 (24) | 3 (7) | 0 (0) | 4 (27) | 1 (7) | 0 (0) | 2 (20) | 4 (50) | 0 (0) |
População geral | 71 (75) | 41 (93) | 37 (100) | 11 (73) | 12 (86) | 10 (77) | 8 (80) | 4 (50) | 5 (83) |
A maioria dos vídeos destina‐se ao público em geral (n = 199, 77,7%) e tem origem em formadores sem vínculo institucional (n = 95, 39,3%); estes últimos apresentam a maior aprovação pelo público com um rácio like/dislike de 44 (19−77). Por sua vez, os vídeos de instituições de saúde/governamentais demonstram o pior rácio like/dislike (rácio like/dislike 17, 3−23).
Os vídeos de programas televisivos de entretenimento são tendencialmente mais longos (13,0 minutos, 4,0−21,1). Vídeos de “outros media” (4,2 minutos, 3,1−5,5) são significativamente mais longos do que os vídeos de instituições de saúde/governamentais (1,8 minuto, 0,8−3,2, p = 0,002), sociedades científicas (1,6 minuto, 0,9−6,5, p = 0,003) e cadeias de notícias (2,8 minutos, 2,3−4,1, p = 0,010).
Vídeos com origem em experiência pessoal são os mais visualizados (mediana de 63.305 visualizações, 2.112−683.598) bem como os mais comentados (mediana 69 comentários, 2–593). Os vídeos de programas televisivos apresentaram um número de visualizações (mediana de 11.396 visualizações, 1.462−49.073) significativamente superior aos vídeos de cadeias de notícias (291 visualizações, 15−1.083, p = 0,001), empresas farmacêuticas (70 visualizações, 25−128, p = 0,010) e sociedades científicas (234 visualizações, 58−12.963, p=0,026). Vídeos de formadores sem vínculo institucional têm um número de comentários (8 comentários, 1‐64) superior aos vídeos de cadeias de notícias (0 comentários, 0−0, p = 0,002), instituições de saúde/governamentais (0 comentários, 0−1, p = 0,023) e sociedades científicas (0 comentários, 0−0, p = 0,028).
Conteúdo dos vídeosOs temas dos vídeos abordados de acordo com a fonte encontram‐se resumidos na Figura 2. O tema mais abordado foi “sinais e sintomas” (62,0%, n = 150), seguido de fisiopatologia (55,0%, n = 133). Os “sinais e sintomas” de EAM são o tema mais abordado em vídeos de sociedades científicas (100,0%, n = 14), experiência pessoal (83,3%, n = 5), cadeias de notícias (76,9%, n = 10), programas televisivos de entretenimento (73,0%, n = 27), instituições de saúde ou governamentais (60,0%, n = 6) e outros media (65,9%, n = 29). Por sua vez, a fisiopatologia é sobretudo focada em vídeos de faculdades ou centros de instrução (66,7%, n = 10) e formadores sem vínculo institucional (60,0%, n = 57).
Os temas dos vídeos de acordo com o público‐alvo encontram‐se resumidos na Figura 3. Vídeos dirigidos a profissionais de saúde focam maioritariamente a fisiopatologia (60,5%, n = 23), enquanto vídeos dirigidos à população geral abordam preferencialmente “sinais e sintomas” (67,8%, n = 137).
Apenas 38,8% dos vídeos incluídos focam o tratamento (n = 94) e a prevenção (n = 94) do EAM, a maioria com origem em formadores sem vínculo institucional (n = 28 e n = 32, respetivamente).
Qualidade dos vídeosA análise da qualidade da informação contida nos vídeos de acordo com a fonte e tema abordado encontra‐se detalhada na Tabela 2. Um terço dos vídeos (n = 79, 32,6%) apresenta imprecisões clínicas/científicas, a maioria dos quais com origem em formadores sem vínculo institucional (n = 33, 41,0%). O tema em que a imprecisão foi mais frequente foi “sinais e sintomas” (n = 46, 58,2%). Vídeos com origem em sociedades científicas e instituições de saúde ou governamentais não apresentaram quaisquer imprecisões.
Qualidade dos vídeos por fonte e tema
Imprecisões clínicas/científicas | HONCode score | DISCERN score | |
---|---|---|---|
n (%) | média ± desvio‐ padrão | média ± desvio‐ padrão | |
Fonte do vídeo | |||
Experiência pessoal | 2 (3) | 2 ± 1 | 2 ± 1 |
Cadeia de notícias | 1 (1) | 2 ± 1 | 2 ± 1 |
Programas televisivos de entretenimento | 8 (10) | 3 ± 1 | 2 ± 1 |
Sociedades científicas | 0 (0) | 3 ± 1 | 2 ± 1 |
Empresas farmacêuticas | 1 (1) | 3 ± 1 | 2 ± 1 |
Faculdades ou centros de instrução | 5 (6) | 3 ± 1 | 2 ± 1 |
Instituições de saúde/governamentais | 0 (0) | 4 ± 1 | 2 ± 1 |
Formadores individuais | 33 (41) | 3 ± 1 | 3 ± 1 |
Outros media | 30 (38) | 3 ± 1 | 2 ± 1 |
Tema do vídeo | |||
Fisiopatologia | 32 (41) | 3 ± 1 | 3 ± 1 |
Sinais e sintomas | 46 (58) | 3 ± 1 | 2 ± 1 |
Diagnóstico | 7 (9) | 3 ± 1 | 3 ± 1 |
Tratamento | 18 (23) | 3 ± 1 | 2 ± 1 |
Prevenção | 35 (44) | 3 ± 1 | 2 ± 1 |
Complicações | 3 (4) | 3 ± 1 | 3 ± 1 |
A média dos scores HONCode e DISCERN foi 3,0 ± 1,1 e 2,4 ± 0,7, respetivamente. O número de vídeos em conformidade com cada um dos princípios HONCode é apresentado na Tabela 3. O princípio HONCode mais respeitado foi o princípio da confidencialidade (n = 223, 95,3%) e o menos respeitado foi o princípio da justificabilidade/referências bibliográficas (n = 12, 5,1%).
Princípios HONCode e número de vídeos em conformidade
Princípios HONCode | Vídeos em conformidade, n (%) |
---|---|
AutoridadeTodas as orientações médicas ou relacionadas com a saúde são fornecidas por profissionais de saúde qualificados, a menos que seja declarado expressamente que uma determinada informação provém de um indivíduo ou organização não qualificados na área da saúde | 131 (56,0) |
ComplementaridadeA informação disponibilizada no vídeo foi concebida para apoiar o relacionamento entre o doente e o seu médico assistente e entre doentes e não para os substituir. | 193 (82,5) |
ConfidencialidadeA informação disponibilizada no vídeo respeita o caráter confidencial dos dados dos doentes ‐ incluindo a sua identidade pessoal. | 223 (95,3) |
AtributoA informação apresentada no vídeo é acompanhada pelas respetivas referências das fontes consultadas e, quando possível, do link HTML das mesmas. A data em que cada página foi atualizada pela última vez deverá ser exibida claramente. | 21 (9,0) |
JustificabilidadeQuaisquer afirmações feitas sobre os benefícios e/ou desempenho de um tratamento, produto comercial ou serviço específico deverão ser acompanhadas das respetivas referências bibliográficas ou link HTML das mesmas. | 12 (5,1) |
Transparência de autoriaO vídeo disponibiliza contactos para a obtenção de informações adicionais. O endereço de e‐mail do responsável pelo vídeo deve ser apresentado de forma clara. | 86 (36,8) |
Transparência de patrocínioOs apoios dados para a produção do vídeo devem ser claramente identificados, incluindo a identidade das organizações comerciais e não comerciais que tenham contribuído com ajuda financeira, serviços ou recursos materiais | 22 (9,4) |
Honestidade editorial e de conflito de interessesSe a publicidade é uma das fontes de financiamento do vídeo ou dos seus autores deverá ser indicado claramente. Os materiais promocionais devem ser apresentados de forma clara para facilitar a sua distinção dos materiais educacionais apresentados no vídeo | 13 (5,6) |
Na avaliação de qualidade com recurso ao HONCode, os vídeos de instituições de saúde/governamentais apresentaram a melhor pontuação (HONCode score 4±1), enquanto vídeos com origem em experiência pessoal e cadeias de notícias foram os de pior qualidade (HONCode score 2±1). A avaliação com recurso ao score DISCERN não demonstrou diferenças estatisticamente significativas entre as diferentes fontes de vídeo.
A avaliação da qualidade dos vídeos foi também realizada após exclusão dos vídeos com origem em experiência pessoal ou notícias, por se considerar que não foram realizados com objetivo pedagógico (n = 19). Destes, apenas três apresentavam imprecisões clínicas/científicas. Os resultados desta subanálise (Tabela Suplementar 4) não demonstraram alterações significativas face ao conjunto global dos vídeos.
Apenas um vídeo (0,4%) apresentou concomitantemente boa qualidade (HONCode score alto e DISCERN score alto) sem imprecisões clínicas e científicas. Foi também avaliada a qualidade dos vídeos de acordo com a duração do vídeo, número de visualizações, rácio like/dislike e número de comentários. Verificou‐se que os vídeos de maior duração se associam a melhores scores HONCode (r = 0,191, p = 0,003) e DISCERN (r = 0,283, p < 0,001). Por outro lado, as imprecisões clínicas ou científicas aumentam em vídeos com mais visualizações (r = 0,285, p < 0,001) e maior número de likes (r = 0,289, p < 0,001), dislikes (r = 0,181, p = 0,005) e comentários (r = 0,147, p = 0,024). A Figura 4 apresenta o número de likes e visualizações de acordo com a presença de imprecisões clínicas/científicas.
Qualidade dos vídeos com melhor rankingPara cada termo de pesquisa, avaliou‐se ainda a qualidade dos vídeos com melhor ranking no Youtube por se admitir que são estes os vídeos visualizados pela maioria dos utilizadores. Para tal, consideraram‐se os 10 primeiros resultados da pesquisa, total de 100 vídeos, ordenados por ordem de relevância e sem os critérios de exclusão inicialmente aplicados na amostra. A prevalência de imprecisões foi de 22,0% (n = 22) e a média de scores HONCode e DISCERN foi 2,9 ± 1,2 e 2,2 ± 0,9, respetivamente.
DiscussãoNeste trabalho foi avaliada a relevância e qualidade da informação audiovisual clínica/científica sobre EAM disponível em língua portuguesa no site YouTube. Verificou‐se uma prevalência significativa de “desinformação”: um terço de vídeos é irrelevante e um terço dos vídeos relevantes apresenta informação imprecisa. No global, a qualidade da informação é baixa ou moderada, pelo que importa definir estratégias de controlo de qualidade da informação médica online.
“Desinformação” em saúdeA influência da Internet na divulgação da informação em saúde tem crescido de forma significativa nos últimos anos. Nos Estados Unidos da América sabe‐se que oito em cada dez utilizadores da Internet procuram informação online relacionada com saúde, a maioria em redes sociais8, e um terço dos indivíduos que procuram este tipo de informação fá‐lo antes de ser avaliado por um médico15.
Não há dúvida de que a Internet desempenha um papel determinante na difusão da informação médica à população e na forma como esta perceciona a doença. Esta influência pode, contudo, ser uma verdadeira ameaça, uma vez que a exposição a informação incorreta, não filtrada, pode ter consequências nefastas na saúde e rivalizar com o esforço de melhoria da educação para a saúde realizado nas últimas décadas. Um dos maiores perigos online são as fake news, tantas vezes difíceis de distinguir de informação verosímil para indivíduos leigos em saúde. Nesta época em que se torna difícil distinguir o que é verdadeiro do que não o é em plataformas online, torna‐se fundamental fortalecer os sistemas de informação e proteção do doente.
Os nossos resultados espelham bem este risco de desinformação: um terço dos vídeos selecionados foi irrelevante e a qualidade geral dos vídeos sobre EAM em língua portuguesa é reduzida. Um terço dos vídeos apresentou imprecisões clínicas ou científicas, sobretudo no tema “sinais e sintomas”, o que pode contribuir para o atraso no reconhecimento dos sintomas pelos doentes, atraso no diagnóstico clínico e, consequentemente, agravamento do prognóstico15. A título de exemplo, um dos vídeos avaliados com maior projeção (3.052,443 visualizações e 144.000 likes) apresenta score HONCode de 2 e graves imprecisões clínicas, afirmando que alguns alimentos podem substituir a intervenção coronária percutânea no tratamento do EAM; um outro vídeo com 1.477,347 visualizações e 12.000 likes apresenta um score HONCode de 1 e defende que a sintomatologia do EAM surge um mês antes do evento.
Verificou‐se que as imprecisões aumentam com o número de visualizações, likes, dislikes e comentários, o que parece refletir que vídeos mais sensacionalistas e, consequentemente, com maior participação por parte dos utilizadores, apresentam tendencialmente maior número de erros. Outros artigos tinham já corroborado esta informação ao concluir que artigos sobre saúde com imprecisões têm uma probabilidade 28 vezes superior de ser partilhados online comparativamente aos artigos sem erros clínicos ou científicos15.
O perigo das fake news no YouTube tem vindo a ser debatido noutros países, não só no que respeita ao EAM16 ou outras patologias cardiovasculares17, mas também relativamente a outras situações clínicas, como doenças respiratórias14,18–20, doenças gastrointestinais21–23, doenças ortopédicas24,25, vacinação26 ou ressuscitação cardiopulmonar27. As conclusões destes trabalhos vão de encontro ao observado para a realidade portuguesa e alertam para a necessidade imperativa de melhorar a qualidade da informação médica nesta plataforma.
Soluções para a “desinformação”O público‐geral demonstra uma maior interatividade com vídeos de pior qualidade enquanto os vídeos de melhor qualidade são os menos vistos. Estes problemas são potenciados pelo facto de as redes sociais e de partilha de conteúdo online, como o YouTube, permitirem que cada utilizador possa fazer o upload de conteúdos sem a validação prévia do seu conteúdo e veracidade16. A análise do “top 10” dos vídeos do YouTube revelou que um quinto destes vídeos apresentou imprecisões clínicas/científicas e o HONCode médio foi apenas moderado. Numa época em que a instantaneidade e a disponibilidade imediata da informação são sobejamente valorizadas, seria particularmente importante que a informação apresentada em primeiro lugar fosse de qualidade superior ao demonstrado neste subgrupo de vídeos.
No sentido de diminuir o risco de desinformação em saúde no YouTube várias medidas podem ser adotadas. Uma vez que os vídeos de melhor qualidade são, à semelhança de outros estudos,8,15,16 os vídeos de sociedades científicas e instituições de saúde, seria importante aumentar o número de vídeos destas fontes nas plataformas online.8 Também o estabelecimento de parcerias entre sociedades científicas e os influentes YouTubers pode conferir visibilidade e contribuir para a divulgação massiva de informação médica de qualidade, à semelhança do que já foi anteriormente realizado pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia28. De igual forma, a parceria entre sociedades científicas e sites governamentais de divulgação de informação à população, com elevado número de visualizações diárias, e que contam com equipas especializadas na criação de conteúdos digitais e na comunicação com o cidadão, permitem aliar informação médica de origem fidedigna com transmissão de informação apelativa e eficaz.
A solução passa também por melhorar os sistemas de validação da informação médica partilhada no YouTube, nomeadamente com implantação de sistemas de peer review e de sinalização de vídeos com imprecisões clínicas ou científicas ou, por exemplo, que não cumpram os princípios HONCode. A revisão dos algoritmos de pesquisa do YouTube relativamente a informação em saúde poderia também contribuir para que os resultados apresentados em primeiro lugar fossem provenientes de fontes de informação validadas, cuja acuidade tenha sido confirmada. Atualmente é também possível a utilização da inteligência artificial para a criação de algoritmos automáticos de exclusão de vídeos do YouTube que não cumpram os termos de utilização da plataforma29, que poderiam ser recodificados de modo a excluir dos resultados de pesquisa vídeos com imprecisões clínicas/científicas. Também neste sentido, a Organização Mundial de Saúde propôs à entidade americana responsável pela atribuição de endereços na Internet, a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, a criação de um novo domínio na Internet para utilização exclusiva por fontes de informação médica validadas, que seria criteriosamente regulado e monitorizado para assegurar a qualidade da informação partilhada30.
LimitaçõesO processo de avaliação dos vídeos é subjetivo, porém a reprodutibilidade intra‐ e interobservador foi boa ou excelente. A pesquisa de vídeos restringiu‐se a um curto período temporal e em regra existe turnover do top 100 dos resultados. Contudo, a mediana de tempo decorrido desde o upload de 823 (384–1693) dias leva a crer que o turnover não seja assim tão rápido, pelo que estes resultados parecem ser representativos de um período temporal superior ao avaliado. Não é possível obter informação demográfica dos espectadores de cada vídeo, nem é possível determinar quantos portugueses acedem ao YouTube ou especificamente quais os termos mais pesquisados sobre este tema. Embora os termos selecionados não sejam exaustivos (por exemplo, não foram pesquisadas abreviaturas como “EAM”), julgamos que no geral serão representativos das pesquisas efetuadas pelo público geral. Não foi avaliado o impacto do YouTube na modificação de comportamentos na população, porém tal não foi objetivo do estudo e poderá ser avaliado em futuros trabalhos.
ConclusõesNo global, a qualidade da informação audiovisual clínica e científica sobre EAM disponível em língua portuguesa no site YouTube é baixa ou moderada. Existe uma prevalência elevada de “desinformação” sobre EAM: um terço dos vídeos é irrelevante e a informação é imprecisa em um terço dos vídeos relevantes. Para agravar este panorama, os vídeos mais visualizados são de fontes imprecisas e de menor qualidade. É necessário repensar estratégias de controlo de qualidade da informação médica online, que tornem a comunicação em saúde transparente, eficaz e de qualidade e, assim, contribuam para a melhoria da saúde cardiovascular da população.
FinanciamentoOs autores não têm fontes de financiamento a declarar.
Conflitos de interesseOs autores não têm conflitos de interesse a declarar.