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Vol. 31. Núm. 4.
Páginas 351-354 (abril 2012)
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Comentário a «2011ACCF/AHA: Recomendações para o diagnóstico e tratamento da miocardiopatia hipertrófica: um relatório do American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force com base em recomendações práticas desenvolvidas com a colaboração da American Assotiation for Thoracic Surgery, American Society of Echocardiography, American Society of Nuclear Cardiology, Heart Failure Society of America, Heart Rythm Society, Society for Cardiovascular Angiography and Interventions and Society of Thoracic Surgeons»
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Dulce Britoa, Nuno Cardima,b, António Freitasa,b,
Autor para correspondência
aeffreitas@gmail.com

Autor para correspondência.
a Grupo de Estudo de Doenças do Miocárdio e do Pericárdio da Sociedade Portuguesa de Cardiologia
b Corpo Redatorial da Revista Portuguesa de Cardiologia
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Texto Completo

2011 ACCF/AHA Guideline for the Diagnosis and Treatment of Hypertrophic Cardiomyopathy: A Report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines Developed in Collaboration With the American Assotiation for Thoracic Surgery, American Society of Echocardiography, American Sopciety of Nuclear Cardiology, Heart Failure Society of America, Heart Rythm Society, Society for Cardiovascular Angiography and Interventions and Society of Thoracic Surgeons. Bernard J. Gersh, Barry J. Maron, Robert O. Bonow, et al. J Am Coll Cardiol. 2011;58:e212-e260.

Comentário

Em 2003 foi publicado um documento de Consenso reunindo o esforço do American College of Cardiology e da Sociedade Europeia de Cardiologia na perspetivação do estado da arte no manejo de doentes com miocardiopatia hipertrófica. Esta é uma área complexa na arena cardiológica, objeto de intenso estudo e investigação nas últimas décadas e que representa um dilema pleno de controvérsias para o especialista cardiovascular.

Em Novembro de 2011, quase uma década após, surgem aquelas que podem ser consideradas as primeiras Recomendações hierarquizadas por níveis de evidência para o diagnóstico e tratamento da miocardiopatia hipertrófica (MH). A premência destas Recomendações reflete 3 aspetos fundamentais: o primeiro aspeto é a frequência desta entidade clínica – doença genética cardiovascular comum que frequentemente não é diagnosticada; o segundo relaciona-se com as várias facetas controversas da doença, quer ao nível do seu diagnóstico (ou suspeita do mesmo), quer ao nível dos estudos genéticos (indicações, atitudes e implicações), quer no que toca às opções terapêuticas a equacionar; e o terceiro aspeto é o risco inerente (e com elevado grau de imprevisibilidade) da ocorrência de morte súbita.

Níveis elevados de evidência (nível A) – derivados de múltiplos ensaios clínicos ou de meta-análises - são escassos ou inexistentes na miocardiopatia hipertrófica. As Recomendações têm como base níveis de evidência B ou C, baseados em estudos (muitas vezes não-aleatorizados), registos, opiniões de consenso e experiência clínica. Na graduação da evidência surge, a par da classe I (evidência de que a atitude deve ser tomada) e da classe II (evidência de que a atitude ou opção terapêutica é superior ao risco e que pode ser tomada), a classe III – recomendação de que a atitude ou opção terapêutica não é benéfica e que pode ser mesmo deletéria.

É no entanto de ter em consideração, em termos da aplicabilidade prática destas Recomendações, o facto de se dirigirem em particular a prestadores de cuidados e a populações de doentes residentes nos Estados Unidos da América. Noutros países e continentes poderão eventualmente ser utilizadas «armas» diagnósticas e terapêuticas diferentes, não contempladas neste documento.

À parte a excelente revisão do tema, pontuado sempre que foi considerado necessário/adequado pela aplicação da classificação de Recomendação e do seu nível de evidência, alguns aspetos particulares focados neste documento, tanto de ordem geral como também no que concerne aos estudos genéticos, ao seguimento dos portadores, ao papel relevante de algumas técnicas de imagem e alguns considerandos terapêuticos específicos, pareceram-nos merecer uma chamada especial de atenção e, por isso, os extraímos:

  • 1.

    É reconhecida definitivamente a situação de «portador» (membro da família com mutação sarcomérica associada a MH mas sem hipertrofia cardíaca) como tendo MH (subclínica);

  • 2.

    A existência de história de hipertensão arterial sistémica não exclui o diagnóstico de MH (nomeadamente em indivíduos mais velhos), embora a probabilidade de MH tenha de ser equacionada considerando achados imagiológicos e genéticos;

  • 3.

    A designação de «miocardiopatia hipertrófica» não se aplica a situações de hipertrofia cardíaca associada a fenocópias;

  • 4.

    O diagnóstico diferencial de MH poderá ser considerado perante uma situação de «miocardiopatia dilatada» (pois essa evolução é uma realidade possível);

  • 5.

    O doente com MH pode beneficiar de avaliação e acompanhamento em centros clínicos com experiência nesta área, embora tal decisão deva ser baseada no grau de «conforto» do cardiologista assistente em termos de avaliação e seguimento do doente em causa;

  • 6.

    É tópico de enfoque a grande importância clínica da distinção entre as situações obstrutivas das não-obstrutivas pois o manejo dos doentes dependerá muito da presença ou ausência de sintomas devido à obstrução. A obstrução poderá existir em repouso ou ser desencadeada/agravada após provocação (exercício, manobra de Valsalva ou provocação farmacológica) mas a utilização de infusão de dobutamina (durante ecocardiograma Doppler) para provocação de gradientes está definitivamente abandonada;

  • 7.

    É dada ênfase particular à importância do estudo genético, com um capitulo dedicado a este assunto e um subcapítulo dedicado aos portadores:

    • a.

      Em relação ao teste genético e ao rastreio familiar:

      • i.

        São Recomendações de classe I, nível de evidência B:

        • 1.

          A avaliação da transmissão familiar e o aconselhamento genético como parte da avaliação dos doentes com MH;

        • 2.

          Aconselhamento genético (prévio a realização do teste genético) por alguém com conhecimentos em genética cardiovascular;

        • 3.

          Rastreio da doença (clínico, com ou sem realização de teste genético) aos familiares de primeiro grau dos doentes com MH;

        • 4.

          Rastreio genético de MH e de outras causas genéticas de HVE inexplicada deve ser efetuado em doentes com MH de apresentação atípica ou na suspeita de causa genética para a hipertrofia;

      • ii.

        A utilidade do teste genético na avaliação do risco de morte súbita na MH é desconhecida (Recomendação classe iib, nível de evidência B)

      • iii.

        Teste genético não está indicado em familiares quando o doente índice não tem mutação definida como patogénica; e a continuação do seguimento clínico também não está indicada em familiares quando nestes não foi identificada mutação (nas situações de MH familiar com mutação patogénica identificada no doente-índice) – Recomendação classe iii, nível de evidência B)

    • b.

      Em relação aos portadores (genótipo positivo/fenótipo negativo):

      • i.

        Os portadores sem evidência de MH estão em risco de futuro desenvolvimento de MH e devem ser avaliados periodicamente (cada 12 a 18 meses em caso de crianças e adolescentes e cada 5 anos se adultos), incluindo avaliação clínica, ECG e ecocardiograma transtorácico ou ressonância magnética cardíaca (Recomendação Classe I, nível de evidência B).

    Mas, em relação a este importante grupo – portadores – a informação sobre o risco de morte súbita é limitada e as Recomendações são mais ambíguas neste aspeto, referindo que «quando a história familiar indica um risco elevado de morte súbita, a avaliação periódica do risco arritmico (com prova de esforço ou Holter) pode ser apropriada». E «decisões em relação à participação em atividade desportiva de competição devem ser decididas caso a caso, com o fornecimento da informação disponível ao indivíduo e à família sobre os potenciais riscos decorrentes».

    Em relação a este item – a prática desportiva – as Recomendações são naturalmente cautelosas, depreendendo-se do documento que os portadores deverão seguir as mesmas regras do que os indivíduos com fenótipo de MH (hipertrofia), podendo participar em modalidades desportivas de competição de baixa intensidade (ex. golfe e bowling) e noutros meramente recreacionais – Recomendação classe IIa, nível de evidência C.

    Na verdade, a extensa lista de desportos permitida ou não recomendada (definida por níveis de intensidade de esforço) é assumida apenas considerando a existência de MH clínica.

    Nas situações de MH sem mutação identificada (ou quando o teste genético não é efetuado), o seguimento dos familiares de primeiro grau (individuos em risco potencial de MH) torna-se de alguma forma mais complicado pois é exigível (clinicamente) para todos, periodicamente, com intervalos de 12 a 18 meses e começando aos 12 anos de idade (ou mais cedo, quando iniciam a puberdade, quando pretendem enveredar por prática desportiva competitiva ou quando existe história familiar de morte súbita) – Recomendação classe I, nível de evidência C. E só o aparecimento do fenótipo (ou a sua suspeição) poderá ditar as regras seguintes (estratificação do risco).

  • 8.

    Técnicas de imagem:

    • a.

      Ressonância magnética cardíaca

      De notar que o papel da ressonância magnética cardíaca (com contraste) na estratificação do risco de morte súbita, é atualmente ainda considerado com algum cuidado, podendo estar indicado como fator arbitrário a considerar (presença de realce tardio) na decisão clínica de prevenção primária (implantação de CDI) se a avaliação pelos fatores de risco convencionais permanecer duvidosa (Recomendação classe IIb, nível de evidência C).

    • b.

      AngioTC

      Considerando o valor preditivo negativo elevado da angioTC na exclusão de doença coronária, no doente com MH com queixas sugestivas de angor e baixa probabilidade de doença coronária a realização deste exame é Recomendação classe IIa (nível de evidência C).

      Se a probabilidade de doença coronária for considerada elevada, a realização de angioTC (ou de arteriografia coronária invasiva) está indicada (Recomendação classe I, nível de evidência C).

  • 9.

    De realçar que, nos doentes assintomáticos:

    • a.

      A estratificação do risco de morte súbita deve ser feita em todos os doentes com MH, independentemente da presença ou ausência de sintomas.

    • b.

      Um programa de exercício aeróbico de baixa intensidade pode ser praticado por doentes com MH (classe IIa, nível de evidência C).

    • c.

      A utilidade dos bloqueadores adrenérgicos-ß e dos antagonistas dos canais do cálcio não está definida na MH (com ou sem obstrução) – (classe IIb, nível de evidência C).

    • d.

      A terapêutica de redução septal (cirúrgica ou química) não está indicada, independentemente da gravidade da obstrução (classe III, nível de evidência C).

    • e.

      A implantação de pacemaker permanente com o objetivo de redução do gradiente não deve ser efetuada em doentes com MH sem sintomas ou com sintomas controlados com terapêutica médica (classe III, nível de evidência C).

    • f.

      A hidratação e o evitar ambientes propícios a vasodilatação são medidas importantes no doente com MH e obstrução (em repouso ou provocável). Também nestes doentes, elevadas doses de diuréticos e o uso de vasodilatadores (para tratamento de outras situações como a hipertensão) devem ser evitados.

  • 10.

    Algumas considerações específicas (menos vulgares ou mais esquecidas) a ter em conta no tratamento do doente sintomático:

    • a.

      Em situações de hipotensão aguda (no doente com MH obstrutiva), que não responde a infusão salina, deve ser administrado um agente vasoconstritor puro (ex. fenilefrina) − classe I, nível de evidência B. A dopamina, dobutamina ou norepinefrina são potencialmente deletérios nesse contexto (classe III, nível de evidência B).

    • b.

      A miectomia cirúrgica não elimina a necessidade de estratificação do risco de morte súbita nem a consideração de implantação de CDI perante um risco considerado significativo.

    • c.

      A implantação de pacemaker permanente não deve ser considerada para alívio de sintomas (em doentes refratários a terapêutica médica) em situaçôes de MH obstrutiva que sejam candidatos a redução septal (classe III, nível de evidência C). Mas o pacing de dupla câmara pode ser tentado nos doentes sintomáticos com MH obstrutiva nos quais já foi implantado CDI para prevenção de morte súbita.

  • 11.

    Especificamente em relação à estratificação do risco de morte súbita:

    • 1.

      Os fatores de risco convencionais a avaliar e aos quais é aparentemente dado maior peso específico nestas Recomendações são:

      • a.

        Presença de arritmias ventriculares malignas (FV; TVS) ou história de morte súbita reanimada; (Recomendação para CDI: classe I, nível de evidência B).

      • b.

        História familiar de morte súbita (Recomendação para CDI: classe IIa, nível de evidência C).

      • c.

        Síncope não esclarecida (particularmente se recente - < 6 meses) - (Recomendação para CDI: classe IIa, nível de evidência C).

      • d.

        TVNS documentada (Holter) (>/=3 complexos a >/= 120/min) particularmente nos < 30 anos; pode ser útil monitorização a longo prazo. (Recomendação para CDI: classe IIa, nível de evidência C). Curtas salvas isoladas de TVNS (na ausência de outros factores de risco) têm um nível de Recomendação mais fraco (classe IIb, nível de evidência C).

      • e.

        Espessura parietal máxima de 30mm (Recomendação para CDI: classe IIa, nível de evidência C).

      • f.

        A avaliação da resposta da pressão arterial ao exercício é considerada Recomendação classe IIa, nivel de evidência B; poderá ter indicação para CDI na presença de outros factores de risco (Recomendação classe IIa, nível de evidência C). Na ausência de outros fatores de risco tem um nível de Recomendação mais fraco (classe IIb, nível de evidência C).

    • 2.

      A periodicidade da avaliação com a finalidade de estratificação do risco é recomendada cada 12 a 24 meses (em doentes sem CDI implantado) – Recomendação classe IIa, nível de evidência B.

    • 3.

      São Recomendações de Classe IIb (estratificação de risco):

      • g.

        A realização de RMC com contraste (nível de evidência C).

      • h.

        A presença de múltiplas mutações (nível de evidência C).

      • i.

        A presença de obstrução (nível de evidência B).

De realçar o comentário de que a presença de um único fator de risco pode ser suficiente para decidir implantação de CDI em muitos doentes, mas que a decisão continua a ser individualizada, tendo em conta a idade, o fator de risco específico e a avaliação do risco-benefício da implantação do dispositivo.

E a implantação de CDI em portadores - indivíduos com genótipo identificado, mas sem manifestações clínicas de MH - não está indicada (Recomendação classe III, nível de evidência C).

O documento é extenso e bastante completo. São feitas Recomendações claras em relação aos candidatos a terapêuticas mais agressivas. É dado grande relevo à fibrilhação auricular (FA) como causa de sintomas e importante fator de risco no que concerne à morbilidade e mortalidade. É considerada a possibilidade do benefício terapêutico da ablação da FA por radiofrequência (nos doentes com sintomas refratários ou na impossibilidade da terapêutica com antiarrítmicos) - Recomendação classe IIa, nível de evidência B – ou mesmo, em doentes selecionados, o procedimento de Maze com encerramento do apêndice auricular (Recomendação classe IIa, nível de evidência C).

São focadas as Recomendações na gravidez e puerpério, incluindo os fármacos a utilizar ou a evitar. São tecidas considerações importantes em relação às limitações legais para o exercício de certas profissões nos doentes com MH. O documento é no entanto omisso em relação aos portadores sem fenótipo da doença.

Por fim, são equacionadas as prioridades em termos de investigação nesta doença.

Em suma, este é um documento adaptado ao momento presente - refletindo os avanços diagnósticos e terapêuticos dos últimos 10 anos – e que deve ser lido (e relido) por todos os cardiologistas que tratam doentes com miocardiopatia hipertrófica.

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