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Vol. 35. Núm. 9.
Páginas 459-465 (setembro 2016)
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Vol. 35. Núm. 9.
Páginas 459-465 (setembro 2016)
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Open Access
Estudo HIPOGAIA: monitorização da hipocoagulação oral com dicumarínicos no concelho de Gaia
The HIPOGAIA study: Monitoring of oral anticoagulation with vitamin K antagonists in the municipality of Gaia
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12061
Marta Guedes
Autor para correspondência
martasguedes@gmail.com

Autor para correspondência.
, Catarina Rego
Unidade de Saúde Familiar Nova Via, ACeS Grande Porto VIII, Espinho/Gaia, Portugal
Conteúdo relacionado
Rev Port Cardiol. 2016;35:467-810.1016/j.repc.2016.06.004
Victor Machado Gil
Rev Port Cardiol. 2017;36:577-810.1016/j.repc.2016.12.012
Daniel Caldeira, Joaquim José Ferreira, Fausto José Pinto
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Resumo
Introdução

A terapêutica com anticoagulantes é uma medida eficaz na prevenção de eventos tromboembólicos. Das patologias que requerem este tratamento, a fibrilhação auricular (FA) é das que tem maior expressão a nível mundial, com uma prevalência de 1,5‐2%.

Objetivos

Aferir a qualidade da monitorização de doentes com FA não valvular sob anticoagulantes dicumarínicos, nas unidades funcionais (UF) do concelho de Gaia.

Material e métodos

Estudo observacional retrospetivo analítico. População: doentes inscritos nas 37 UF dos ACeS Gaia e Espinho‐Gaia sob hipocoagulação com dicumarínicos, durante o ano de 2014. Fonte dos dados: TAOnet®. Variáveis estudadas: ACeS, UF, idade, género, INR, tempo em intervalo terapêutico (TTR) e terapêutica. O TTR foi calculado pelo método de interpolação linear de Rosendaal. Foram consideradas no mínimo seis visitas por doente. Tratamento estatístico: Microsoft Excel® 2010 e SPSS®21.

Resultados

Foram estudados 479 doentes com FA não valvular, o que correspondeu a 5883 registos. O TTR médio foi de 67,4% (±6,5). Apresentaram mau controlo da hipocoagulação (TTR<60%) 35,3% dos doentes.

Discussão

O nosso estudo revela um padrão de controlo de hipocoagulação moderado, mas superior ao encontrado noutros estudos. No entanto, consideramos que ainda há um grande potencial de melhoria nos cuidados de hipocoagulação prestados nos cuidados de saúde primários.

Palavras‐chave:
Cuidados de saúde primários
Hipocoagulantes orais dicumarínicos
Fibrilhação auricular não valvular
Tempo em intervalo terapêutico
Abstract
Introduction

Anticoagulant therapy is an effective measure in preventing thromboembolic adverse events. Of the diseases in which this treatment is indicated, atrial fibrillation (AF) has the highest incidence worldwide, with a prevalence of 1.5‐2%.

Objectives

To assess the quality of monitoring of patients with non‐valvular AF under oral anticoagulation with vitamin K antagonists in Vila Nova de Gaia healthcare units.

Methods

This was a retrospective observational analytical study of the population registered at the 37 healthcare units of the Vila Nova de Gaia and Espinho health center area under oral anticoagulation with vitamin K antagonists during 2014. The data were collected using TAONet® software. The variables studied were health units, age, gender, INR value, time in therapeutic range (TTR) and medication. TTR was calculated for each patient using the Rosendaal linear interpolation method. It was stipulated that each patient should have undergone at least six INR measurements. Data were analyzed using Microsoft Excel® 2010 and SPSS® version 21, using descriptive and inferential statistical techniques.

Results

A total of 479 patients with non‐valvular AF were studied, corresponding to 5883 INR tests. Mean TTR was 67.4±6.5%, and 35.3% of patients exhibited poor control (TTR <60%).

Discussion

Our study showed moderate control of coagulation parameters, but better than in many international clinical trials and in another Portuguese observational study. Nevertheless, there is still room for improvement in anticoagulation monitoring in primary health care.

Keywords:
Primary health care
Oral vitamin K antagonists
Non‐valvular atrial fibrillation
Time in therapeutic range
Texto Completo
Introdução

A terapêutica com anticoagulantes é uma medida eficaz na prevenção de eventos adversos tromboembólicos. Das patologias que requerem este tratamento, a fibrilhação auricular (FA) é das que tem maior expressão a nível mundial, com uma prevalência de 1,5‐2%1. De acordo com o estudo FATA, a prevalência global de FA encontrada em oito unidades de saúde familiar de Vila Nova de Gaia foi de 1,29%2. A FA pode provocar alterações hemodinâmicas importantes mas o prognóstico é alterado, sobretudo, pelos fenómenos tromboembólicos a que está associada, com consequências significativas em termos de morbimortalidade. O acidente vascular cerebral (AVC) é cinco vezes mais frequente em doentes com FA3, sendo este a principal causa de morte e incapacidade em Portugal4.

Existem dois grupos de fármacos hipocoagulantes: os antagonistas da vitamina K dicumarínicos (ACO) (varfarina e acenocumarol) e os novos anticoagulantes orais (NOAC) (dabigatrano, rivaroxabano e apixabano). Contudo, apenas os primeiros necessitam de monitorização.

Os ACO (varfarina, acenocumarol) são capazes de inibir a redutase do epóxido da vitamina K, impedindo a regeneração até à forma ativa da vitamina e reduzindo a gama‐carboxilação de certas moléculas de ácido glutâmico, situadas em pontos próximos da extremidade terminal dos fatores de coagulação II (protrombina), VII, IX e X. A varfarina, assim como o acenocumarol, inibe também a gama‐carboxilação, dependente da vitamina K, da proteína C ou do seu cofator proteína S5.

Os ACO são fármacos com 70 anos de experiência, considerados até muito recentemente a terapêutica gold‐standard. Apresentam baixo custo e demonstraram evidência sólida na prevenção de eventos trombóticos na FA. Nestes doentes, o uso de varfarina versus placebo mostrou prevenir o AVC isquémico e hemorrágico em 62%6. Os ACO são igualmente eficazes no tratamento de trombose venosa profunda, embolia pulmonar, doença coronária aguda que requer colocação de stent, doença valvular reumática (se FA ou história de embolismo prévio), síndrome antifosfolipídica (se história de tromboembolismo venoso ou arterial prévios) e valvulopatia com prótese mecânica ou biológica7. São ainda usados na prevenção de tromboembolismo na cirurgia ortopédica.

No entanto, existem algumas dificuldades no manuseamento dos ACO, como a janela terapêutica estreita, os fatores genéticos (que podem condicionar diferenças interindividuais na cinética de eliminação) e os fatores ambientais (adesão terapêutica, interações farmacológicas e ingestão de vitamina K na dieta, que podem influenciar a sua absorção, farmacocinética e farmacodinâmica).

Assim, para atingir e manter níveis de hipocoagulação que previnam acidentes trombóticos, minimizando o risco de complicações hemorrágicas, a monitorização do uso destes fármacos assume um papel fundamental. Esta pode ser feita através do tempo de protrombina, expresso em International Normalized Ratio (ou razão normalizada internacional [INR])8,9.

Existem atualmente várias modalidades de monitorizar a terapêutica anticoagulante oral: 1) monitorização a nível hospitalar efetuada por um médico, geralmente com a especialidade de hematologia, imunoemoterapia, ou outro com experiência na área (também designada monitorização em clínicas de anticoagulação – anticoagulation clinics); 2) monitorização a nível de cuidados de saúde primários efetuada por um médico de medicina geral e familiar, geralmente o médico de família (MF) do doente (também designada monitorização em cuidados médicos de rotina – routine medical care); 3) monitorização a nível de laboratórios de análises privados, efetuada por um médico patologista clínico geralmente com experiência na área; 4) monitorização efetuada pelo próprio doente em aparelhos de point‐of‐care, havendo duas modalidades: uma em que o doente faz o teste em casa e contacta o seu centro para ajuste da dose – self‐monitoring ou self‐testing; outra em que o doente faz o teste em casa e ajusta a dose caso seja necessário – self‐management9.

Em Portugal, a monitorização a nível de cuidados de saúde primários/cuidados médicos de rotina, começou a ser implementada há cerca de 14 anos.

Em 2010, foi estabelecido um protocolo entre o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho (CHVNGE) e os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) Espinho‐Gaia e ACeS Gaia que preconizava o seguimento de doentes com FA, com três meses de estabilidade de intervalo terapêutico.

Assim, a descentralização da consulta de hipocoagulação no ACeS Espinho‐Gaia começou com uma unidade de saúde (Unidade de Saúde Familiar [USF] Além Douro), estendendo‐se progressivamente a 17 unidades em 2014 neste ACeS. No AceS Gaia, teve início em 2013, com adesão inicial de dez unidades, que se mantiveram em 2014.

A orientação estratégica da Administração Regional de Saúde (ARS) Norte preconizou que existisse um coordenador e uma equipa (formada por dois MF e dois enfermeiros de família) responsáveis pela gestão do programa, com a supervisão de médico especialista em imunoemoterapia do hospital de referência e que existisse um manual de procedimentos, suportado em princípios de boas práticas. Pressuponha também a existência de um sistema de informação que incluísse uma base de dados com histórico, saída em suporte de papel do diagnóstico, valor de INR e limites de tolerância, prescrição clínica (proposta de terapia), marcação de nova consulta e algoritmo de aconselhamento da prescrição e da marcação de consulta, sujeitas a validação ou alteração médica.

Na ARS Norte, a consulta de hipocoagulação é feita inicialmente por enfermagem. A determinação de INR é feita com recurso a um coagulométro CoaguCheck XS Plus ou XS Pro®. Posteriormente, o doente é encaminhado para o MF, sendo realizado um procedimento de ajuste de dose, se necessário, e agendamento do próximo controle. Os dados são inseridos no sistema TAOnet®.

Concomitantemente a este processo, mantém‐se um processo de controlo de qualidade laboratorial semestral com o CHVNGE, com possibilidade de consultadoria diária. Foi também criada a Via Verde do Doente Hipocoagulado. A qualidade da hipocoagulação de um centro pode ser estimada calculando o «tempo em intervalo terapêutico» (TTR – do inglês time in therapeutic range) dos doentes aí vigiados. Valores baixos de TTR podem estar relacionados com eventos adversos. O TTR pode ser determinado de diversas formas, sendo as metodologias mais comuns: 1) o cálculo da fração de todos os valores de INR que estão dentro do intervalo terapêutico; 2) o método da análise transversal dos ficheiros, que determina a percentagem de doentes com INR terapêutico num ponto no tempo e compara com o total de doentes com INR determinado nesse mesmo tempo; e 3) o método de interpolação linear de Rosendaal, que assume uma relação linear entre dois valores consecutivos de INR e atribui um valor específico de INR para cada dia entre os testes, permitindo calcular o número de dias em intervalo terapêutico10.

Cada método apresenta vantagens e desvantagens, existindo vários fatores que podem contribuir para a variabilidade dos seus resultados. Foram feitos estudos que realizaram uma análise comparativa entre os diferentes métodos. Contudo, estes não conseguiram recomendar um método em detrimento de outro, pelas suas especificidades metodológicas11–13. Apesar disso, as guidelines da NICE de agosto de 2014 recomendam o método de interpolação linear de Rosendaal para monitorização do controlo da hipocoagulação em doentes com FA14.

O objetivo deste trabalho é aferir a qualidade da monitorização de doentes sob ACO com FA não valvular vigiados nas unidades funcionais (UF) dos AceS Espinho‐Gaia e AceS Gaia, através da aplicação do método de interpolação linear de Rosendaal.

Material e métodos

Trata‐te de um estudo observacional retrospetivo analítico.

A população em estudo são os doentes sob ACO das 37 UF dos AceS Espinho‐Gaia e AceS Gaia. Destas, há 27 UF que realizam hipocoagulação, o que constitui 73,0% das UF.

As unidades do AceS Espinho‐Gaia que cumprem este critério são a unidade de cuidados de saúde personalizados (UCSP) Madalena, a UCSP da Marinha, a UCSP de Crestuma, a UCSP de Lever, a UCSP de Perosinho, a UCSP de Silvalde, a UCSP Viver Saúde, a USF Aguda, a USF Além D’Ouro, a USF Anta, a USF Espinho, a USF Caminho Novo, a USF Canelas, a USF Grijó, a USF Monte Murado, a USF Nova Via e USF São Félix da Marinha. Do AceS Gaia realizam a consulta de hipocoagulação oral a USF Arco do Prado, a UCSP Barão do Corvo, a UCSP Soares dos Reis, a USF Gaya, a USF Nova Salus, a USF Saúde no Futuro, a USF Camélias, a UCSP Oliveira do Douro, a UCSP Avintes e a USF Abel Salazar. De modo a preservar a confidencialidade dos dados, as UF que preenchiam os critérios de inclusão foram legendadas por ordem alfabética (de A a Z), no sentido decrescente do número de doentes.

Foram estudadas variáveis sociodemográficas: valor de INR, TTR e terapêutica em curso. Considerou‐se que o doente foi seguido na UF se tivesse tido, no mínimo, seis visitas com registos de INR no ano de 201415. Os valores de INR foram agrupados mediante os intervalos em infra terapêutico (INR<2,0), terapêutico (2,0≤ INR ≤3,0) e supra terapêutico (INR >3,0). Foram pesquisados os registos de doentes com intervalos definidos entre 2‐3, tendo sido excluídos os registos com intervalos terapêuticos diferentes do definido. O valor de TTR foi calculado pelo método de interpolação linear de Rosendaal16.

Com o método de Rosendaal é feita uma alocação «tempo‐pessoa» para diferentes intensidades de hipocoagulação, presumindo que há um aumento ou decréscrimo linear do efeito de anticoagulação entre medições subsequentes. Assim, calcula‐se através da proporção da variável «tempo‐pessoa» em intervalo terapêutico sobre o follow‐up total do «tempo‐pessoa». A percentagem de dias em intervalo terapêutico é dada pela razão entre a diferença entre dois valores consecutivos de INR que se encontravam dentro do intervalo terapêutico dividida pela diferença total entre eles, conforme expresso na fórmula17:

Optou‐se por este método pelo facto de permitir comparações com os resultados obtidos em estudos nacionais e internacionais15,18–20.

Foi definido como mau controlo se TTR abaixo de 60%6,14,15, controlo moderado se TTR entre 60‐75% e bom controlo se TTR>75%6.

A totalidade dos registos correspondentes ao ano de 2014 foram recolhidos com o software TAONet®.

O registo da informação e o tratamento estatístico dos dados foi feito em base de dados informática com o programa Microsoft Excel® 2010 e SPSS® versão 21, nos quais não constou nenhum elemento identificativo dos utentes. Procedeu‐se à análise descritiva, calculando‐se a prevalência e desvio‐padrão. Para aferir a associação entre variáveis, utilizou‐se o teste qui‐quadrado, considerando‐se o intervalo de confiança de 95% e o valor estatisticamente significativo se p<0,05.

O consentimento informado foi dispensado, uma vez que não foram colhidos, nem constam na base de dados, elementos identificativos dos utentes. Foi obtido o parecer favorável da Comissão de Ética da ARS Norte.

Resultados

De 8249 registos de INR, foram excluídos 1601 por não terem diagnóstico de FA não valvular (359) ou por não apresentarem diagnóstico codificado (1242). Obtiveram‐se, assim, 6648 registos, que corresponderam a 596 doentes com FA não valvular.

Adicionalmente, foram excluídos 259 registos repetidos, 76 registos com valores diferentes na mesma data e 430 registos de doentes com número total de visitas inferior a seis. O número final de registos obtido foi de 5883. Dado que uma UF apenas tinha doentes com menos de seis visitas, de 27 passaram a 26 UF analisadas.

Estes registos corresponderam a 479 doentes, sendo que 301 (62,8%) foram seguidos no ACeS Espinho‐Gaia e 178 (37,2%) no ACeS Gaia. A taxa de perda de doentes foi de 19,6%.

A média de idades foi de 75,6±8,2 anos, com mínimo de 41 e máximo de 96 anos. O grupo etário mais prevalente foi o de 75‐84 anos, o que corresponde a 52,2% da amostra. Verificou‐se que 89,8% dos doentes têm 65 ou mais anos (Figura 1). Observou‐se uma maior prevalência do género feminino com 51,6%.

Figura 1.

Distribuição por grupos etários dos doentes sob ACO.

(0.07MB).

A terapêutica hipocoagulante mais utilizada foi a varfarina, em 86% dos casos, estando os restantes medicados com acenocumarol (14%).

O intervalo terapêutico adequado corresponde a valores de INR entre 2‐3, inclusivé, o que compreende 60,3% da amostra (Figura 2). Verifica‐se que 39,8% dos valores de INR encontrava‐se fora do intervalo terapêutico, sendo que 18,8% encontrava‐se no intervalo infraterapêutico (INR<2) e 21% no intervalo supraterapêutico (INR>3). Apresentavam valores de INR com elevado risco de hemorragia (INR>4,5) 1,8% da amostra e 5% um elevado risco trombótico (INR<1,5).

Figura 2.

Distribuição do valor de INR.

Legenda:

Fora do intervalo terapêutico
Dentro do intervalo terapêutico.

(0.09MB).

As 26 unidades foram legendadas por ordem alfabética (de A a Z) no sentido decrescente do número de doentes (Figura 3). A média de doentes seguidos por UF foi de 18 (±14), com o mínimo de dois e o máximo de 62 doentes.

Figura 3.

Distribuição dos doentes por UF.

Legenda:

ACeS Gaia
ACeS Espinho‐Gaia.

(0.08MB).

A média de visitas foi de 12,9 (±3,2). Verificou‐se que a unidade E foi a que teve a menor média de visitas, com 6,6 no seguimento de 30 doentes. A unidade W foi a que teve a maior média de visitas, com 21,7 no seguimento de três doentes, como se pode verificar na figura 4.

Figura 4.

Média de visitas por doente hipocoagulado com ACO.

Legenda:

ACeS Gaia
ACeS Espinho‐Gaia.

(0.1MB).

Verificou‐se que 35,3% dos doentes tinham mau controlo, 29,2% apresentavam controlo moderado e 35,5% um bom controlo (Figura 5).

Figura 5.

Histograma com as frequências relativas de valores de TTR.

(0.06MB).

O TTR médio foi de 67,4% (±6,5), sendo que no ACeS Espinho Gaia foi de 66,6% (±6,2) e no ACeS Gaia foi de 68,9% (±7,2), diferença esta que se revelou estatisticamente significativa (p=0,03). Pela análise da figura 6, constata‐se que o TTR por UF variou entre 55,6‐79,5%. Três unidades apresentavam valores abaixo dos 60% e quatro unidades apresentavam valores acima dos 75%.

Figura 6.

Tempo em intervalo terapêutico por UF.

(0.16MB).

O mau controlo não parece estar dependente do número de doentes que cada UF segue (p=0,17). Não se verificou relação estatisticamente significativa entre o controlo de TTR e o género (p=0,35), nem com o fármaco hipocoagulante utilizado (p=0,079).

Discussão

O TTR médio dos ACeS Espinho‐Gaia e ACeS Gaia foi de 67,4% (±6,5), encontrando‐se no nível de controlo moderado para os cut‐off definidos.

Ensaios clínicos recentes de grandes dimensões com os NOAC versus varfarina, na FA não valvular, forneceram dados importantes acerca da qualidade da hipocoagulação oral com ACO, utilizando o método de Rosendaal. O TTR médio dos ACeS foi superior quando em comparação com os estudos internacionais analisados. O estudo ROCKET‐AF, que abrangeu doentes de 45 países diferentes, comparou rivaroxabano versus varfarina. Obteve um TTR individual médio de 55,2% (±21,3%). Quando analisados em detalhe os dados da Europa Ocidental (o que correspondia a 38% da amostra), estes mostraram um TTR médio de 66,6% (±17,7%)18. No ensaio clínico ARISTOTLE, que comparou apixabano versus varfarina, o TTR médio foi de 66%19. O estudo RE‐LY comparou dabigatrano versus varfarina, envolvendo doentes de 44 países, incluindo Portugal20. O TTR médio global foi de 67,2% e o TTR médio respeitante à população portuguesa foi de 61%14. Num estudo realizado numa clínica de hipocoagulação em Portugal, foi obtido um TTR médio na vigilância de doentes com FA não valvular de 59,3% (±19,7)15.

Quanto maior for o valor do TTR, menor a probabilidade de surgirem eventos adversos. Dados dos ensaios clínicos SPORTIF III e IV mostraram que doentes com FA sob varfarina com TTR<60% apresentaram 43% dos eventos adversos6. Os resultados obtidos no nosso estudo mostraram um mau controlo em 35,3% dos doentes, ou seja, há uma importante proporção de doentes em risco. Destes, 10,8% dos doentes apresentavam um INR<1,8, isto é, estavam em maior risco de desenvolver um AVC isquémico, e 9,5% dos doentes tinham um INR>3,5, ou seja, estavam com maior risco de sofrerem uma hemorragia intracraniana18.

Existe uma grande discrepância no número de doentes vigiados em cada UF, mas esse facto não teve tradução estatisticamente significativa no TTR das UF. Considerando o seguimento ao longo de um ano, obteve‐se uma média de 12 visitas, isto é, aproximadamente uma visita/mês, o que poderá ser excessivo. Apesar de não ser consensual, há autores que recomendam que o seguimento de doentes com INR estáveis deva ser realizado com um intervalo de até 12 semanas, sem que isso condicione um aumento de risco hemorrágico ou embólico21.

O nosso estudo apresenta alguns pontos fortes: a definição de um número mínimo de seis valores de INR para inclusão no estudo, dado que há mais variabilidade do INR no início do controlo15; o estabelecimento de cut‐offs mínimos de qualidade6; o cálculo do TTR individual de cada doente, através de um método de interpolação linear longitudinal dos valores de INR, pelo método de Rosendaal, que tem em consideração número de dias em intervalo terapêutico16. Para além disso, trata‐se de um estudo pioneiro, que mostra a realidade da hipocoagulação oral nos cuidados de saúde primários, no concelho de Vila Nova de Gaia, no norte de Portugal, sendo passível de ser replicado.

O nosso estudo também apresenta limitações. O viés de informação está presente pelo uso de registos por si só e pelo facto de terem sido excluídos 11,5% dos registos. Outra limitação é o desconhecimento se os doentes estavam sob terapêutica inicial versus estável; se houve procedimentos invasivos que podem ter motivado a interrupção de terapêutica; se ocorreu interferência de fatores ambientais e/ou genéticos e qual foi o modo ajuste de dose utilizado (protocolo automático TAOnet®versus da UF). Para além disso, pela taxa total de perda de doentes de 19,6%, pela taxa de perda total de registos e pela elevada taxa de não codificação (15,1%), pode ter ocorrido um viés de seleção.

No futuro, é de ponderar a expansão do estudo a outros ACeS, com a mesma metodologia, para conhecimento da realidade nacional. A modificação da plataforma TAONet® com preenchimento de campos obrigatórios e preenchimento de mais dados sociodemográficos deveria ser uma realidade. Também seria de incentivar a promoção do registo correto das patologias, das doses e do encerramento de visitas. É de ponderar a necessidade de mais formação aos profissionais de saúde que realizam hipocoagulação nos CSP.

Por outro lado, para uma melhoria de controlo, não podemos esquecer de reforçar a importância das medidas que aumentem a adesão ao tratamento, o cumprimento de cuidados alimentares adequados (evitar variações circadianas de ingestão de alimentos ricos em vitamina K), bem como a pesquisa sistemática de sinais que indiquem intervalos supraterapêuticos (gengivorragias, equimoses…).

Em conclusão, o nosso estudo revela um padrão de controlo de hipocoagulação moderado, mas superior ao encontrado noutros estudos. No entanto, consideramos que ainda há um grande potencial de melhoria nos cuidados de hipocoagulação prestados nos cuidados de saúde primários.

Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais

Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.

Direito à privacidade e consentimento escrito

Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Agradecimentos

À Dra. Luísa Sá pela revisão do artigo.

À formadora Mariette Capinha, Eng.ª Sandra Oliveira e Dr. Álvaro Monteiro pelos esclarecimentos prestados.

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Chest., 141 (2012), pp. e152S-e184S
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