Informação da revista
Vol. 37. Núm. 6.
Páginas 497-498 (Junho 2018)
Vol. 37. Núm. 6.
Páginas 497-498 (Junho 2018)
Comentário editorial
Open Access
Uso do Sacubitril/Valsartan no «mundo real»: da teoria à prática clínica
Sacubitril‐valsartan in the real world: From theory to clinical practice
Visitas
11677
Ricardo Fontes‐Carvalhoa,b
a Departamento de Cardiologia, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, Vila Nova de Gaia, Portugal
b Departamento de Fisiologia e Cirurgia Cardiotoracia, Faculdade de Medicina, Universidade do Porto, Porto, Portugal
Conteúdo relacionado
Gustavo Rodrigues, António Tralhão, Carlos Aguiar, Pedro Freitas, António Ventosa, Miguel Mendes
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Texto Completo

In theory, theory and practice are the same.

In practice, they are not.

Albert Einstein

A insuficiência cardíaca (IC) é considerada «a nova epidemia» cardiovascular do século XXI, dada a sua crescente prevalência, elevada mortalidade e os enormes custos da doença1. Em Portugal, a IC constitui já um importante problema de saúde pública em que urge implantar um conjunto de medidas, de âmbito local e nacional, que possam alterar o atual paradigma da organização dos cuidados de saúde relacionados com a IC2.

O tratamento farmacológico da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER) é baseado no início e na titulação das doses dos fármacos modificadores do prognóstico, nomeadamente os IECAs/ARAs, os bloqueadores‐beta e os antagonistas da aldosterona 3. Recentemente, o estudo PARADIGM‐HF mostrou que o uso de sacubitril‐valsartan, em substituição do IECA, permitia uma redução adicional de 20% do risco de eventos cardiovasculares 4. Esse estudo mostrou ainda que essa nova estratégia de «modulação», e não apenas de inibição, neuro‐humoral permitia um aumento da sobrevida de cerca de 1‐2 anos no doente com ICFER5.

Atendendo aos bons resultados do PARADIGM‐HF, o uso do sacubitril/valsartan foi incorporado nas guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia como uma recomendação de classe IB nos doentes que permanecem sintomáticos após aprimoramento da terapêutica3. As últimas recomendações americanas de tratamento da IC foram ainda mais além, passando a recomendar que em doentes com IC de classe II ou III da NYHA que tolerem IECA ou ARA esse seja substituído pelo sabubitril/valsartan, com o objetivo de obter uma redução adicional da morbilidade e mortalidade por IC6.

Contudo, contrariando a magnitude da evidência e as recomendações das guidelines, a utilização do sacubitril/valsartan no «mundo real» tem sido lenta e abaixo do esperado7. Existem múltiplas razões que explicam essa dissociação entre a «teoria» (nomeadamente as recomendações das guidelines) e a prática clínica. Por vezes, os doentes testados na fase dos ensaios clínicos não são representativos da população do «mundo real». Neste número da Revista Portuguesa de Cardiologia, os autores deste estudo8 mostram que apenas um em cada quatro doentes com ICFER, seguidos numa consulta de IC de um hospital terciário português, cumpria os critérios de inclusão do estudo PARADIGM‐HF. Num estudo semelhante, que avaliou cerca de 6.000 doentes consecutivos referenciados para uma clínica de IC na Inglaterra, os investigadores reportaram dados semelhantes, mostraram que apenas 20% dos doentes cumpriam os critérios de inclusão do estudo PARADIGM‐HF9. Nesse estudo, é sobretudo interessante analisar que essa proporção aumentou para 60% se não fosse considerada a necessidade de atingimento das doses máximas de IECA/ARA. Esses dados demonstram, mais uma vez, que em muitos doentes com IC não é feita a titulação até às doses máximas recomendadas de IECAs/ARAs, seja pela presença de hipotensão, insuficiência renal ou outras comorbilidades, seja pela inércia clínica em titular as doses dos fármacos na IC.

Importa por isso discutir se deve ser obrigatória a titulação dos fármacos até às suas doses máximas antes de ser considerada a introdução do sacubitril/valsartan. No ensaio clínico PARADIGM‐HF os benefícios do fármaco foram consistentes e independentes das doses e da terapêutica de base10. Além disso, durante o decurso do ensaio clínico cerca de 40% dos doentes tiveram de fazer uma redução de dose de enalapril, sendo os benefícios semelhantes nestes indivíduos11. Assim, atendendo que o sacubitril/valsartan tem benefícios na sobrevida que vão além do possibilitado com o incremento da dose de IECA/ARA, mesmo os doentes a fazerem doses submáximas de IECA ou ARA devem preferencialmente passar a fazer doses equiparáveis de sacubitril/valsartan12.

Em conclusão, a introdução do sacubitril/valsartan constitui um avanço inegável no tratamento da ICFEP13. Está indicado como substituto do IECA/ARA nos doentes com IC com fração de ejeção < 40% e que tenham classe NYHA II‐III. No tratamento da IC, o atraso na iniciação da terapêutica modificadora do prognóstico associa‐se a um aumento significativo da mortalidade14,15. Por isso, como dizia Einstein, sabendo que muitas vezes (sobretudo na medicina) a teoria e a prática não são semelhantes, o sucesso do tratamento da IC estará dependente da implementação da melhor evidência científica na prática clínica do mundo real da insuficiência cardíaca.

Conflitos de interesse

O autor declara não haver conflitos de interesse.

Bibliografia
[1]
C. Fonseca, D. Brás, I. Araújo, F. Ceia.
Heart failure in numbers: Estimates for the 21st century in Portugal.
Rev Port Cardiol., 37 (2018), pp. 97-104
[2]
C. Fonseca, D. Brito, R. Cernadas, et al.
Consensus document on improvement of heart failure treatment in Portugal.
Rev Port Cardiol., 36 (2017), pp. 1-8
[3]
P. Ponikowski, A.A. Voors, S.D. Anker, et al.
2016 ESC Guidelines for the diagnosis and treatment of acute and chronic heart failure: The Task Force for the diagnosis and treatment of acute and chronic heart failure of the European Society of Cardiology (ESC)Developed with the special contribution of the Heart Failure Association (HFA) of the ESC.
Eur Heart J., 37 (2016), pp. 2129-2200
[4]
J.J.V. McMurray, M. Packer, A.S. Desai, et al.
Angiotensin–neprilysin inhibition versus enalapril in heart failure.
N Engl J Med., 371 (2014), pp. 993-1004
[5]
Claggett B1, M. Packer, J.J. McMurray, et al.
Estimating the Long‐Term Treatment Benefits of Sacubitril‐Valsartan.
N Engl J Med., 373 (2015), pp. 2289-2290
[6]
C.W. Yancy, M. Jessup, B. Bozkurt, et al.
2017 ACC/AHA/HFSA Focused Update of the 2013 ACCF/AHA Guideline for the Management of Heart Failure: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Clinical Practice Guidelines and the Heart Failure Society of America.
J Am Coll Cardiol., 70 (2017), pp. 776-803
[7]
N. Luo, G.C. Fonarow, S.J. Lippmann, et al.
Early adoption of sacubitril/valsartan for patients with heart failure with reduced ejection fraction: insights from Get With the Guidelines‐Heart Failure (GWTG‐HF).
JACC Heart Fail., 5 (2017), pp. 305-309
[8]
G. Rodrigues, A. Tralhão, C. Aguiar, et al.
Será a coorte do PARADIGM-HF representativa da população do mundo real de doentes com insuficiência cardíaca?.
Rev Port Cardiol., 37 (2018), pp. 491-496
[9]
P. Pellicori, A. Urbinati, P. Shah, et al.
What proportion of patients with chronic heart failure are eligible for sacubitril‐valsartan?.
Eur J Heart Fail., 19 (2017), pp. 768-778
[10]
N. Okumura, P.S. Jhund, J. Gong, et al.
Effects of Sacubitril/Valsartan in the PARADIGM‐HF Trial (Prospective Comparison of ARNI with ACEI to Determine Impact on Global Mortality and Morbidity in Heart Failure) According to Background Therapy.
Circ Heart Fail., 9 (2016),
pii: e003212
[11]
O. Vardeny, B. Claggett, Packer m, et al.
Efficacy of sacubitril/valsartan vs. enalapril at lower than target doses in heart failure with reduced ejection fraction: the PARADIGM‐HF trial.
Eur J Heart Fail., 18 (2016), pp. 1228-1234
[12]
M. Packer.
Love of Angiotensin‐Converting Enzyme Inhibitors in the Time of Cholera.
pii: S2213‐1779(16)30045‐2
[13]
P. Marques da Silva, C. Aguiar.
Sacubitril/valsartan: An important piece in the therapeutic puzzle of heart failure.
Rev Port Cardiol., 36 (2017), pp. 655-668
[14]
S. Zaman, S.S. Zaman, T. Scholtes, et al.
The mortality risk of deferring optimal medical therapy in heart failure: a systematic comparison against norms for surgical consent and patient information leaflets.
Eur J Heart Fail., 19 (2017), pp. 1401-1409
[15]
G.C. Fonarow, A.F. Hernandez, S.D. Solomon, et al.
Potential mortality reduction with optimal implementation of angiotensin receptor neprilysin inhibitor therapy in heart failure.
JAMA Cardiol, 1 (2016), pp. 714-717
Copyright © 2018. Sociedade Portuguesa de Cardiologia
Idiomas
Revista Portuguesa de Cardiologia
Opções de artigo
Ferramentas
en pt

Are you a health professional able to prescribe or dispense drugs?

Você é um profissional de saúde habilitado a prescrever ou dispensar medicamentos

Ao assinalar que é «Profissional de Saúde», declara conhecer e aceitar que a responsável pelo tratamento dos dados pessoais dos utilizadores da página de internet da Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC), é esta entidade, com sede no Campo Grande, n.º 28, 13.º, 1700-093 Lisboa, com os telefones 217 970 685 e 217 817 630, fax 217 931 095 e com o endereço de correio eletrónico revista@spc.pt. Declaro para todos os fins, que assumo inteira responsabilidade pela veracidade e exatidão da afirmação aqui fornecida.