Até ao recente desenvolvimento da implantação de válvulas aórticas por via percutânea (TAVI), o tratamento da estenose aórtica tinha sido sempre potencialmente cirúrgico. A história natural da estenose aórtica isolada, não reumática, era bem conhecida dos cardiologistas através da sua descrição em livros de texto clássicos. O diagnóstico era clínico (auscultação típica) e o aparecimento de sintomas, sobretudo de angina ou síncope de esforço, bem como os dados do eletrocardiograma (hipertrofia ventricular esquerda com sobrecarga sistólica) e da radiografia do tórax (dilatação da aorta ascendente), permitiam ao cardiologista discutir com o doente a necessidade potencial de cirurgia, habitualmente eletiva. A ecocardiografia transtorácica, particularmente com Doppler, veio melhorar a quantificação do gradiente transvalvular e da área valvular, permitindo avaliar a gravidade da estenose, bem como analisar prospetivamente a evolução da função ventricular esquerda. A indicação cirúrgica ocorria quando os sintomas que interferiam na qualidade de vida eram acompanhados de sinais de gravidade da estenose valvular e/ou quando a função ventricular começava a deteriorar-se.
O cardiologista individual em ambiente extra hospitalar podia ser responsável pela decisão da necessidade da cirurgia, embora fossem vários os problemas que enfrentava neste contexto: 1) o da certeza de que os sintomas eram atribuíveis à estenose valvular aórtica, requerendo frequentemente coronariografia para excluir a presença e/ou associação de doença das artérias coronárias quando havia discrepâncias; 2) a decisão sobre o timing correto da cirurgia e o que deve oferecer – melhor qualidade de vida ou mais anos de vida; 3) a recetividade por parte do doente (e família) à intervenção cirúrgica, explicando-lhes que a cirurgia poderia ser paliativa e não necessariamente definitiva; 4) a avaliação e controlo de comorbilidades para diminuir o potencial risco cirúrgico; 5) o centro cirúrgico ou o cirurgião a quem referenciar o doente; 6) a discussão do tipo de prótese (mecânica ou biológica) que poderia ser usada, as suas implicações e as preferências do doente; etc.
Mais frequentemente, em alternativa a esta responsabilidade individual do cardiologista, intermediário entre o seu doente e o cirurgião/centro de referência, a maioria dos doentes eram enviados aos serviços de cardiologia de hospitais com cirurgia cardíaca para avaliação da gravidade da estenose e do timing da cirurgia. Depois das múltiplas avaliações diagnósticas e de risco cirúrgico, o doente era apresentado em reunião médico-cirúrgica e a decisão transmitida ao doente, podendo não haver qualquer relação formal médico (cardiologista/cirurgião)-doente.
Em qualquer das duas alternativas, quer porque os doentes mais idosos e/ou de maior risco não eram referenciados aos hospitais quer porque os cirurgiões os recusavam nas reuniões médico-cirúrgicas, um número indeterminado de doentes ficava por tratar. As TAVI vieram criar novas esperanças e expectativas para estes doentes.
A introdução das TAVI veio também popularizar o conceito do Heart Team e a sua existência é reconhecida nas Guidelines internacionais como indispensável. Tendo estado ligado durante mais de 30 anos a serviços de cirurgia cardíaca e tendo vivido o início da intervenção coronária percutânea, o conceito de partilha de responsabilidades, para proporcionar ao doente o melhor e mais seguro tratamento, faz todo o sentido. Devia ser sempre assim, num ambiente hospitalar institucional! A principal razão para se realçar agora o conceito do Heart Team deve-se, sobretudo, à dificuldade da decisão numa fase ainda inicial de um tratamento alternativo à estabelecida cirurgia da estenose aórtica grave. E o problema é ainda maior porque as TAVI estão indicadas nas Guidelines para estenoses valvulares aórticas sintomáticas graves recusadas para cirurgia (classe I, nível b) ou de alto risco cirúrgico (classe IIa, nível b). Num hospital com cirurgia cardíaca e com programa de TAVI a decisão do tipo de intervenção ou da sua recusa deve ser assumida pelas duas partes envolvidas nos tratamentos alternativos. O doente em si mesmo é particularmente complexo, por ser habitualmente mais idoso e com mais comorbilidades. Mas o Heart Team, ao contrário da intervenção coronária percutânea, requer mais componentes do que os cardiologistas de intervenção estrutural e os cirurgiões. Requer também anestesistas, cirurgiões vasculares, radiologistas com treino em TAC e RM vascular, cardiologistas clínicos e outros que façam ecografia transesofágica e, eventualmente, neurologistas e médicos de medicina interna/nefrologia/pneumologia, etc. Pessoalmente, como cardiologista extra hospitalar e referenciador destes doentes, gostaria que o «médico assistente» fosse também envolvido, informado do dia da discussão médico-cirúrgica e pudesse, no caso de ter uma relação médico-doente mais apertada, discutir e compartilhar a decisão final. Reconheço, no entanto, que o conceito teórico do Heart Team é difícil de implementar institucionalmente pelas dificuldades atuais de reunir todas as pessoas que devem estar envolvidas. Mas este objetivo devia ser incentivado porque na fase atual os doentes são particularmente graves e só mais tarde, na evolução «natural» das TAVI e na sua expansão para doentes menos graves, e em alternativa à cirurgia clássica, os componentes do Heart Team poderão ser reduzidos. Naturalmente que o processo de decisão deve ser individualizado em cada instituição e para cada doente, sendo que este deverá ter sempre a palavra final.
Estas breves reflexões sobre a cardiologia médico-cirúrgica no contexto do tratamento atual das estenoses aórticas graves, vêm a propósito do artigo de Eulália Pereira et al., publicado no presente número da Revista Portuguesa de Cardiologia1. Os autores (AA) pretenderam avaliar o impacto do programa de TAVI, iniciado na sua instituição em 2007, no perfil dos doentes e nos resultados da cirurgia valvular aórtica, comparando os doentes operados em 2005 (n=103) com os operados em 2009 (n=111).
Em 2009 foram operados mais oito doentes, com média de idades superior (71,2 versus 69,2 anos) e mais doentes com idade ≥77 anos (42 doentes ou 37,8% versus 19 doentes ou 18,4%). A existência de comorbilidades era também superior nos doentes operados em 2009 (52,3 versus 40,8%, p=0,061), salientando-se a maior percentagem de doentes com doença pulmonar obstrutiva crónica (19,8 versus 14,9%), doença cerebrovascular (8,1 versus 6,9%) e angioplastia coronária prévia (6,3 versus 0,0%, p=0,01). Talvez com implicações prognósticas, os doentes operados em 2009 tinham menos anemia (13,5 versus 17,0%), menos insuficiência cardíaca classes III-IV da NYHA (36,1 versus 47,1%), melhor fração de ejeção ventricular esquerda (56,2 versus 54,0%) e menos hipertensão pulmonar por ecocardiografia (11,5 versus 21,4%, p=0,043). O EuroSCORE logístico foi semelhante (7,6 versus 7,5%). É com alguma dificuldade que se aceita que os doentes operados em 2009 tivessem pior perfil de risco, com exceção de serem doentes mais idosos.
Relativamente aos resultados cirúrgicos, a mortalidade operatória foi mais baixa nos doentes operados em 2009 (1,8 versus 3,9%). Estes resultados são excelentes. Só faleceram dois doentes e dado que por análise multivariada a cirurgia com carácter de urgência foi o principal fator preditor, presume-se (apenas mencionado na discussão) que estes doentes tenham sido operados de urgência. A mortalidade ao fim do primeiro ano de seguimento é igualmente muito boa (4,5 versus 10%) e deve também ser realçada. Quanto à morbilidade pós-operatória foi mais baixa nos doentes operados em 2009 (13,5 versus 23,3%, p=0,047), sendo de mencionar a diminuição da necessidade de ventilação mecânica superior a 24h (6,3 versus 24,5%, p <0,001), e o mesmo se verificou na morbilidade ao fim de um ano (9,9 versus 20,4%, p=0,032) com menos reinternamentos de causa cardíaca (9,0 versus 19,8%, p=0,027). São de realçar apenas um acidente vascular cerebral no pós-operatório imediato e a sua ausência ao fim de um ano, bem como a necessidade de pacemaker em 11 doentes no pós-operatório.
Embora os AA não tenham reconhecido as limitações do seu trabalho agora publicado, teria sido interessante saber-se quantos doentes foram considerados em 2009 para tratamento cirúrgico (e/ou percutâneo), quantos foram recusados pela cirurgia (eventualmente para qualquer dos tratamentos), quantos doentes foram operados de urgência, qual o tipo de prótese que foi usada (mecânica ou biológica), por que razão foram reoperados oito doentes no pós-operatório imediato e três doentes no primeiro ano de seguimento, qual a medicação feita no seguimento, etc.
Para além dos excelentes resultados cirúrgicos apresentados, que se espera estejam a ser mantidos, o artigo merece alguns comentários. Presumindo que não houve alterações na equipa cirúrgica nem nas condições logísticas do centro cirúrgico, a melhoria dos resultados não deve ser só atribuído à maior experiência dos operadores no período de quatro anos nem, eventualmente, a uma play of chance naquele ano específico. Os AA reconhecem que os resultados se relacionam com «a melhoria exponencial dos cuidados de saúde prestados, a evolução das tecnologias médico-cirúrgicas e o apoio de novos exames subsidiários».
Para o autor deste Comentário, o artigo e os resultados traduzirão uma maior co-responsabilização médica/cardiológica tanto na avaliação dos doentes como na proposta mais adequada de tratamento. A introdução e a divulgação de uma alternativa à cirurgia cardíaca de substituição valvular aórtica, menos agressiva e mais adequada para doentes mais idosos, com mais comorbilidades e recusáveis ou de alto risco cirúrgico, fez, certamente, aumentar a referenciação de doentes. Esta referenciação obrigou a um envolvimento mais responsável da equipa cardiológica em todo o processo. Os doentes passaram a ser melhor avaliados, mesmo que essa melhor avaliação pudesse traduzir as exigências para a seleção e introdução de uma nova técnica alternativa, seguindo recomendações internacionais. O benefício seria indiretamente para a cirurgia e diretamente para o doente. Os cirurgiões poderão ter beneficiado por terem os doentes mais bem estudados e, eventualmente, de menor risco (os de maior risco passariam a TAVI), mas são os doentes os grandes beneficiados. No mínimo, embora tivessem sido operados só mais oito doentes (com melhores resultados que anteriormente), devem acrescentar-se mais 20 submetidos a TAVI no mesmo ano, segundo dados do Ministério da Saúde e não referidos no artigo, o que significa um aumento de 27,2% de doentes tratados nesse ano.
O artigo reforça indiscutivelmente a importância do Heart Team na decisão do tratamento da estenose aórtica grave sintomática, tal como se verificou no tratamento da doença coronária complexa desde a introdução, há muitos mais anos, da intervenção coronária percutânea. É o relembrar da importância da cardiologia médico-cirúrgica, tal como deveria ter sempre existido, mas que talvez estivesse esquecida em alguns hospitais.