Morreu o Doutor Carlos. Foi por esta forma (Doutor Carlos) respeitosa e familiar que o trataram, ao longo de décadas, os seus discípulos e continuadores. Para eles, o Doutor Carlos era o médico cardiologista sempre acessível que se disponibilizava para, após a colheita da história clínica, discutir durante um longo período, à cabeceira do doente, os detalhes de uma auscultação cardíaca, em que era exímio. Ou que, no final da consulta de cardiologia do IPO, se sentava com meia dúzia de eletrocardiogramas e rodeado de jovens internos de cardiologia, ensinando‐lhes as nuances da fibrilação auricular, os detalhes da condução intra‐auricular e introduzindo‐os no universo dos bloqueios intraventriculares, que tanto o atraiam e vieram a constituir a temática da sua Tese de Doutoramento.
O Doutor Carlos, como grande pedagogo que era, ensinava com gosto as coisas simples de que é feita a vida clínica, e essa forma de estar na medicina encantava os alunos e jovens médicos.
Licenciado no início dos anos cinquenta na Escola então situada no Hospital de Santa Marta, transitou seguidamente, integrando a equipa de Arsénio Cordeiro, para o novo Hospital Escolar de Santa Maria. Essa transição foi traumática e deixou feridas e rivalidades que levaram anos e anos a cicatrizar. Carlos Ribeiro deixara amigos nos Hospitais Civis de Lisboa (HCL) e essa ligação fez com que, de uma forma persistente e continuada, procurasse os CONSENSOS que permitiram a normalização das relações entre as duas grandes Instituições da cardiologia lisboeta. Essa procura de consensos, uma característica importante da sua personalidade, veio, mais tarde, a mostrar‐se decisiva no Hospital de Santa Maria (HSM) na conciliação entre os dois grupos de cardiologia desta Instituição, no qual teve um papel relevante, chamando‐os à colaboração com a Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC).
Como investigador, Carlos Ribeiro marcou uma posição de relevo em estudos experimentais no campo da arritmologia e perturbações de condução que culminaram com a sua Tese de Doutoramento sobre bloqueios intraventriculares esquerdos.
Em 1980, após a jubilação do Professor Arsénio Cordeiro, Carlos Ribeiro assumiu a direção da Unidade de Tratamento Intensivo para Coronários (UTIC) tendo, de imediato, implementado uma medida inovadora em Portugal – a informatização do processo clínico, a que se seguiu a elaboração de normas de diagnóstico e tratamento das principais patologias, ampliando as que vinham a ser utilizadas desde a abertura da UTIC, e que viriam a ser publicadas no final da década de oitenta, em dois volumes intitulados «Cuidados Intensivos para Doentes das Coronárias». A partir desta base de dados foi possível fazer investigação clínica sistematizada. Carlos Ribeiro estava, de facto, adiante do seu tempo!
Carlos Ribeiro esteve no palco da SPC durante trinta anos devendo considerar‐se a figura mais influente da Sociedade na sua geração. Entrou para cargos diretivos em 1966, como secretário-adjunto, foi secretário‐geral de 1972 a 1978, tendo estado na origem do primeiro Congresso Português de Cardiologia, realizado em 1974, e cujo êxito fez com que se tornasse anual a partir dos anos oitenta, constituindo‐se desde então na mais importante realização da SPC. Durante o seu mandato de presidente (1978‐80) promoveu uma revisão e atualização dos Estatutos da SPC que se mostraria essencial para o desenvolvimento futuro desta Sociedade, a democratização no acesso aos principais cargos, nomeadamente a não recondução dos presidentes, e a criação de Grupos de Estudo e Associações Especializadas que trouxeram uma dinâmica imparável ao crescimento da SPC. Mais uma vez Carlos Ribeiro adiante do seu tempo!
Registe‐se ainda o impulso que deu às relações internacionais da SPC privilegiando inicialmente a Espanha, tendo elaborado protocolos de investigação com centros de cardiologia destacados deste país na área da cardiopatia isquémica. A presença da cardiologia portuguesa na Europa foi igualmente um dos objetivos do seu mandato tendo‐se dado os primeiros passos para os Grupos de Estudo da SPC colaborarem a nível europeu. Carlos Ribeiro foi o primeiro cardiologista português que integrou o Board da ESC, como vice‐presidente no mandato do Prof. Krähenbühl (1988‐90).
Quando deixou a direção da SPC em 1981, estavam lançadas as bases para a aquisição de uma sede própria e para o relançamento da Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC) na sequência do Boletim da SPC cuja publicação, sob a direção de Jacinto Bettencourt, havia cessado em 1980. A direção de M. Ramos Lopes (1981‐83) convidou Carlos Ribeiro para diretor da RPC cargo que desempenhou até 1996, data da sua Jubilação. A Revista, de início bimestral, passou posteriormente a publicação mensal, tendo a solidez do seu material científico vindo a afirmar‐se no panorama nacional e internacional como sendo a mais prestigiada publicação médica portuguesa.
A sua carreira docente na FML ficou marcada por uma visão muito abrangente do ensino pré‐graduado desde as ciências básicas às cadeiras clínicas, que teve oportunidade de pôr em prática na regência de cadeiras como a «Fisiopatologia Geral» e a «Introdução à Clínica» incluÍdas no plano de estudos por sua influência, com significativa valorização do novo plano de estudos médicos da FML.
Na última década da sua carreira docente, Carlos Ribeiro assumiu funções de relevo como presidente do Conselho Científico da Faculdade de Medicina de Lisboa (FML)de 1991 a 1996. A sua dedicação ao ensino pós‐graduado, concretizada com a criação do Gabinete de Estudos Pós‐Graduados (GEPOG), do qual foi o primeiro responsável, permitiu lançar as bases de uma formação continuada pós‐licenciatura, cuja oportunidade ficou comprovada pela amplitude que ganhou nos anos subsequentes, envolvendo a maioria dos docentes da FML. Os «Cursos de Introdução na Investigação Clínica» constituíram uma outra iniciativa oportuna e com grande aceitação pois se destinavam aos médicos envolvidos em ensaios clínicos internacionais, patrocinados pela indústria farmacêutica, que começavam a ganhar grande projeção no campo da investigação científica. Tiveram sete edições de 1989 a 1995, os primeiros incluindo docentes estrangeiros, nomeadamente do Torax Center de Roterdão, e a eles acorriam médicos de diferentes Faculdades e das mais variadas especialidades. Mais uma vez, Carlos Ribeiro adiante do seu tempo!
O sentido ético do exercício da medicina, uma das referências fundamentais do percurso de Carlos Ribeiro, torna natural que, após a Jubilação e entre 1996 e 1999, tenha exercido o cargo de Presidente da Ordem dos Médicos tendo incluído na sua agenda temas que, ao longo de décadas de ligação à formação médica, em particular pós‐graduada, tinham então todo o sentido: a formação continuada, a recertificação médica e as relações com a Indústria Farmacêutica. Tratavam‐se de temas muito oportunos, de grande atualidade e que, ainda hoje, passados mais vinte anos, não encontraram uma solução consensual. Carlos Ribeiro adiante do seu tempo!
Em 2006, por altura do seu octogésimo aniversário, os seus discípulos promoveram‐lhe uma homenagem nacional que ficou registada para a posteridade num livro intitulado «CARLOS RIBEIRO. A vida modo de conhecer» com depoimentos de colegas, amigos, admiradores e familiares que retratam a figura de Carlos Ribeiro e o seu percurso. São da apresentação dessa homenagem, de que fui um dos promotores, as palavras com que encerro esta evocação de Carlos Ribeiro: «Por detrás de todo este percurso e dando‐lhe um sentido está o cidadão exemplar, com carácter impoluto, capacidade de trabalho extraordinária e uma disponibilidade total para os doentes, os discípulos, as Instituições que servia.»
À sua numerosa e encantadora família, em particular à sua mulher Sra D. Helena Ferro Ribeiro, companheira de todo a sua vida que, de uma forma muito discreta, soube criar o ambiente de confiança e tranquilidade para a plena realização das suas tarefas, aos seus sete filhos e dezasseis netos apresentamos as nossas sinceras condolências.