Apesar dos avanços da medicina, há já várias décadas que os exames comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) para o estudo e estratificação de risco da doença coronária se mantêm inalterados em cuidados de saúde primários. Apesar do desajuste à prática clínica contemporânea ser há muito evidente, a recente publicação das Recomendações Europeias para o diagnóstico e tratamento da síndrome coronária crónica veio realçar ainda mais este desfasamento e evidenciar a necessidade imperiosa de mudança na forma como são estudados estes pacientes em Portugal. No seguimento desta publicação, o Grupo de Estudo de Cardiologia Nuclear, Ressonância Magnética (RM) e Tomografia Computorizada (TC) Cardíaca, o Grupo de Estudo de Ecocardiografia e o Grupo de Estudos de Patofisiologia do Esforço e Reabilitação Cardíaca da Sociedade Portuguesa de Cardiologia iniciaram um processo de reflexão conjunta sobre as limitações atuais e a forma como poderiam ser aplicadas as recomendações internacionais no nosso país. Para tal, os autores sugerem que os novos métodos de imagem (ecocardiograma de esforço ou de sobrecarga, TC e RM cardíaca) se associem à prova de esforço e cintigrafia de perfusão do miocárdio no portfólio de exames oferecidos pelo SNS. Esta alteração permitiria uma plena adoção das recomendações europeias e uma melhor utilização dos meios, de acordo com o contexto clínico, a disponibilidade e as particularidades locais. A adoção de “normas de orientação clínica” baseadas nestes pressupostos traduzir‐se‐ia numa melhoria qualitativa na abordagem e otimização terapêutica destes pacientes, ao mesmo tempo em que potenciaria uma gestão eficaz dos recursos disponíveis, com potenciais ganhos de saúde e financeiros.
Despite constant medical evolution, the reimbursement policy of Portuguese National Health Service (NHS) for the study and risk stratification of coronary heart disease has remained unchanged for several decades. Lack of adjustment to contemporary clinical practice has long been evident. However, the recent publication of the European Guidelines for diagnosis and treatment of chronic coronary syndromes further highlighted this gap and the urgent need for a change. Prompted by these Guidelines, the Working Group on Nuclear Cardiology, Cardiac Magnetic Resonance and Cardiac CT, the Working Group on Echocardiography and the Working Group on Stress Pathophysiology and Cardiac Rehabilitation of the Portuguese Society of Cardiology, began a process of joint reflection on the current limitations and how these recommendations could be applied in Portugal. To this end, the authors suggest that the new imaging methods (stress echocardiogram, cardiac computed tomography and cardiac magnetic resonance), should be added to exercise treadmill stress test and myocardial perfusion scintigraphy in the available exam portfolio within the Portuguese NHS. This change would allow full adoption of European guidelines and a better use of tests, according to clinical context, availability and local specificities. The adoption of clinical guidance standards, based on these assumptions, would translate into a qualitative improvement in the management of these patients and would promote an effective use of the available resources, with potential health and financial gains.
As doenças cardiovasculares (CV) são a principal causa de mortalidade e morbilidade em Portugal. Entre estas, a doença coronária, pela morte prematura ou perda de anos de vida ativa (laboral e social) que condiciona e pelos custos médicos associados (intervenção, farmacoterapia, internamentos por síndromes coronárias agudas ou insuficiência cardíaca), assume particular relevância no panorama nacional1,2.
Em cerca de metade dos casos, a primeira manifestação da doença coronária é o enfarte agudo do miocárdio ou a morte súbita3, o que a torna uma doença particularmente temível, realçando a necessidade de se investir principalmente na prevenção. Nas últimas décadas a evolução no tratamento desta patologia traduziu‐se numa lenta, mas progressiva, diminuição da mortalidade em termos nacionais e internacionais. Ainda assim, uma grande proporção de casos com danos irreversíveis poderia ser evitada através de uma deteção precoce e correção atempada dos fatores que promovem a progressão da doença.
Sendo uma doença de evolução lenta, mantém‐se subclínica durante grande parte da vida de um indivíduo. Esta característica permite que a sua evolução natural seja modificada, se detetada precocemente. Uma vez que 90% da evolução da doença podem ser justificados por fatores de risco cardiovascular modificáveis4, existe um enorme potencial de intervenção e modificação da sua história natural, evitando danos irreversíveis, como o enfarte ou a morte súbita. O objetivo primordial do nosso sistema nacional de saúde deverá ser, por isso, o fomento da saúde cardiovascular, através da promoção de estilos de vida saudáveis e a identificação dos indivíduos em risco ou com doença cardiovascular já estabelecida que necessitam de terapêuticas específicas com vista à modificação prognóstica e à melhoria da qualidade de vida da população.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS), mais propriamente no nível dos cuidados de saúde primários, assume um papel primordial na promoção da saúde cardiovascular, rastreio dos fatores de risco cardiovascular, deteção de doença em fase assintomática e decisão terapêutica. Conscientes da importância dos cuidados de saúde primários na deteção e atuação precoce na doença cardiovascular, espera‐se que um especialista em medicina geral e familiar (MGF) seja capaz de rastrear os seus utentes e identificar aqueles que, pelo seu risco cardiovascular aumentado ou pela presença de doença subclínica, necessitam de orientação terapêutica subsequente. Para tal, é fundamental um uso apropriado dos meios auxiliares de diagnóstico disponíveis, visando a uma elevada eficácia diagnóstica e terapêutica, aprimorando os recursos existentes.
A situação atualAtualmente, para o estudo da doença coronária estável ou para a estratificação de risco cardiovascular em cuidados de saúde primários, o médico de MGF tem ao seu dispor, no SNS, o eletrocardiograma simples, a prova de esforço e a cintigrafia de perfusão miocárdica (CPM). Através de uma requisição (P1), o médico pode referenciar o paciente a um centro convencionado com o Estado para a sua realização.
Exames auxiliares de diagnóstico (EAD) com elevado desempenho como a tomografia computorizada (TC) cardíaca, a ecocardiografia de sobrecarga (farmacológica e de esforço) ou a ressonância magnética cardíaca (RMC) de sobrecarga estão excluídos do leque de opções; o Serviço Nacional de Saúde não tem acordos de convenção para estas técnicas, nem autoriza que o médico de MGF requisite diretamente estes exames ao hospital de referência. Dentro do SNS, estes EAD apenas podem ser requisitados no nível hospitalar contribuindo para a sobrecarga da consulta de cardiologia com pacientes referenciados para exames de confirmação/exclusão de doença coronária. Numa especialidade em que, pela sua natureza, as listas de espera têm de ser mantidas curtas – sob o risco de não serem fornecidos cuidados médicos atempados a situações potencialmente fatais em curto prazo – o impacto negativo destas referenciações não deve ser negligenciado.
Por que razão está assim o sistema ordenado? Numa abordagem superficial pode pensar‐se sobretudo em questões de sustentabilidade financeira. De facto, o eletrocardiograma e a prova de esforço são exames com um custo inicial relativamente baixo5. Porém, o mesmo não se passa com a CPM, cujo custo é da mesma ordem de grandeza de uma RMC de sobrecarga e muito superior ao de um ecocardiograma de sobrecarga, segundo as tabelas de preços do SNS publicadas em diário da república5. Além disso, a disponibilidade da CPM como único exame de imagem faz com que esta seja usada na estratificação de risco ou na exclusão de doença coronária em pacientes com uma probabilidade pré‐teste intermédia/baixa ou mesmo baixa. Neste contexto, a TC cardíaca tem um custo francamente inferior, quer em termos de estratificação de risco através da quantificação de cálcio coronário (score de cálcio)6 – com um custo próximo a uma prova de esforço – quer na exclusão de doença coronária, através de coronariografia não invasiva (angioTC coronária) – com um custo inferior em cerca de 30% ao da CPM5. Por outro lado, a abordagem inicial de um paciente com suspeita de doença coronária através da realização de uma prova de esforço, apesar de ter um custo inicial relativamente baixo, pode traduzir‐se em custos acrescidos justificados pela sua baixa especificidade/valor preditivo positivo7 e na cascata de exames subsequente a que frequentemente conduz. Este facto, bem documentado em estudos de custo‐efectividade8–10, é o principal motivo pelo qual as “normas de orientação clínica” do Reino Unido, desde 2014 e, mais recentemente, as guidelines europeias11, deixaram de recomendar esta abordagem, estimulando, pelo contrário, uma referenciação inicial mais custo‐eficaz, baseada em estudos de imagem (particularmente TC cardíaca)12.
Na realidade, o único motivo que justifica a atual situação é puramente histórico: estas eram as modalidades disponíveis nos anos 70 e 80 do século XX, altura em que o SNS foi estabelecido. Felizmente, nestes 40 anos a medicina evoluiu muito e várias foram as inovações introduzidas no ambiente hospitalar, que contribuíram para a melhoria da sobrevida e qualidade de vida dos pacientes com doença coronária. Porém, nos cuidados de saúde primários, onde reside a maioria dos pacientes com risco CV e onde se deveriam centralizar os esforços de combate ao desenvolvimento e progressão da doença coronária, as ferramentas mantêm‐se imutáveis há 40 anos.
É nosso entender que a atual forma de acesso aos EAD nos cuidados primários do SNS não é eficaz, é dispendiosa e não se adequa às menores probabilidades pré‐teste observadas em estudos mais recentes/contemporâneos de grandes populações13. Contribui também para uma elevada taxa de referenciação inapropriada a consultas hospitalares na área da cardiologia, com potencial impacto negativo na lista de espera para primeiras consultas. Parece‐nos, por isso, essencial que se repense toda a estratégia de diagnóstico e orientação da doença cardiovascular no contexto da MGF, tirando partido da eficácia e custo‐efetividade de todas as técnicas de diagnóstico atualmente disponíveis14.
Evolução internacionalVários sistemas nacionais de saúde europeus abandonaram a utilização primordial da prova de esforço como primeira linha neste contexto, promovendo uma utilização racional dos EAD baseados em imagem e reservando a prova de esforço para situações em que é necessária informação adicional específica. As Guidelines Europeias de Síndromes Coronárias Crónicas, endossadas pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia, e que são as recomendações de referência para Portugal, seguem a mesma via de raciocínio e recomendam que a prova de esforço não seja primariamente usada no diagnóstico de doença coronária, uma vez que o seu baixo desempenho na confirmação/exclusão de doença coronária obrigará frequentemente a testes adicionais, atrasando o diagnóstico atempado, aumentando custos e gerando ansiedade desnecessária aos indivíduos com provas falsamente positivas ou, talvez ainda mais importante, criando uma falsa sensação de segurança aos pacientes com provas falsamente negativas15. Esta publicação, de setembro de 2019, veio realçar o desfasamento da realidade portuguesa em relação às boas práticas médicas internacionais no diagnóstico de doença coronária e serviu de mote à publicação desta posição de consenso dos nossos grupos de estudo. Nas atuais condições do SNS, um médico de MGF não pode exercer uma medicina baseada na evidência sem sobrecarregar as consultas hospitalares de cardiologia ou, em alternativa, referenciar todos os seus pacientes com suspeita de doença coronária para CPM – o que pode não ser o mais indicado na situação específica16.
Potencial desigualdade de géneroEsta situação é especialmente discriminatória para as mulheres, uma vez que as técnicas atualmente acessíveis em cuidados de saúde primários têm pior desempenho em termos de sensibilidade e especificidade no sexo feminino. Vários estudos demonstram, de forma consistente, que a prova de esforço, maioritariamente validada para populações do sexo masculino, tem um desempenho insuficiente no sexo feminino, com sensibilidades e especificidades pouco acima dos 50%17–19. Por outro lado, a CPM expõe as pacientes a radiação ionizante (especialmente relevante em mulheres em idade fértil) e pode ter pior desempenho no sexo feminino devido à menor resolução espacial e a artefactos decorrentes da atenuação mamária16,20–22.
Redefinição do papel da prova de esforçoRecomendações para um uso racional, à luz da evidência científica atual
Após a publicação das recomendações para o diagnóstico e abordagem das síndromes coronárias crónicas, torna‐se premente uma redefinição do papel da prova de esforço na realidade portuguesa. Assim, a abordagem e os algoritmos propostos neste documento não pressupõem o seu uso indiscriminado para estudo da doença coronária e estratificação de risco cardiovascular, mas também não pretendem excluir a sua utilização em contexto clínico adequado. Pelo contrário, a prova de esforço apresenta características únicas que a tornam uma importante peça do armamentário dos EAD em doença coronária. Neste contexto, o seu papel não se limita à deteção de doença coronária quando os testes de imagem não estão disponíveis (classe IIb, nível de evidência B) ou como modificador da probabilidade clínica, como é sugerido pelas guidelines11. O seu valor diagnóstico, prognóstico e impacto na decisão clínica está bem estabelecido em diferentes áreas da cardiologia, que transcendem o propósito deste documento, nomeadamente na avaliação de atletas, avaliação e seguimento de doentes em programa de reabilitação cardíaca, avaliação de doentes com sintomas compatíveis com arritmias induzidas pelo exercício, avaliação da capacidade funcional e desenvolvimento de sintomas, quer no doente coronário, quer no doente com patologia valvular ou congénita23.
Processo recomendadoOs nossos grupos de estudo basearam‐se nas mais recentes recomendações europeias (síndromes coronárias crónicas, dislipidemia e estratificação de risco CV) para elaborar normas de referenciação a EAD que se possam adaptar à realidade nacional. Foi nomeada uma comissão de redatores iniciais (AF e RLL para a estratificação de risco cardiovascular em pacientes assintomáticos e AB, CF e MV para a suspeita de doença coronária) que apresentaram as suas propostas aos restantes autores destas recomendações. Com base neste trabalho inicial, foram criados os cenários de referenciação adequada a EAD e qual a orientação posterior recomendada, de acordo com os resultados dos testes.
Estratificação de risco CV em pacientes assintomáticosNo contexto dos cuidados de saúde primários, a estratificação de risco CV em pacientes assintomáticos assume particular relevância. Os pacientes de maior risco vascular devem ser identificados, de forma a iniciar estratégias de prevenção adequadas, ao mesmo tempo em que se evita o sobretratamento em pacientes de menor risco cardiovascular – que não beneficiam de estratégias terapêuticas mais intensivas e que podem sofrer com os seus efeitos adversos. Pacientes com mais de 40 anos devem ser estratificados de acordo com o score de risco europeu6,24.
Em indivíduos com risco CV moderado e em casos selecionados de baixo risco segundo esta avaliação inicial, o resultado de um “score de cálcio coronário” poderá ajudar a reestratificar o risco em elevado ou reduzido, servindo como um precioso auxiliar à decisão terapêutica. Com efeito, o “score de cálcio coronário” é um marcador da carga aterosclerótica coronária individual resultante da interação dos diferentes fatores de risco cardiovascular e demonstrou ser custo‐efectivo na orientação da terapêutica com estatinas25. Neste sentido, parece ser particularmente relevante na decisão de iniciar estatinas26 e na definição do alvo terapêutico de redução do colesterol LDL, de acordo com as mais recentes recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia27. A Figura 1 representa o fluxograma de decisão e orientação no contexto da estratificação de risco cardiovascular em indivíduos assintomáticos. Após o cálculo do score de risco europeu, uma estratificação adicional de risco através do score de cálcio poderá estar indicado em pacientes com risco CV moderado (score ≥ 1% e < 5%), em pacientes com indicação para fazer estatina e relutantes em iniciar terapêutica e em pacientes com risco CV baixo (score < 1%) na presença de outros FRV não contemplados no score europeu (diabetes mellitus [DM] em jovem {DM1 < 35 anos, DM2 < 50 anos}, doença coronária precoce em parente de 1.° grau [♂ < 55 anos; ♀ < 60 anos], doença inflamatória sistémica [artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistémico, vírus da imunodeficiência humana], menopausa precoce [< 40 anos], quimioterapia ou radioterapia do tórax prévia, doença psiquiátrica e apneia obstrutiva do sono).
Recomendações para a estratificação de risco CV em assintomáticos
(1) A avaliação sistemática do score de risco cardiovascular em idades < 40 anos e na ausência de fatores de risco conhecidos não está recomendada, salvo em alguns grupos particulares nos quais a avaliação desse risco poderá ser equacionada (por exemplo: pilotos de aviação, condutores de pesados).
(2) Avaliação de risco repetida a cada cinco anos (período indicativo, podendo variar).
(3) Considerar estudo funcional não invasivo se sintomas sugestivos de doença coronária.
ScCa – Score de cálcio.
Por outro lado, não faz sentido uma estratificação adicional de risco em pacientes assintomáticos com doença CV já documentada e pacientes com risco CV muito baixo (score < 1% sem outros FRV e sem indicação para terapêutica farmacológica hipolipemiante) ou elevado (score ≥ 5%, DM ≥ 10 anos ou com outro FRV associado ou com lesão de órgão‐alvo, hipercolesterolemia familiar e doença renal crónica) – uma vez que para estes pacientes a estratégia não se alterará significativamente, independentemente do resultado do teste.
Um score de cálcio «zero» identifica pacientes com risco muito baixo de eventos coronários em médio prazo e confirma ou reestratifica no grupo de baixo risco em que se recomenda apenas manter ou promover estilo de vida saudável. Um score de cálcio 1‐99 identifica pacientes com risco intermédio de eventos coronários em médio prazo, sendo recomendável modificação do estilo de vida e ponderar estatina se percentil 50‐74 (colesterol LDL alvo < 100mg/dL). Um score de cálcio ≥ 100 ou percentil ≥ 75 para a idade e sexo está associado a um risco aumentado de eventos coronários em médio prazo, sendo de considerar início de estatina (com o objetivo de uma redução do colesterol LDL ≥ 50% e alvo < 70mg/dL); embora menos bem estabelecido, será também de ponderar o início de ácido acetilsalicílico se percentil ≥ 75. Um score de cálcio superior a 400 identifica pacientes com risco muito aumentado de eventos coronários a médio prazo para os quais será de considerar início de estatina e ácido acetilsalicílico: neste grupo é particularmente importante confirmar a ausência de sintomas [em caso de sintomatologia sugestiva de isquemia, ponderar referenciação a estudos funcionais].
O score de cálcio coronário está particularmente indicado na reestratificação de risco de indivíduos assintomáticos, pelo que não deve ser usado isoladamente em pacientes sintomáticos com suspeita de síndrome coronária crónica. Porém, assim como a prova de esforço, poderá ser usado como reestratificador da probabilidade clínica neste contexto (ver fluxograma de decisão na suspeita de doença coronária, Figura 2).
Algoritmo decisão de acordo com a PPT e probabilidade clínica (passos 2A e 2B)
CPM – cintigrafia de perfusão miocárdica; DC – doença coronária; FEVE – fração de ejeção do ventrículo esquerdo; FRCV – fatores de risco cardiovascular; PE – prova de esforço;PET – tomografia de emissão de positrões; PPT – probabilidade pre‐teste; RMC – ressonânica magnética cardíaca; ScCa – score de cálcio; VE – ventrículo esquerdo.
Em pacientes sintomáticos poderá estar indicada a realização de EAD que permitam confirmar ou excluir a presença de doença coronária e/ou isquemia miocárdica, com o objetivo de iniciar terapêutica adequada. Na avaliação inicial destes pacientes deve ser determinada a probabilidade pré‐teste de doença coronária baseada na idade, no sexo e na sintomatologia (Tabela 1). Deve também bem ser efetuado um estudo analítico com hemograma, creatinina, perfil lipídico, glicose em jejum e hemoglobina glicada (HgA1c), assim como um eletrocardiograma e um ecocardiograma transtorácico. Desde logo, a deteção de uma fração de ejeção ventricular esquerda (FEVE) inferior a 50%, especialmente se associada a alterações da motilidade segmentar, determina uma probabilidade muito elevada de doença coronária e justifica uma referenciação direta à consulta de cardiologia. A realização de EAD adicionais, nomeadamente prova de esforço e/ou «score de cálcio coronário», deve ser ponderada individualmente. Embora não sejam exames obrigatórios, as guidelines europeias recomendam a sua integração no algoritmo de decisão, particularmente como modificadores de probabilidade clínica em pacientes com probabilidades pre‐teste intermédias (baseadas na idade, sexo e sintomatologia) (Figura 2A). A telerradiografia torácica pode também ser um EAD importante em casos de dor torácica atípica ou dispneia – para despiste de patologia pulmonar.
Valorização de sintomas e cálculo da probabilidade pré‐teste (passo 1)
Que sintomas valorizar? Os sintomas têm características suspeitas /anginosas? | |
Angina típica | Cumpre as três características:1 ‐ Desconforto opressivo/constritivo na face anterior do tórax ou no pescoço, mandíbula, ombro ou braço;2 ‐ Desencadeada pelo exercício físico;3 ‐ Aliviada pelo repouso ou nitratos em 5 minutos |
Angina atípica | Cumpre duas das características anteriores |
Dor torácica não anginosa | Cumpre apenas um ou nenhuma das características anteriores |
Qual a probabilidade do paciente com estes sintomas ter doenc¸a coronária? | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Angina típica | Angina atípica | Dor torácica não anginosa | Dispneia | |||||
Idade | Homem | Mulher | Homem | Mulher | Homem | Mulher | Homem | Mulher |
30‐39 | 3% | 5% | 4% | 3% | 1% | 1% | 0% | 3% |
40‐49 | 22% | 10% | 10% | 6% | 3% | 2% | 12% | 3% |
50‐59 | 32% | 13% | 17% | 6% | 11% | 3% | 20% | 9% |
60‐69 | 44% | 16% | 26% | 11% | 22% | 6% | 27% | 14% |
>70 | 52% | 27% | 34% | 19% | 24% | 10% | 32% | 12% |
Probabilidade pré‐teste de doença coronária de acordo com a idade, género e sintomas
Classificação clínica tradicional da suspeita de sintomas anginosos
A integração da probabilidade pré‐teste de doença coronária com o resultado dos EAD acima descritos (eletrocardiograma, ecocardiograma, estudo analítico e,eventualmente, prova de esforço e score de cálcio) determina a probabilidade clínica de doença coronária (Figura 2). Se a probabilidade clínica for baixa (≤ 15%) não existe indicação para investigação adicional. Se a probabilidade clínica for intermédia ou elevada (> 15%), estão indicados testes de imagem para a exclusão ou confirmação do diagnóstico e para a estratificação de risco de eventos coronários. Estes testes devem ser selecionados de acordo com as suas vantagens e limitações, características dos pacientes e disponibilidade local.7 (Tabela A – material suplementar). Duas estratégias são possíveis: 1) uma avaliação anatómica, através da realização de uma angioTC coronária; ou 2) uma avaliação funcional, através de testes capazes de detetar isquemia miocárdica. Enquanto a primeira fornece informações acerca do processo aterosclerótico e é particularmente eficaz na exclusão de doença, em pacientes com probabilidades mais baixas, a segunda, fornece informações acerca do impacto da doença na distribuição do sangue ao miocárdio e é particularmente útil na decisão de revascularização em pacientes com probabilidade mais elevadas ou com doença coronária já conhecida. Ambas provaram utilidade clínica e ser capazes de influenciar favoravelmente o prognóstico destes pacientes.28,29
Uma correta utilização destes testes e uma orientação subsequente de acordo com os seus resultados (ver Tabela 2 para a orientação de acordo com o resultado da angioTC e Figura 3 para a orientação de acordo com os resultados dos testes de isquemia) assegurará uma elevada acuidade diagnóstica, aprimoramento da terapêutica individualizada e uma baixa taxa de referenciações inapropriadas a consultas hospitalares de cardiologia.
Orientação de acordo com os resultados do AngioTC (CAD‐RADS)
CAD‐RADS | Estenose máxima | Interpretação | Avaliação adicional? | Orientação proposta |
---|---|---|---|---|
0 | 0 (ausência de placas) | Ausência de DC | Nenhuma | Tranquilização. Considerar causas não ateroscleróticas para a sintomatologia |
1 | < 25% [sem estenose/ estenose mínima] | DC mínima, não obstrutiva | Nenhuma | Considerar causas não ateroscleróticas para a sintomatologia. Considerar terapia preventiva e modificação de FRV |
2 | 25‐49% (estenose ligeira) | DC ligeira, não obstrutiva | Nenhuma | Considerar causas não ateroscleróticas para a sintomatologia. Considerar terapia preventiva e modificação de FRV |
3 | 50‐69% | Estenose moderada | Considerar avaliação funcional(RMC, ecocardiograma de sobrecarga ou cintigrafia) | Considerar terapêutica anti‐isquémica guiada por sintomas, terapêutica preventiva e modificação de FRV |
4 | A ‐ 70‐99%B ‐ TC > 50% ou 3 vasos ≥ 70% | Estenose severa | A ‐ Considerar avaliação funcional ou referenciação hospitalar à cardiologiaB ‐ Referenciar a cardiologia | Terapêutica anti‐isquémica guiada por sintomas,Terapêutica preventiva e modificação de FRV.Considerar referenciação hospitalar à cardiologia |
5 | 100% (oclusão total) | Oclusão coronária | Referenciar à cardiologia | Terapêutica anti‐isquémica guiada por sintomas.Terapêutica preventiva e modificação de FRV.Referenciar a cardiologia |
N | Não diagnóstico | Não se pode excluir DC obstrutiva | Avaliação adicional/alternativa pode ser necessária |
Modificadores CAD‐RADS: S = stent; G = bypass Ao‐coronário; V = placa com características de vulnerabilidade.
DC– doença coronária; FRV – fatores de risco vasculares; RMC – ressonância magnética cardíaca.
Proposta de algoritmo de orientação de acordo com o resultado dos testes de imagem funcionais para estudo de isquemia
(1) para tratamento farmacológico da sintomatologia de angor/dispneia confrontar com as recomendações relativas a esta temática (páginas 432‐433, 2019 ESC Guidelines for the diagnosis and management of chroniccoronary syndromes. European Heart Journal (2020) 41, 407‐477).
(2) como para qualquer teste, há resultados que podem corresponder a um falso positivo ou a um falso negativo. Se o resultado for negativo e se excluídas outras potenciais causas para a sintomatologia do doente, poderá ser equacionada a realização de outro teste, considerando a probabilidade pré‐teste do doente como guia de apoio a esta decisão. Poderá ser considerada a realização de um exame diferente do inicial.
(para escolha de exame mais adequado, consultar a tabela A do material suplementar «Características dos principais testes de imagem para avaliação de doença coronária»).
A Figura 4 sumariza a abordagem que propomos para o estudo de pacientes sintomáticos com suspeita de que doença coronária no contexto dos cuidados de saúde primários. Em nosso entender, este modelo, que segue as recomendações europeias atuais, seria facilmente aplicável no nosso país e tem um grande potencial de aprimorar recursos de forma custo‐eficaz.
Algoritmo resumo decisão na suspeita de doença coronária
1) Modificadores da PPT: diminuem a probabilidade clínica de doença coronária: 1. PE normal; 2. Ausência de cálcio coronário (Agatston Calcium Score = 0). Aumentam a probabilidade clínica de doença coronária: 1. Presença de FRV; 2. Ondas Q ou alterações do segmento ST‐T no ECG em repouso; 3. Disfunção ventricular esquerda e/ou alterações da contractilidade segmentar em ecocardiograma; 4. Prova de esforço anormal; 5. Calcificação coronária (especialmente se ScCa acima do previsto para a idade (> percentil 50% para a idade e sexo).
ScCa – Score de cálcio; PPT – Probabilidade pré‐teste; Med – Médica.
Quadro‐resumo do algoritmo de decisão clínica em pacientes sintomáticos, com suspeita de doença coronária.
Julgamos que esta estratégia pode ser implantada com grande sucesso no nosso país através de Normas de Orientação Clínica nacionais, baseadas em evidência científica e numa gestão aprimorada dos recursos existentes.
Esperamos que este documento de consenso, elaborado por peritos da área, possa servir de catalisador a uma discussão há muito necessária no nosso país e fomentar o repensar da estratégia dos cuidados de saúde primários na área cardiovascular, particularmente no diagnóstico e orientação da doença coronária.
Passos para a mudançaO grau de desajuste da nossa realidade com as recomendações internacionais é agora tão evidente que parece inevitável a tomada de decisões de mudança relativamente a esta área. Várias estratégias poderão ser estudadas com vista a colmatar esse desajuste. O processo aqui recomendado é apenas uma das soluções possíveis, mantendo a lógica de funcionamento atual dos cuidados de saúde primários no SNS. Porém, outras estratégias poderão ser viáveis, nomeadamente a referenciação dos pacientes diretamente a EAD realizados em meio hospitalar, a pedido do seu médico de MGF, ou a centralização de todo o processo nos hospitais do SNS.
Apesar de toda a evidência de custo‐eficácia proveniente de outras realidades, parece‐nos obrigatória uma análise de custos baseada em dados nacionais. Esta análise deverá ser promovida pela tutela, permitindo que as decisões que venham a ser tomadas tenham por base não só a evidência científica como também a exequibilidade local. Em alguns países, a mudança de paradigma foi acompanhada de um compromisso de não aumento de custos no diagnóstico de doença coronária. Poderemos seguir esses bons exemplos e estudar a melhor estratégia para conseguirmos os mesmos objetivos, com melhorias nos cuidados de saúde prestados à população, sem que isso signifique um encargo adicional para o SNS. Esta abordagem sai, obviamente, do âmbito deste documento e das capacidades deste grupo de peritos. Ainda assim, os GECNRMTC, GEE e GEFERC da SPC manifestam a sua total disponibilidade para participar na discussão do processo de mudança que se avizinha, assim desejem as autoridades competentes.
Obstáculos e resistênciasPara além de uma pequena resistência à mudança inicial, baseada sobretudo na menor familiaridade das indicações, contraindicações, vantagens e desvantagens das “novas” técnicas de diagnóstico da doença coronária, é de prever uma grande aceitação e rápida adoção das novas recomendações por parte dos médicos de família do SNS. Muitos deles utilizam já as estratégias recomendadas internacionalmente, nomeadamente nas guidelines europeias, em pacientes que têm subsistemas de saúde, nomeadamente ADSE, uma vez que para estes utentes é desde há muito possível cumprir estas recomendações (uma vez que testes como a ecocardiografia de sobrecarga, a angioTC cardíaca ou a RMC são comparticipados nestes subsistemas).
Maior resistência será de prever por parte dos centros com convenções com o SNS para a realização de exames de prova de esforço e de cintigrafia. Os primeiros, porque, em longo prazo, a prova de esforço, apesar de manter o seu papel em grupos e contextos clínicos específicos, perderá parte da sua importância na abordagem inicial do estudo da doença coronária. Os segundos porque, apesar de manterem a sua indicação, deixarão de ter a exclusividade dos testes de imagem no SNS. Ainda assim, é de prever uma adaptação gradual à nova realidade, com os primeiros a expandirem a sua convenção à ecocardiografia de esforço ou de sobrecarga farmacológica e os segundos a incorporarem os exames de TC e de RMC na sua oferta diagnóstica.
Discussão/ConclusãoA prática clínica imposta pela atual organização do SNS, nomeadamente em termos de acesso aos EAD da área cardiovascular em cuidados de saúde primários, está francamente desatualizada e potencia ineficiências que se transmitem ao longo de toda a cadeia de cuidados, com sobrecarga do sistema hospitalar. Urge mudar o paradigma da estratificação de risco CV e avaliação de pacientes com suspeita de doença coronária em Portugal, acompanhando a medicina baseada na evidência e as recomendações clínicas internacionais.
É certo que nos próximos anos haverá necessidade de novas atualizações, incorporando resultados de estudos recentes, com grande potencial de alterar as estratégias atuais, nomeadamente o ISCHEMIA TRIAL.30,31 Também por isso (mas não só), o objetivo deste documento não é propor um novo paradigma estanque para mais 40 anos de SNS – que rapidamente se tornaria tão obsoleto como o atual. Pelo contrário, o seu principal desígnio é fomentar o desenvolvimento de um novo conceito de constante monitoração, reavaliação e atualização de processos. Só assim conseguiremos uma medicina de qualidade na área cardiovascular, conciliando, de forma eficiente, o melhor conhecimento científico e os limitados recursos disponíveis.